Direito à moradia: desafios para sua efetivação no Nordeste

Desigualdades reforçam a exclusão do acesso à cidade e à moradia adequada para grande parcela da população
Desigualdades reforçam a exclusão do acesso à cidade e à moradia adequada para grande parcela da população
Desigualdades reforçam a exclusão do acesso à cidade e à moradia adequada para grande parcela da população

A histórica concentração de terras e de renda, a cultura patrimonialista e o legado da escravidão, associados à falta de políticas públicas continuadas que possibilitassem o acesso aos direitos sociais, produziram reflexos devastadores nas cidades brasileiras, especialmente na vida dos mais pobres. As desigualdades materializadas na ocupação do solo construíram relações predadoras que vêm destruindo o ambiente natural, saturando o ambiente construído e submetendo as pessoas ao caos da imobilidade urbana, da falta de saneamento básico, dos alagamentos e dos incêndios.

Para além dos problemas que atingem as cidades, as desigualdades regionais reforçam a exclusão do acesso à cidade e à moradia adequada para parcelas ainda maiores da população. A insuficiência de investimentos públicos e privados em algumas regiões, especialmente no Norte e Nordeste, causaram problemas de resolução mais complexa, que associam carências de várias ordens e que exigem ações integrais e integradas para a população mais pobre.

Dados de 2005 da Fundação João Pinheiro (FPJ) revelam que 94,7% do déficit habitacional no Nordeste correspondia a famílias que estavam na faixa de renda de até três salários mínimos, o que representa o maior déficit proporcional para essa faixa de renda entre as regiões do Brasil. O que objetivamente deveria ser resolvido com a produção de novas moradias desafia o Estado a promover, de forma conjunta, outras políticas como educação, saúde, transporte, geração de renda, entre outros,  articulando o direto à moradia a outros direitos fundamentais que, a princípio, ampliariam a sustentabilidade da solução habitacional.

Na zona urbana dos municípios nordestinos, o grande problema gerador de déficit, segundo esse estudo, é a coabitação. Famílias que geram outras famílias que, por sua vez, não conseguem se sustentar de forma independente e acabam dividindo espaços muitas vezes já reduzidos. Isso ocorre com 64% das famílias que integram o déficit urbano no Nordeste.

Uma grande contradição demonstrada de tempos em tempos e por metodologias diferentes é a quantidade de imóveis vagos existentes nas cidades, muitos destes em áreas com infraestrutura. Segundo a FJP/2005, 13,7% dos domicílios particulares permanentes do Nordeste estariam vagos. Destes, 92,1%, a princípio, teriam condições de ocupação. Esses dados, associados às informações sobre déficit habitacional, refletem a falta de enfrentamento ao não cumprimento da função social da propriedade. Cobrar e promover a utilização social a imóveis que apenas se valorizam pelos investimentos realizados nas cidades deveria ser papel dos governos municipais. Contudo, sabe-se que, muitos deles, além de não estarem estruturados para uma gestão eficiente do uso do solo, alinham-se a interesses privados em detrimento do interesse público.

A contradição aumenta ainda mais quando se visualiza as condições de moradia nas favelas. O chamado déficit qualitativo, com ausência de segurança da posse da terra, ausência ou insuficiência de infraestrutura básica, ausência de banheiro e de condições mínimas de salubridade, afetam boa parte das moradias nessas áreas e contrasta com tais imóveis vazios, cuja única função é a valorização em beneficio de seus proprietários.

Algumas das necessidades básicas como o acesso a água, seja na zona urbana, seja na zona rural, não são atendidas para boa parte da população. É fato que há um problema de disponibilidade hídrica na região Nordeste que envolve vários fatores. Contudo, a falta de investimentos para criar alternativas e ampliar os sistemas de abastecimento existentes é responsável em boa medida pela concentração desse bem para os que podem pagar por ele.

Para além dos problemas gerados pela seca, que atinge as condições de vida de uma forma estrutural, a zona rural nordestina convive com habitações precárias, que representavam 60,1% do déficit habitacional rural em 2005. Ainda são muito comuns as casas de taipa, mesmo com investimentos em substituição por casas de alvenaria, especialmente motivados pelos casos de doença de Chagas que esse tipo de moradia favorece.

Apesar dos investimentos na produção de moradias novas e na implementação de infraestrutura, promovidos em grande parte com recursos federais nos últimos anos, o direito à moradia ainda não se converteu em realidade para muitas famílias. Infelizmente vários episódios de despejos de famílias, incêndios em barracos, deslizamentos de barreiras, chamam a atenção para o quanto ainda se tem por fazer.

Considerando, em especial, o contexto do Nordeste, são grandes os desafios quando se busca de forma integral o atendimento de todos os aspectos da moradia adequada. A forte concentração de renda e de poder nas mãos de poucos, resultante do processo de formação histórica da região, e a vulnerabilidade que afeta parcelas significativas da população e dos governos locais, tem sido somadas de uma apropriação das cidades pelo capital, em muitos casos internacional, especialmente nas cidades litorâneas e em outras áreas de interesse econômico e turístico. Tais fatos ajudam a ampliar as desigualdades e acentua a exclusão, mesmo num contexto de crescimento vivido no país.

Um bom exemplo pode ser dado considerando um dos aspectos da moradia adequada, a segurança da posse. Há certo retrocesso no respeito ao direito de permanência da população mais pobre nas cidades. Apesar dos avanços relacionados à legislação, o Poder Judiciário muitas vezes não reconhece tal direito e submete parcelas significativas da população ao risco de expulsão. Por outro lado, muitos governos, aliados às forças econômicas presentes nas cidades, têm realizado e impulsionado remoções de famílias de baixa renda sob pagamento de indenizações injustas ou realocação destas em moradias distantes de suas áreas de origem.

Em muitos casos, essas ações encontram uma população despreparada para reagir e buscar seus direitos. A falta de informação e de possibilidades de participação na definição das soluções encontra uma população com outras necessidades básicas para atender. Assim, muitas das famílias removidas para dar acesso às obras viárias e à instalação de empreendimentos privados voltam a reproduzir situações precárias de moradia em outras áreas. Em muitos casos, as novas moradias precárias estarão mais mal localizadas na cidade.

Um dos maiores desafios no acesso à moradia adequada na atualidade, considerando a dinâmica das grandes cidades já mencionada, anteriormente é a disponibilidade de áreas com localização adequada para a população mais pobre. Apesar da existência de diversos instrumentos jurídicos e urbanísticos que possibilitam uma melhor regulação e que controlam a destinação do solo urbano, os governos locais não enfrentam a questão.

A produção de novas moradias promovida pelos programas Minha Casa Minha Vida e PAC tem ocorrido, muitas vezes, em áreas periféricas, submetendo a população beneficiada a maiores deslocamentos para trabalhar, estudar e acessar equipamentos de saúde e lazer. Apesar de algumas preocupações com a questão estarem sendo incorporadas nas regras dos programas, as estruturas de governos locais, em boa parte, são muito frágeis no que se refere ao planejamento e ao controle urbano das cidades.

No que se refere ao custo da moradia, em que pese a ampliação dos subsídios e do volume total de recursos por parte do Governo Federal, sabe-se que apenas 60% vem para atender as famílias com renda até R$ 1.600,00.

As famílias nessa faixa de renda pagam 5% de sua renda bruta por mês em 10 anos (valores que variam de R$ 25,00 a R$ 80,00), o que aparentemente parece algo muito acessível. Contudo, informações recentes divulgadas pelo governo revelam que aproximadamente 20% das famílias está inadimplente. O endividamento das famílias, que tiveram um aumento no seu poder de consumo e em paralelo uma maior facilidade para acessar créditos, pode estar influenciando esse fato.

Para os que não acessam os programas habitacionais e precisam pagar por aluguel, as condições têm se alterado também. Entre 1991 e 2005, o número de famílias com ônus excessivo de aluguel no Nordeste passou de 3,7% do total de famílias que compõe o déficit, para 13,8%. Uma hipótese para esse fato seria que o processo de valorização do solo nas cidades poderia estar influenciando esse aumento nos preços dos alugueis, inclusive em áreas informais e precárias.

Ainda considerando a realidade do Nordeste, é importante destacar que o grande número de municípios pequenos dificulta o acesso aos programas habitacionais, já que nesses casos a fragilidade dos governos municipais se soma a pouca presença de outras forças que poderiam se mobilizar para produção de moradia, além dos programas serem mais restritos.

Levando em conta o contexto brasileiro e os desafios específicos para o Nordeste, é necessário reforçar que o acesso à moradia adequada precisa partir do fortalecimento das condições para que isso ocorra e seja sustentável. Isso passa por adequar os programas às reais necessidades da população, ampliar as condições para acesso aos mesmos e fortalecer a população que necessita de moradia, de modo que este seja um passo para a melhoria integral da vida dessas pessoas.

As desigualdades socioeconômicas, de raça e de gênero, tão presentes no Nordeste, estão refletidas nas condições precárias de moradia da população mais vulnerável. Essas, por sua vez, trazem consequências para a saúde, educação e o desenvolvimento integral de crianças, jovens, adultos e idosos.

Promover moradia adequada para famílias que não tem atendidas suas necessidades básicas é, antes de tudo, reconhecê-las para agir de forma coerente e reparadora. É preciso reconhecer que para partes significativas da população, as oportunidades foram muito restritas. Também é necessário alterar a lógica das coisas, com ações de ordem prática e mudanças mais estruturais no contexto econômico e político, para assegurar o direito à vida digna.

Nesse sentido, ter uma moradia adequada pode ser um grande e importante passo para essa dignidade, pois a casa é o primeiro ambiente com o qual o individuo se depara e onde ele passa um bom tempo de sua vida. Crescer num ambiente sem as condições mínimas de vida pode causar importantes prejuízos para crianças e jovens em seu futuro.

Para além de um ambiente salubre e seguro para morar, as ações de fortalecimento dos indivíduos no campo socioeconômico, com o acesso a uma alimentação adequada, a serviços de saúde, a elevação do nível de escolaridade e inserção no mercado de trabalho, também são fundamentais para garantir a sustentabilidade da ação e a diminuição das desigualdades nas suas diversas faces.

Para o Nordeste não há outro caminho para um desenvolvimento sustentável que não seja possibilitando o acesso aos direitos sociais à sua população, de maneira integral, ampla e emancipadora. Nesse sentido, ter uma moradia adequada pode ser um pequeno, mas importante passo para reverter essa história.

Referência bibliográfica

Déficit Habitacional no Brasil 2005 / Fundação João Pinheiro, Centro de Estatística e Informações. – Belo Horizonte, 2006.

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