Estado deve ter projeto terapêutico definido e assumir tratamento dos dependentes de crack

Nos últimos anos o uso do crack se popularizou no Brasil e a droga vem ocupando um lugar de destaque na mídia. Os danos causados aos usuários e as consequências do seu consumo a transformaram em um problema de Saúde Pública para o País. O psiquiatra, psicanalista, pesquisador e especialista em álcool e outras drogas, Evaldo Melo, trabalha há 40 anos com o tema e não acredita que possa existir uma sociedade livre do uso de drogas. Partindo deste princípio, o especialista reflete sobre o panorama do crack no Brasil na última década e sobre a atuação do Poder Público diante dos dependentes químicos. Ele também fala sobre as internações compulsórias feitas no Sudeste do país e esclarece como se dá a relação do homem com as drogas. Para Melo, o estado passou 25 anos sem investir de fato no problema, cujas ações, paliativas, foram voltadas para a repressão e não para a prevenção e o tratamento. “O Poder Público não se preparou, não treinou, não investiu recursos para fazer isso e, hoje, ele não conhece bem o problema”.

Como especialista no assunto, a quê você atribui o uso de drogas?

Ao longo da história da humanidade, as pessoas sempre usaram drogas. Quando encontrarmos, por exemplo, algumas pinturas rupestres vemos, simbolicamente, um bonequinho, um caldeirão, alguém misturando alguma coisa, tomando daquele caldeirão e saindo pulando de alegria. A questão do uso de drogas transcende, primeiro, a questão da contemporaneidade. Transcende a questão da localização, da região e acompanha a história do homem. Por isso, as políticas que dizem “vamos acabar com as drogas” são pautadas na irrealidade. Na realidade o homem sempre usará drogas.

Como eu sou psicanalista e eu tenho uma visão do uso de drogas também dentro da psicanálise, eu diria que um dos determinantes do uso dessas substâncias é a ansiedade, a angústia. E você não pode imaginar nem a sociedade sem angústia, nem o homem sem angústias existenciais. Dessa forma, enquanto houver a angústia haverá a procura pelo alívio dela por meio do uso das drogas.  Se traçarmos um paralelo com a descrição do paraíso na Bíblia, esse seria um espaço onde não haveria nenhuma necessidade que não fosse atendida e, mesmo assim, a angústia do conhecimento existiu. É tanto que Eva decidiu experimentar do fruto proibido, justamente pela necessidade de transgredir e de criar. Um amigo diz que o primeiro psicanalista descrito foi exatamente a serpente.  Eva disse era permitido provar todos os frutos de todas as árvores, menos daquela árvore. O que a serpente fez foi perguntar para ela o porquê. É isso que os psicanalistas fazem. E quando Eva teve que pensar o motivo, não viu sentido, a não ser a própria proibição. E proibição pede a transgressão. Então, o uso da droga está permeado dentro da história da humanidade.

Qual a relação do consumo de drogas como momento histórico atual?

Em cada momento da civilização se viu um uso de droga em consonância com o momento histórico. A contemporaneidade tem o uso de drogas muito incrementado por conta do vazio existencial, da quebra de regras básicas de convívio social, da predominância do pensamento capitalista – não só de que você tem que consumir, mas que tem de consumir algo que seja descartável. Não é só entrar num supermercado e comprar um determinado produto. Você tem que entrar para comprar aquele determinado produto. A sociedade se estrutura para ter consumidores fiéis e não existe consumidor mais fiel do que o dependente.

Para alguns sociólogos, o dependente, o drogado é o paradigma desta sociedade. É o maior representante desta sociedade drogada por algo que vai lhe dar um prazer imediato e você vai descartar. Eu sempre cito o exemplo da calça jeans que, na sua origem, era usada por mineiros americanos. Ela foi feita para durar, para não se acabar. Mas o que a sociedade de consumo faz com a calça jeans, usando jeans tão resistentes quanto os originais?  Acrescentam ou tiram alguma coisa para que ela não dure. Ora a boca está curta, ora larga, ora está rasgada, ora costurada, ora bordada, ora tem bolso na frente, ora não tem. De modo que se você passa seis meses com uma calça jeans, que foi feita para durar 60 anos, ela já não está mais na moda, está descartada. Você tem que consumir e tem que consumir algo que seja descartável, para você continuar consumindo aquele mesmo produto. E neste sentido o drogado é, sem dúvidas, um grande representante da sociedade de consumo.

Essa estrutura social reprime ou estimula o uso dessas substâncias?

Na estrutura social há um estimulo ao consumo da droga, de todas as maneiras, para que as pessoas busquem o prazer imediato. Ao mesmo tempo em que todo esse estimulo existe há também uma grande repressão e preconceito contra quem se torna um dependente. Assim, vivemos em uma sociedade que é extremamente intolerante ao dependente e não só do crack. Você vê o álcool, por exemplo. O álcool e o tabaco continuam sendo as drogas que mais matam no mundo. O tabaco é responsável pelo maior número de mortes evitáveis no mundo – se as pessoas não fumassem daquela maneira, não morreriam. E o álcool também.

A sociedade também criou esse monstro do crack para poder tapar toda essa realidade de que a droga lícita é que mais mata no mundo todo. E mesmo em relação ao álcool, o que se vê é um grande estímulo ao consumo, mas uma grande intolerância para aquelas pessoas que são alcoolistas. Tanto que a própria lei brasileira ainda permite a demissão por justa causa por alcoolismo. Se há 50 anos o Código Internacional das Doenças diz que o alcoolismo é doença, como você pode ser demitido por estar doente? É mesma coisa de você ser demitido por ter descoberto ser hipertenso ou diabético. É a mesma história do ponto de vista de ser uma doença.

E qual a influência dos determinantes sociais neste contexto?

O determinante social não necessariamente é um determinante direto. Ele é, em geral, um determinante indireto. São as condições que a sociedade cria que facilitam o aparecimento de determinada doença. Então, sem dúvida, a dependência de droga tem um determinante social fortíssimo. Afirmamos que a dependência de drogas é uma doença não só universal, mas democrática, porque atinge todas as camadas sociais. Temos em o cidadão que mora na Avenida Boa Viagem (área nobre do Recife-PE) que usa crack e cheira cocaína e tem o morador da favela, que usa crack e cheira cocaína. Só que não é a mesma coisa.

O tipo de repercussão do uso de droga para aquele que mora na Avenida Boa Viagem e para o que mora na favela é completamente diferente. O componente social influencia também em como a doença se apresenta e em como ela é tratada. Você poderia dizer que quem mora na Avenida Boa Viagem, teoricamente, teria melhores condições de buscar tratamento – que é um fator importante da abordagem – mas não é assim. Na verdade, do mesmo jeito que a pessoa pode procurar tratamento, pode esconder por mais tempo.

Em relação ao alcoolismo, por exemplo, se o homem é dono de uma empresa ele pode não aguentar trabalhar na segunda-feira porque bebeu demais no fim de semana e não ir. Se o trabalhador comum passou o fim de semana bebendo tem que bater o ponto às sete horas da manhã. Se não o fizer, ser advertido. Se não registrar o ponto por três ou quatro dias ele vai ser demitido. Ou seja, a questão do uso de drogas atinge o indivíduo a depender da classe social em que ele esteja inserido.

Há uma determinação social na questão do uso das drogas e ela se apresenta absolutamente antidemocrática quando você faz um recorte de um extrato da população dependente. Há características locais – a questão não é só ter ou não ter dinheiro. Você pode ter uma sociedade que protege ou uma sociedade que exclui e que, à medida em que você apresenta suas dificuldades vai ser excluído e, portanto, vai ter uma repercussão muito mais profunda pela sua dependência em relação a quem está protegido pela sociedade.  No interior, por exemplo, há uma proteção maior em relação ao uso do álcool. E é importante, sempre que falarmos no uso de drogas, colocar a questão do álcool. Criou-se há 30 anos o termo “álcool e outras drogas” porque o que se ouvia antes era sempre “álcool e drogas”, como se álcool fosse uma coisa e drogas fosse outra.

Diante desse panorama das outras drogas, por que a questão do crack tem tanta repercussão?

Em relação a isso eu sempre faço um paralelo com a questão da Aids. Já se sabia da Aids há pelo menos 50 anos antes de que fosse considerada uma epidemia. Acontece que a doença matava os negros da África. E ele proliferava o vírus, que circulava ali na África. Quando a Aids começou a matar os brancos na Califórnia a Organização Mundial da Saúde (OMS) voltou os seus olhares para a doença. Quando ela começou a matar muita gente com situação econômica privilegiada, ela se tornou um problema de saúde pública e começou a ter um enfrentamento diferente.

Esta é exatamente a história do crack. Há 30 anos me lembro muito bem que fui a ujm congresso em Brasília e uma moça de lá que fazia um trabalho direto com moradores de rua, falava no crack. Falava do crack como merla, que é um tipo do crack. Porque o crack, na verdade, era que sobrava do refino da cocaína. Agora não mais porque as pessoas estão ganhando dinheiro transformando a pasta básica em crack, mas, antigamente tirava-se a cocaína e tudo o que sobrava do refino, aquela borra, e dela se faziam a merla ou o crack, que eram vendidos bem mais baratos.

O crack começou a entrar na classe média e na classe alta nos últimos dez anos e a incomodar os formadores de opinião. Por isso começou a ter espaço na mídia e quando vai para a mídia ganha uma repercussão muito maior. Trata-se o crack como se fosse uma epidemia, mas do ponto de vista médico não pode ser considerado assim pois ele não preenche os requisitos de epidemia.

A outra questão é de mercado. Para um bem ser consumido ele precisa ser encontrado com facilidade, precisa ter um preço mais barato e uma qualidade melhor. Foi o que aconteceu nos últimos 15 anos com o crack. Você consegue a droga hoje com mais facilidade, de melhor qualidade e é barato. Então você preenche os requisitos para que algo seja mais consumido e isso se relaciona, sem dúvidas, com essa mudança de perfil.

Fazendo outro paralelo entre o crack e Aids, vemos que quando ela surgiu era uma doença de jovens e homens e, de repente, começou uma “juvenilização”. Começamos a ter cada vez mais jovens infectados e, hoje, encontramos cada vez mais meninos de 12, 13 anos usando crack. Há ainda outro processo a ser considerado que é a feminilização: as mulheres começam a usar drogas que antes eram usadas mais por homens. Lá na frente você tem o oposto: a senilização. Pessoas com mais de 50 anos que só bebiam, no máximo fumavam maconha, e que agora começam a experimentar o crack. Desta forma, esses três fenômenos mostram o que representa o aumento do consumo do crack. Quer dizer, não é só aquela faixa entre 15 e 30 anos, homens e pobres. A entrada da mulher no mercado é uma coisa muito grave porque ela tem e usa o corpo como instrumento para poder vender e conseguir a droga. Trocar o corpo pela droga é extremamente frequente nas bocas.

O senso comum caracteriza o usuário de crack como “noiado”, fazendo referência à ideia de paranoia mesmo. Este estado é real?

Esse é o estado característico do usuário da cocaína, não é especialmente do crack. Os drogados tendem a ouvir coisas e achar que algo a mais está acontecendo, fora da realidade. Como a cocaína é cheirada, do nariz vai para a corrente sanguínea, para depois chegar aos pulmões  e só depois ir para o cérebro. O fumo não. O efeito é muito mais imediato, mais potente. Então, a “noia” vem por conta da substância da cocaína. Outra questão é o que crack cria a compulsão muito mais rapidamente que a cocaína, a vontade de fumar sem fim. Tenho vários pacientes que foram em casa, pegaram a televisão, voltaram, pegaram o aparelho de som e trocaram pela droga sem conseguir parar. É de fato apavorante.

E sendo a mesma substância, por que é tão diferente?

Por conta desse efeito mais forte. Mas aquela sensação inicial, a pessoa nunca mais sente de novo.  

Dentre as pessoas que você atende por uso de drogas, todas têm informação e consciência sobre aquilo que estão usando?

Hoje em dia todos têm. Hoje em dia ninguém nem fuma sem saber o que está fazendo. O problema é que muitos têm a ideia de que vão usar e que será diferente. De uma maneira geral, a droga busca ocupar o lugar da dor e o crack provoca um alívio muito grande, algo descrito como absoluto.  E o dependente passa a vida buscando as primeiras sensações que a droga lhe proporcionou.

De uma maneira geral, o Estado demonstra uma dificuldade em lidar com o uso de drogas de forma adequada e que gere os resultados esperados. Recentemente, em São Paulo, o governo optou pelas internações involuntárias. Como o senhor avalia isso?

Eu trabalho com esse problema há 40 anos e sou um dos que sempre defendeu a ideia de que há necessidade de ter internamento. A reforma psiquiátrica, inspirada no modelo italiano, foi contra internamentos porque o modelo daquela época era o modelo usado na Tamarineira (antigo hospital psiquiátrico situado no Recife-PE), modelo asilar, e esse modelo todo mundo é contra. Mas houve uma confusão entre internar dentro de um asilo ou não internar e os gestores da saúde pública criaram a fantasia de que era possível você ter uma rede de saúde sem internamento, isso para distúrbios psiquiátricos outros, que não a dependência e para a dependência mais ainda.

Tivemos uma defasagem de 25 anos em que o Estado não investiu em internamentos, só desinternou. E em relação ao álcool e às drogas ficou um vazio imenso. Esse vazio foi preenchido pelas comunidades religiosas – e a gente pode fazer várias críticas a elas, mas elas vieram por conta do vazio deixado pelo serviço público – e começaram a cuidar da maneira que entendiam que deveriam cuidar. Então, o poder público não se preparou e agora ele está se dando conta, mas não está preparado porque ele não treinou, porque não investiu recursos para fazer isso e porque ele não conhece bem o problema.

Para você ter uma ideia, em 1988, na primeira Conferência Nacional de Saúde Mental, não permitiram que a gente falasse sobre a questão de álcool e outras drogas porque era a hora de cuidar dos psicóticos. Só quatro anos depois nós pudemos falar oficialmente. Até hoje ainda mão existe no Ministério da Saúde uma coordenação específica que trate da questão do álcool e drogas. O Ministério da Saúde fica brigando com Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), que nasceu no governo Fernando Henrique com o nome “antidrogas”, o que é um atraso. Ela foi coordenada por um general durante oito anos – quatro anos do governo Fernando Henrique e quatro anos do governo Lula, que deixou lá também um general coordenando. As ações sempre foram mais voltadas para a repressão do que para a prevenção e o tratamento. Assim, o poder público não se preparou. Quando eles falam em internar não sabem nem onde vão internar.

Como essas internações funcionam?

Existem três tipos de internação: a internação voluntária, quando o usuário quer se internar; a involuntária, quando ele não quer e é pego à força para poder ser internado. Essa é uma atitude médica, só o médico pode indicar. Se você tiver um pai ou um irmão que precisa ser internado, você não pode decidir pela internação. Quem tem esta autoridade é o médico. O terceiro tipo é a internação compulsória, que é a decisão judicial. É a lei que decide, a Justiça. No caso de São Paulo estão atuando em conjunto, o médico e a Justiça, são os dois tipos.  Só que está absolutamente provado que a internação involuntária tem uma eficácia muito menor do que a voluntária. No entanto, eu defendo a internação involuntária em alguns casos porque o médico vai dizer ao paciente: você precisa se internar porque está tentando suicídio, porque você está colocando em risco a sua vida e a vida do outro. Esse alarde todo em relação ao Rio de Janeiro e a São Paulo não precisava haver. A lei já prevê isso. Caso o usuário coloque em risco a sua vida ou do outro, o médico pode privá-lo da liberdade.

A polícia acaba preenchendo um pouco esse espaço entre o Estado e o dependente?

É muito importante dizer isso. O problema deixa de ser uma emergência médica e passa a ser uma emergência policial. O usuário de crack na rua, tentando cometer suicídio ou correndo o risco de matar alguém, assim como o bêbado e o doente mental, é um caso de emergência médica, de uma emergência psiquiátrica e não de uma emergência policial. O policial até pode ir junto para dar a salvaguarda da integridade física aos profissionais de saúde, mas esta é uma emergência médica.

Estas pessoas estão doentes e precisam de assistência médica, que ainda não oferecemos. Para você ter ideia, o SAMU não atende esse tipo de chamado. Se você tiver uma pessoa correndo risco por conta do crack, o SAMU não atende porque não tem a informação para transformar o chamado em uma emergência médica. E quem termina abraçando esses problemas é polícia do jeito dela. A polícia não tem nenhuma responsabilidade nem preparo para esses casos. Ela atua da forma como foi treinada para atuar.

E diante deste cenário no Brasil, com a quantidade de dinheiro gasto tentando tirar as pessoas das drogas, investindo muito na questão da polícia, o que você idealiza como uma alternativa viável e que tenha maior sucesso já que, atualmente, as políticas voltadas para o tema não conseguem diminuir a quantidade de usuários, melhorar a qualidade de vida dos dependentes e nem diminuir a violência gerada pelo mercado?

O que eu diria como primeiro passo seria o Poder Público, de fato, assumir sua responsabilidade. Se ele assume essa responsabilidade hoje, ele não tem nem onde internar as pessoas, porque ele não criou esse espaço. Além disso, para mim, toda internação involuntária teria que ficar entregue ao Poder Público. Nenhuma clínica particular poderia internar involuntariamente. E isso tinha que ser feito junto à autoridade judicial e à autoridade médica. O Estado é que ficaria responsável por esse cidadão até que ele passasse por esse período de desintoxicação.

Uma das coisas que descobrimos com o crack é que o dependente dessa substância precisa de mais tempo do que o dependente do álcool, por exemplo, cujo internamento de 30 a 60 dias é um período ótimo. Isso porque o crack muda a relação da pessoa com a vida, então ele precisará de um tempo maior para reconstruir esta identidade e reconstruir esse processo de reinserção no mundo. Hoje não se fala em internação por crack que dure menos de três meses. Então, o panorama que eu vejo como ideal seria o Poder Público assumir mais sua tarefa e sua parte e toda essa internação involuntária ficar sob sua responsabilidade. Depois dessa etapa, quando a internação se tornar voluntária, o dependente poderia ir para outro lugar sem necessidade dessa proteção pública.

Além disso, eu acho que tem se investido muito dinheiro nos últimos quatro anos e eu acho que não precisaria de tanto. Isso porque, para mim, os índices de consumo de drogas ainda vão aumentar por pelo menos dez anos.

Por que você acredita nisso?

Foi assim com o tabaco. Você tem que mudar o processo ao longo de uma geração. O que aconteceu foi que uma geração não só não usou como passou a cuidar para que outras pessoas não usassem. Uma pesquisa realizada na Holanda mostrou que o melhor momento para se fazer a prevenção é com as crianças entre cinco e oito anos, porque são eles que têm a capacidade de refletir sobre a situação e exercer uma pressão sobre os pais. Essa é a prevenção que deu mais resultado: trabalhar a população jovem que vai fazer pressão sobre os adultos e que não vai consumir. A gente tem toda uma geração hoje que não fuma. Eu acho que é preciso uma geração para mudar, mas acredito que pode sim mudar.

E qual o papel das políticas de redução de danos nesse processo?

O papel é importantíssimo. Para mim ainda há uma má compreensão do que é redução de danos. As pessoas falam disso sem entender, sem saber o que é e dá uma falsa impressão do conceito. Ele não exclui, por exemplo, a abstinência. Quem defende a redução de danos – e eu fui um dos primeiros a defender no Brasil – não exclui a abstinência. E as pessoas estão sempre fazendo oposição entre a redução de danos e a abstinência, mas não existe este conflito. Para algumas pessoas a abstinência é a solução. Elas não tem a capacidade de usar sem provocar prejuízos, então elas terão como objetivo a abstinência, dentro da redução de danos.

A redução de danos é uma política muito mais ampla, porque envolve a questão da tolerância a partir daquele primeiro conceito do qual eu falava: a sociedade sempre vai usar drogas e esta é a base da ideologia de redução de danos. E a sociedade – enquanto cidadãos e cidadãs decididos a usar drogas – precisa entender como a droga pode provocar menos danos a ela. A redução de danos vai buscar a pessoa mais próxima à realidade dela, vai respeitar e vai ensinar algumas estratégias para reduzir o dano. A troca de seringas foi uma estratégia desta política utilizada na Europa, que tinha um grande problema de drogas injetáveis – e nós não temos esse problema – para que os usuários não se contaminassem com o vírus HIV ou pela hepatite. Mas o que aconteceu quando as pessoas começaram a trocar seringas foi que elas começaram a procurar mais tratamentos e a estatística mostrou que, das pessoas que procuraram, 18% ficaram em tratamento. Então, era uma estratégia para abordar as pessoas.

Outro exemplo é a substituição de uma droga por outra mais leve, como a heroína, é uma droga injetável, pela metadona, que é usada oralmente. Você vai em alguns ambulatórios na Europa e eles distribuem a metadona.  Outra coisa que pode ser feita, quando a pessoa quer, é substituir o crack pela maconha. Isso funciona para algumas pessoas, não para todas. Para algumas, a maconha vai chamar o crack. Você tem pessoas que ficam em abstinência e de repente vão fumar a maconha e voltam para o crack. A maconha pode ser um caminho de volta ao crack e para outras pode ser de proteção.

A redução de danos é uma abordagem aberta, uma compreensão aberta na questão das drogas. No tratamento ela é inclusiva. Ela recebe o dependente como ele vem, de acordo com a sua demanda, não com o serviço. Essa é a grande diferença da redução de danos. Ela não descarta a abstinência e até a procura. O grande processo terapêutico é fazer o usuário refletir sobre o uso da droga, saber o que ela faz com a sua vida e estimulá-lo a tentar viver sem a droga.

Dessa forma, qualquer medida que seja muito generalizada perde um pouco a relação individual de cada pessoa com a droga?

Exatamente. Não importam os meus 40 anos de experiência. Já tive pacientes que vieram se tratar comigo e não se deram bem. Foram para um AA (Alcóolicos Anônimos) e ficaram super bem, porque precisavam de um outro tipo de ideologia, de filosofia. Ninguém sabe qual é o processo que vai ajudar mais aquele cidadão ou aquela cidadã. Isso é um processo que vai ser descoberto dentro do projeto terapêutico.

Referências Bibliográficas

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Melcop AGT, Chagas DMM, Agripino Filho D, organizadores. O consumo de álcool e os acidentes de trânsito: pesquisa sobre a associação entre o consumo de álcool e os acidentados de trânsito nas cinco regiões brasileiras. Recife: CCS Gráfica e Editora; 2011 [acesso em 17 abr 2013]. Disponível em: http://ws.elance.com/file/Traffic_Accident_Report.pdf?crypted=Y3R4JTNEcG9ydGZvbGlvJTI2ZmlkJTNEMzMzNjQzNjYlMjZyaWQlM0QtMSUyNnBpZCUzRDMyNTU0Mzc=

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Nery Filho A, Medina MG, Melcop AG, Oliveira EM, editores. Impacto do uso de álcool e outras drogas em vítimas de acidentes de trânsito. Brasília (DF): Associação Brasileira dos Departamentos Estaduais de Trânsito (ABDETRAN); 1997.

Entrevista com:

4 Comentário

  1. O texto traz importante discussão e muitas informações para entedermos a dimensão que tem a problematica das drogas, bem como o papel do Estado na prevenção e tratamento dos dependentes. Parabéns Evaldo Melo.

  2. De fato o crack atingiu uma proporção não esperada pela população e os problemas decorrentes do uso da droga se agravam por todo o país. É fundamental que sejam implantadas políticas públicas efetivas para o tratamento dos dependentes da droga. A abertura de leitos na rede pública e a preparação de profissionais para lidar especificamente com o problema são pontos cruciais.

  3. Muito bom mesmo!!!! Nem conhecia Eval Melo, agora o admiro, me identifiquei com seus posicionamentos. Sem falar que acrescentou meus conhecimento sobre o tema o qual já pesquiso.
    Magna Huyara, estudante de Ciência Sociais da UFRPE.

  4. Muito bom, toda sua explicação sobre o tema, me ajudou bastante no meu PROJETO INTEGRADOR PELA FACULDADE MAURÍCIO DE NASSAU,faço o curso de Reabilitação de Dependentes Químicos e gostaria de fazer algumas citações sobre seu trabalho em si. Obrigada

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