“Se não enfrentarmos as desigualdades sociais pelo viés da distribuição global de recursos não alcançaremos a sustentabilidade ambiental necessária”. A afirmação é do pesquisador Carlos Machado, coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Como colaborador da rede Brasil Saúde Amanhã, Carlos investiga os impactos da atual crise ambiental na qualidade de vida das populações e no setor saúde no horizonte dos próximos 20 anos. Nesta entrevista, ele aponta o paradoxo de um modelo de desenvolvimento que, ao mesmo tempo, aumenta a expectativa de vida e compromete os sistemas naturais e a permanência da espécie humana no planeta. E questiona: “Certamente, hoje vivemos mais. Mas vivemos melhor?”.
Quais os impactos sociais da atual crise ambiental e quais os cenários para os próximos 20 anos?
Vivemos uma época de contradição em relação ao conceito de desenvolvimento. Relatórios globais apontam que, nos últimos 50 anos, a humanidade degradou o planeta Terra mais do que em toda nossa história pregressa; mais do que nos últimos 12 mil anos, quando teve início a agricultura, que foi a nossa primeira forma de produção econômica e social; mais do que nos últimos 200 anos, quando ocorreu a revolução industrial. Essa degradação compreende a perda de florestas e de biodiversidade; a poluição em todos os níveis da atmosfera, provocando desde buracos na camada de ozônio até as mudanças climáticas; a presença de poluentes de persistência nos solos, nas águas e na atmosfera, que estarão presentes no ambiente por décadas ou séculos; dentre muitas outras consequências irreversíveis. Ao mesmo tempo, o século 20 concentra inúmeras conquistas significativas para a saúde: reduzimos drasticamente a mortalidade infantil global, embora as taxas mantenham-se altas em bolsões de pobreza, presentes inclusive no Brasil; mais do que dobramos a expectativa de vida, que no início do século 20 era de 30 a 35 anos e hoje está em torno de 70 a 80 anos, dependendo do país; reduzimos e até eliminamos doenças. Então, o atual modelo de desenvolvimento degradou recursos naturais de um modo jamais visto, mas contribuiu, em parte, para conquistas que seriam inimagináveis há alguns anos. Isso nos coloca diante de um paradoxo.
No entanto, em longo prazo, o comprometimento dos ecossistemas do planeta e de seus recursos naturais causará um “efeito bumerangue”, que pode transformar todo esse sucesso em algo ilusório e temporário – como uma janela que se abriu e em breve se fechará. Essa percepção torna-se clara se considerarmos que nós, seres humanos, somos seres biológicos e dependemos dos sistemas de suporte à vida – da biodiversidade, dos solos, dos ciclos das águas, do clima – para sobreviver. No início do século 20 éramos, aproximadamente, 1,7 bilhão de habitantes no planeta. Hoje nós somos mais de 7 bilhões de seres humanos; aumentamos em quase quatro vezes a população da Terra. E não é apenas mais gente consumindo; o consumo per capta de recursos aumentou significativamente. Hoje cada um de nós consome muito mais água, energia, produtos químicos e gera muito mais resíduos e poluentes do que uma pessoa no início do século 20. Somos mais pessoas, demandando mais recursos naturais e poluindo mais. E a tendência é que esse processo se intensifique.
Como o atual modelo de desenvolvimento influencia a dinâmica de uso de recursos naturais e de preservação ou degradação ambiental?
O modelo hegemônico de desenvolvimento, adotado em termos planetários, gera e se alimenta de desigualdades: 20% da população mundial consomem 80% dos bens produzidos; enquanto 80% de todas as pessoas do mundo têm acesso, apenas, a 20% de tudo o que é produzido. Se, na lógica deste modelo de desenvolvimento, a qualidade de vida e saúde está associada ao nível de consumo, e se o padrão de consumo considerado ideal é o europeu ou norte-americano, muito rapidamente precisaremos de quatro planetas Terra para atender uma população global com o mesmo padrão de consumo de um cidadão médio da Europa ou dos Estados Unidos. Então, temos uma conta que não fecha, do ponto de vista da degradação presente, futura e, sobretudo, se quisermos enfrentar as desigualdades sociais e oferecer, para toda a população mundial, um padrão de vida equiparado aos desses países. Isso é impensável.
Portanto, a questão central da atualidade se resume a dois desafios. O primeiro é garantir a sustentabilidade dos sistemas de suporte à vida. É preciso proteger os mares, os rios, a biodiversidade, garantir espaços de vida adequados, reduzir a emissão de poluentes e a geração de resíduos. Todas essas são atividades que precisamos realizar para ontem, pois os atuais níveis de degradação ambiental superam a capacidade de resiliência do planeta e, consequentemente, a capacidade dos ecossistemas suportarem a vida. Mesmo se tudo isso fosse realizado hoje; se a partir de hoje não houvesse mais emissão de poluentes, sobretudo de combustíveis fósseis, ainda assim os processos já iniciados de mudanças climáticas não seriam interrompidos nos próximos anos. Isso já está em processo. E nós não paramos e não iremos parar, num futuro próximo, de gerar resíduos e poluentes. Além disso, precisamos enfrentar a questão das desigualdades sociais. E ela não pode ser enfrentada a partir do padrão de vida europeu ou norte-americano – e sim pela distribuição global de recursos e riquezas.
Em médio e longo prazo, quais os desdobramentos desse cenário para o setor saúde e a qualidade de vida das populações?
Falar de saúde é falar de qualidade de vida. Certamente, hoje vivemos mais. Mas vivemos melhor? Vivemos mais e vivemos mais doentes, consumidores da indústria farmacêutica. A indústria química teve dois momentos de expansão: a primeira e a segunda guerra mundial, especialmente por meio da indústria do petróleo, que ampliou a produção de materiais sintéticos, agrotóxicos e medicamentos. Hoje, tudo está repleto de substâncias químicas. Isso não significa que nós vamos adoecer por todas elas. Mas ter em nosso organismo 500 substâncias químicas a mais que uma pessoa no início do século 20 é impressionante. Isso significa que no período de cem anos nós estamos alterando, bioquimicamente, a composição do organismo humano. Com isso, alteramos também o nosso padrão de saúde: vivemos mais, mas com mais doenças, sobretudo as crônico-degenerativas, que não existiam anteriormente e que comprometem bastante a qualidade de vida. Não alterar este quadro significa dar continuidade à lógica, insustentável em médio e longo prazo, que nos permite dobrar a expectativa de vida, mas passar a maior parte de nossas vidas doentes.
Tudo isso impõe a necessidade de mudança do nosso padrão de vida. A degradação do meio ambiente gera impacto não só na carga de doenças infectocontagiosas e transmissíveis, devido às alterações que provoca no ciclo das águas e de vetores de doenças, por exemplo, como também na incidência de doenças crônicas, geradas pela poluição e pelo estresse das áreas urbanas – o que envolve violência e acidentes de trânsito. Mesmo se ter saúde se reduzisse a não estar doente, já teríamos um problema: a carga de doenças é cada vez maior em nossa sociedade. E se considerarmos que ser saudável é viver em completo bem-estar, com qualidade de vida e felicidade, perceberemos que vivemos em uma sociedade doente. De fato, vivenciamos um drástico aumento no padrão global de consumo, mas isso não significa que as pessoas estão mais felizes; significa que todos estão consumindo mais. No entanto, um maior padrão de consumo não se traduz, necessariamente, em bem-estar e felicidade. Cada vez mais pessoas têm carros, passam mais tempo paradas, estressadas, emitindo mais poluentes. Nas grandes cidades, prevalece a lógica da especulação imobiliária e praças e áreas arborizadas dão lugar a edifícios e estacionamentos, excluindo espaços coletivos de convivência e lazer, fundamentais para a qualidade de vida. Isso leva ao sedentarismo e, logo, a mais tempo de vida doentes.
O senhor afirma que desastres como enchentes e inundações não são naturais e, sim, produções sociais. Neste sentido, qual seria o papel do setor saúde na prevenção e na resposta a tais eventos?
O clima tem, naturalmente, um certo grau de variabilidade. Sob a perspectiva meteorológica, sempre houve chuvas, furacões, terremotos, tsunamis, secas. O que muda, na atualidade, é que esses eventos estão se tornando mais frequentes e mais intensos e a população está cada vez mais vulnerável a eles. Por isso, defendemos que esses desastres não são naturais – são uma produção social. A chuva e a estiagem são processos da natureza. Eles se transformam em desastres quando nós não temos condições de enfrentá-los. E, dentre essas condições de enfrentamento, está a resposta do setor saúde. Um exemplo atual é a crise hídrica de São Paulo. Em 1994, o Sistema Cantareira atingiu o mesmo nível de 4% registrado no início de 2015; isto é cíclico. Mas, este ano, esse processo se deu de forma mais prolongada e intensa, em comparação há vinte anos. E isso traz consequências diretas para a Saúde. Com a crise hídrica as pessoas começam a armazenar mais água em casa, o que aumenta a quantidade de criadouros do mosquito Aedes aegypti e o risco de uma epidemia de dengue. Por isso é preocupante que a crise hídrica que atingiu São Paulo chegue também ao Rio de Janeiro e a outras grandes cidades brasileiras sem que nenhuma política pública tenha sido efetivamente implementada, não só em relação à geração bruta de água para a população, mas também no que diz respeito à recomposição de florestas e a uma série de ações que contribuiriam para a combinação da preservação dos ecossistemas com a geração de água de qualidade. Nada disso ocorreu nos últimos 20 anos.
Dados globais e brasileiros apontam que os desastres apresentam um padrão: eles afetam recorridamente, as populações mais pobres. São justamente as pessoas que têm mais dificuldade econômica e social de se recuperar e reestruturar após um desastre, em locais onde é comum a ausência ou descontinuidade de serviços públicos para recuperação da saúde e reconstrução da vida das pessoas afetadas. Trata-se de uma sobreposição de riscos. Na região de Manguinhos, no Rio de Janeiro, por exemplo, as formas de uso e ocupação do solo levam ao maior risco de violência, acidentes de trânsito, doenças infectocontagiosas, transmitidas por vetores e causadas pela poluição do ar e das fontes de água. Tudo isso impacta diretamente o setor saúde. E, nesse contexto, o setor saúde também se encontra vulnerável: diversas unidades de saúde são frequentemente afetadas porque se encontram em área de risco e, repetidas vezes, são reformadas permanecendo no mesmo local inadequado. Infelizmente não temos, hoje, no Brasil, uma boa capacidade de resposta a esses eventos. O setor saúde responde como sempre respondeu: a partir das emergências, mas sem levar em conta a tendência de que, no futuro, os desastres serão cada vez mais frequentes e mais graves. A perspectiva é que esse quadro se mantenha e se agrave no horizonte dos próximos 20 anos, pois apesar dos altos investimentos em sistemas de monitoramento e alerta de desastres pouco avançamos em relação à prevenção.
Considerando as atuais políticas brasileiras para proteção e conservação do meio ambiente, quais os cenários para o setor saúde no horizonte dos próximos 20 anos?
Globalmente as políticas sociais e ambientais vêm sofrendo retrocessos importantes no que diz respeito à proteção de recursos naturais e ecossistemas. No Brasil não é diferente – vide a aprovação do Código Florestal. Temos um problema sério em nosso país: além de escassas, as políticas ambientais são fragmentadas, descontinuadas e por isso não geram resultados concretos. Não temos, hoje, uma política de desenvolvimento urbano para uso e ocupação do solo de forma segura e sustentável, que considere a prevenção de desastres e o bem-estar da população. A lógica da especulação imobiliária prevalece nas cidades brasileiras e impõe a concentração de edifícios, ocupação de encostas e de margens de rios. Outra questão urgente é a expansão do agronegócio e, consequentemente, do desmatamento e das queimadas. O Brasil vem, ano a ano, aumentando a área de desmatamento. Mesmo nos anos em que houve redução de desmatamento e queimadas, esse processo não foi acompanhado pela recomposição das florestas. Com tudo isso, aumenta-se o risco de doenças transmissíveis por vetores e de ocorrência de surtos, além de doenças crônicas relacionadas à poluição e ao estresse.
Portanto, não esperamos, para as próximas décadas, uma mudança dessa perspectiva alarmante. Pelo contrário, o que se desenha é o agravamento dos desastres, devido às ameaças naturais cada vez mais frequentes e intensas e ao aumento da vulnerabilidade social e ambiental da população, que vem crescendo por conta da degradação ambiental e do processo social de uso e ocupação do solo. A tendência é que crises econômicas cíclicas e a acentuação de bolsões de pobreza constituam grupos ainda mais vulneráveis, social e ambientalmente. Olhando para os próximos 20 anos, não temos, hoje, nenhum indício de que essa situação irá melhorar.
Que medidas em relação ao meio ambiente e à saúde devem ser tomadas no presente para garantir uma sociedade sustentável, com saúde e qualidade de vida, no futuro?
Primeiramente, uma política de proteção aos recursos naturais: das águas, das florestas, dos solos. Sem isso não é possível avançar. Essa política deve incluir, entre outros aspectos, a produção de alimentos sem o uso de agrotóxicos e sem ocasionar o desmatamento – como vivenciamos hoje. Também é preciso considerar que, no Brasil, mais de 80%da população vive em áreas urbanas. Então é preciso qualificar esses espaços, melhorar as condições de vida, investir em meios sustentáveis para o transporte público e a produção de energia limpa. E o setor Saúde deve ter um papel de liderança neste processo, pois é um grande gerador de resíduos e de poluição. Outro aspecto que precisa ser enfrentado de forma adequada é a ampliação da geração de empregos verdes, sustentáveis, e a garantia de uma produção industrial limpa. A questão trabalho-renda é central em nossa sociedade e para avançarmos do ponto de vista ambiental é imprescindível investir em um sistema produtivo limpo, com geração de energia a baixo impacto ambiental.
E, inevitavelmente, é preciso enfrentar a questão das desigualdades – e isso não pode ser feito a partir do padrão de vida, consumo e poluição do cidadão médio europeu ou norte-americano. Precisamos repensar o acesso e a redistribuição de recursos e riquezas em nível global. Se não enfrentarmos as desigualdades sociais pelo viés da distribuição global de recursos não alcançaremos a sustentabilidade necessária. E redistribuir riquezas em nível global significa frear o atual padrão de produção e consumo – uma mudança radical em nossa sociedade capitalista e industrial. Em outras palavras, para reduzir o consumo e a poluição global será necessário um novo sistema econômico.
*Foto da home: Saúde Amanhã
Fonte: Machado C. Novos padrões de vida e consumo para o planeta e a saúde. [entrevista na internet]. Saúde Amanhã; 03 Nov 2015. Entrevista concedida a Bel Levy. [acesso em 11 maio 2016]. Disponível em: http://saudeamanha.fiocruz.br/novos-padr%C3%B5es-de-vida-e-consumo-para-o-planeta-e-sa%C3%BAde
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