Até o fim de 2017, segundo estudo do Banco Mundial, mais de 3,6 milhões de brasileiros estarão vivendo com menos de R$ 1,00 por dia, juntando no mesmo cesto da pobreza-extrema histórias de vida de homens e mulheres e crianças marcadas pela carência absoluta e unidas pela vulnerabilidade de suas condições de vida. As formas como os conhecimentos da Saúde Coletiva devem promover ações para a mitigação dessa situação exige que se olhe estas mulheres, crianças e homens de frente, com novas concepções sobre as formas de trabalho e formação. Estes foram alguns dos conceitos transmitidos por José Ricardo Ayres, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM/USP) e convidado do Centro de Estudos Miguel Murat de Vasconcelos (CEENSP), da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), organizado conjuntamente com a revista Ciência & Saúde Coletiva como atividade de divulgação do número temático Política pública e papel institucional do Ministério da Saúde no Brasil (Ciênc. saúde coletiva – vol.22 nº 5 – maio de 2017).
A atividade aconteceu em 23 de agosto e foi aberta por Cecília Minayo, pesquisadora da ENSP e editora-chefe de Ciência & Saúde Coletiva, que falou da alegria de ver o tema da edição, que buscou fazer a análise de políticas, planos e programas desenvolvidos pelo Ministério, inspirando o Centro de Estudos. Trouxe também os atuais números que expressam o trabalho de C&SC. “Desde 2011, somos a revista da área que mais publica no conjunto das edições em Saúde Coletiva. Editamos uma revista por mês com no mínimo 30 artigos. Em 2016, alcançamos a marca de 75% de nossos textos publicados também em inglês e tivemos 151 autores estrangeiros, provenientes da Espanha, Portugal, Colômbia, México, Estados Unidos, Peru e Chile, e em menor quantidade da Austrália, Inglaterra, Alemanha e Canadá. Infelizmente, mesmo com todos esses índices e seguindo todas as solicitações, não temos tido êxito junto à Capes para mudar nossa posição no ranking Qualis, mas acredito que nossa insistência é quem vai levar esse reconhecimento. Sinto meu entusiasmo renovado ao falar desse processo de 21 anos à frente da edição da revista”.
Na sequência, os editores convidados da edição temática, Elyne Montenegro Engstrom e Nilson do Rosário Costa destacaram a articulação dos artigos publicados no número com o tema trazido para o debate pelo convidado, a quem rapidamente chamaram à mesa.
Numa fala clara, direta e extremamente conceitual, José Ricardo Ayres apresentou a construção desse conceito e caminhos necessários para sua melhor compreensão. A primeira manifestação sistemática da palavra vulnerabilidade na área da saúde apareceu nos textos iniciais da Coalizão Global de Políticas contra a AIDS, fruto de um encontro internacional, em 1992, e publicado no ano seguinte. “Comumente, o conceito de vulnerabilidade é entendido como o conjunto de aspectos individuais, biológicos e estruturais em vinculação com o campo dos Direitos Humanos. O contexto brasileiro o conferiu peculiaridades quando passou a ser aqui desenvolvido”, ressaltou Ayres, destacando a articulação que o conceito promoveu junto à tradição crítica da Epidemiologia, à Psicologia Social e à Educação freireana. “Por trazer diretamente o modelo de atenção integral, possibilitando abordagens e diálogos impulsionados pelo movimento das mulheres e da saúde mental, nossa ideia de vulnerabilidade tem um caráter radical tanto em ir à raiz dos problemas como na clareza em buscar as soluções.”
No início dos anos 2000, o conceito vulnerabilidade foi tomado, como identificou Ayres, por uma “avidez” que buscou uma politização vazia do mesmo e alçando-o ao modismo acadêmico, fazendo de seu uso quase como um adjetivo, carregado de uma ideia identitária. “O desafio é como construir junto com as pessoas envolvidas, buscando novas formas de abordar e de agir em saúde. É importante entender o conceito de forma integrada e atento à questão pragmática. Temos de pensar o individual na perspectiva da intersubjetividade, e relacioná-lo com o social não como um elemento abstrato, mas no contexto das interações. Ter o foco menos na identidade e mais nas relações sociais dadas em base das situações do cotidiano, entendendo assim as relações – e não somente as pessoas – como vulnerabilizadas e negligenciadas.
Um conceito-síntese: Ayres tem defendido o conceito de vulnerabilidade como um conjunto articulado de sínteses conceituais e de diretrizes práticas voltado à transformação das dimensões comportamentais, sociais e político-institucionais relacionadas a diferentes agravos de saúde e suas consequências indesejáveis – situações de sofrimento, limitação e de morte – que envolvem indivíduos e grupos populacionais específicos. Tal perspectiva é sustentada por um percurso epistemológico que parte do agravo em si em direção a sua compreensão clínica e aferição de sua dispersão na sociedade (dimensão epidemiológica); compreensão dos aspectos sociais e de origem (competência das Ciências Sociais e Humanas em saúde) e desembocando em ações e programas que efetivem a superação e/ou mitigação do agravos, conceituadas por ele como sínteses médico-sanitárias.
A construção dessa perspectiva, segundo Ayres, localiza a vulnerabilidade em um plano intermediário, ao mesmo tempo distinto e que se monta entre o polo formal da racionalidade, intrínseco ao pensamento analítico-matemático, e o polo hermenêutico, intrínseco a uma racionalidade compreensivo-interpretativa, o que confere sua relevância e novidade. “O marco da vulnerabilidade e dos direitos humanos é relativamente novo e sua incorporação às práticas de saúde são incipientes. Contudo, já é possível observar que, com base nele e de forma mais ou menos estruturadas, alguns avanços se podem notar”, destacou o docente, elencando como pontos positivos a construção de um diálogo entre a Epidemiologia e outras formas de conhecimento científico e não científico para o enfrentamento prático da questão; o surgimento de tecnologias de prevenção e práticas de atenção à saúde mais sensíveis às necessidades, valores e relações intersubjetivas concretas junto com modos de interação mais dialógicos entre pacientes e usuários; a promoção de articulação intersetorial com setores como Educação e Segurança para ações de prevenção, e de políticas mais democráticas e efetivas. Como negativos, listou uma teorização restrita em poucos autores sobre o tema e uma certa rarefação teórica em tentativas especulativas quando distantes do encontro com as dimensões práticas e cotidianas das relações vulnerabilizadas.
Se há um eixo a ser perseguido para uma melhor compreensão e ação frente à vulnerabilidade, Ayres destacou a necessidade de a Saúde Coletiva manter a perspectiva dos Direitos Humanos. “São os Direitos Humanos o horizonte ético para o compromisso e o diálogo com os outros”.
Assista à abertura do CEENSP, com Cecília Minayo:
Assista à aula “Vulnerabilidade como desafios para as políticas públicas”, com José Ricardo Ayres
*Foto da home: Virginia Damas/CCI/ENSP/Fiocruz
tos: Virginia Damas/
Fonte: Dias BC. Revista Ciência & Saúde Coletiva e ENSP debatem sobre vulnerabilidade. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Saúde Coletiva- Abrasco; 2017 Ago 31. [acesso em 05 set 2017]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/noticias/saude-da-populacao/revista-ciencia-saude-coletiva-e-enspfiocruz-debatem-sobre-vulnerabilidade/30383/
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Esse assunto deveria ser sempre discutido, pois é muito importante que todos saibam que em cada região do nosso imenso país as condições de vida são bem diferentes e a diferença social é enorme, desde o Brasil colônia existe essa vulnerabilidade social.