Há um movimento de mudança que pode ser observado pelo apoio sem precedente ao waiver das patentes, pela ideia de prover os países em desenvolvimento das vacinas necessárias. Resta a saber se a ambição desse movimento está à altura do desafio de prováveis pandemias
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), foram confirmados 171.222.477 casos de Covid-19 e 3.686.142 mortes[1] e o total de doses de vacinas aplicadas somava pouco mais de 1.5 bilhão[2]. No discurso de abertura da 74ª sessão da Assembleia Mundial da Saúde, em 24 de maio, o diretor geral da OMS, Tedros Adhanom, disse que, do total de vacinas administradas, mais de 75% foram concentradas em apenas dez países.
O tema da assembleia – “Acabar com esta pandemia, prevenindo a próxima: construindo juntos um mundo mais saudável, seguro e justo” – era adequado, ainda que pareceria sugerir uma conjuração de forças que, uma vez encantadas, varreriam a Covid-19 e apontariam para o caminho saudável, seguro e justo, para todos e não somente para uma minoria que, quando quer, abre estradas assim. Para isso, no entanto, era preciso ter as armas necessárias. O diretor geral da OMS fez críticas ao modelo de financiamento da organização. “Tudo tem que ser financiado. Não podemos pagar as pessoas com louvores. A OMS não ficará mais forte sem um financiamento sustentável”, disse Tedros Adhanom no encerramento da sessão.
A OMS tem hoje mais de 7 mil funcionários, distribuídos em mais de 150 países, seis escritórios regionais e uma sede em Genebra. O orçamento dessa extensa organização, responsável pela coordenação dos esforços em saúde no plano global, divide-se entre o somatório das quotas nacionais, calculado, por um lado, com base no PIB e na população dos respectivos países e, por outro, com contribuições voluntárias, que tradicionalmente, representavam uma fração do total das quotas nacionais. A situação mudou nos últimos anos e hoje essas doações representam 80% do orçamento da OMS. Nesse contexto, que valor dever-se atribuir às inúmeras declarações dos Estados membros em favor do fortalecimento do papel da OMS, ainda mais sonoras agora, no meio da pior catástrofe sanitária de que se tem notícia? Que seriedade emprestar às críticas de mau funcionamento, ainda que algumas possam ter mérito?
Entre as trinta resoluções adotadas pela assembleia, uma se destaca pela relevância à luz do tema escolhido para a 74ª sessão. Com efeito, a resolução intitulada “Fortalecendo a preparação da OMS para habilitá-la a responder a emergências de saúde”[3] tem o objetivo de criar um grupo de trabalho sobre fortalecimento da OMA, de modo a habilitá-la a responder melhor a emergências sanitárias. O GT deverá guiar os seus trabalhos pelos achados e recomendações contidos em três relatórios, independentes uns dos outros, considerados pela Assembleia Mundial da Saúde: i) Painel Independente para a preparação e resposta da Organização a pandemias; ii) Comitê de Revisão do Regulamento Sanitário Internacional e; iii) Comitê Independente de Vigilância e Consulta do Programa da OMS sobre Emergências de Saúde. O GT recém criado deverá apoiar-se nos três relatórios acima e reportar-se à 75ª sessão da Assembleia Mundial da Saúde, em maio de 2022.
O Regulamento Sanitário Internacional (RSI), concluído em 2005 e em vigência desde 2007, foi a resposta da OMS à Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars, nas siglas em inglês), que eclodira na China em 2002. O documento deveria funcionar como um guia para casos de emergências sanitárias de interesse internacional. Dois fatores, no entanto, interferem em seu funcionamento, desde o início. O primeiro refere-se ao tempo de decisão política e o segundo refere-se à falência do sistema multilateral quando não ocorre uma cessão das soberanias nacionais. Nesse contexto, a revisão deveria sugerir medidas para agilizar o funcionamento do RSI. As perspectivas, como se poderá imaginar, não parecem promissoras[4].
O Programa de Emergências Sanitárias, por sua vez, foi criado em 2016, para melhorar a resposta da OMS ao surto do Ebola na África Ocidental e outros que se seguiram. O programa é resultado do trabalho de um Comitê Independente de peritos. Tal como o RSI, para o programa ser efetivo depende de decisões políticas que considerem as suas recomendações e estimulem ações nacionais concretas. Como se pode ver, tanto o RSI como o programa são consequência da lentidão de resposta da OMS e dos Estados membros, frente a emergências sanitárias de gravidade crescente[5].
O Painel Independente, criado pela 73ª sessão da Assembleia Mundial da Saúde, produziu e encomendou uma série de documentos de apoio, que foram considerados pela Cúpula do G-20 sobre Saúde Global e depois, naturalmente, pela 74ª sessão da AMS. Os dois documentos mais importantes do Painel Independente, ademais do relatório final, são o que se refere à suspensão temporária de patentes (o waiver) com vistas a aumentar a oferta mundial de produtos de e para a saúde, e o que diz respeito à oportunidade de concluir acordo multilateral robusto sobre resposta a pandemias, ou, mais amplo, sobre saúde global[6].
A questão do waiver de patentes terá que aguardar a decisão dos Estados membros da OMC, que terá de ser por consenso. Não há como ignorar que a mesma divide a preferência, por um lado, dos países em desenvolvimento a que agora, de maneira surpreendente, se unem os países sedes das maiores empresas farmacêuticas do mundo e, de outro, as próprias big pharmas. Por primeira vez, estas últimas aparecem abandonadas por seus governos, que parecem entender que medidas extraordinárias são necessárias em tempos extraordinários. As big pharmas, naturalmente, opõe-se a qualquer iniciativa que as possa privar de seus enormes lucros, garantidos por um regime de propriedade intelectual que não considera o papel central dos insumos na solução de problemas de saúde pública e segue a lógica comum do comércio internacional, sem priorizar ou destacar a saúde.
A crise sanitária que vivemos talvez seja o que faltava para uma revisão do regime de patentes, destacando a centralidade do complexo industrial da saúde para a solução de problemas sanitários e ensejando soluções atualizadas sobre as flexibilizações internas, bem como a Declaração de Doha sobre Propriedade Intelectual e Saúde Pública. Na atual conjuntura, é forçoso reconhecer que TRIPS não previu a explosão formidável de uma pandemia, com impacto catastrófico em todos os quadrantes. Ignorar os fatos e as necessidades atuais e manter somente as queixas e ameaças parece um posicionamento anacrônico e fora de lugar das grandes empresas que compõe o complexo industrial da saúde.
A questão do tratado sobre o fortalecimento da resposta a pandemias ou, mais amplo, sobre saúde global, aparentemente gera mais dúvidas que certezas, ao menos pelo fato de não haver decisão sobre a primeira ou a segunda opção. O relatório do Painel Independente exibe as opções, as características específicas de cada uma, as modalidades de acordos, mas não propõe uma solução definitiva.
Imagina-se que o GT agora criado, ao levar em consideração os três relatórios acima, irá propor encaminhamentos que desemboquem em algum tipo de acordo, mas como se viu acima, o produto final do GT, o relatório, somente deverá ser considerado em 2022, na próxima Assembleia Mundial da Saúde. Não há pressa, como se pode concluir, como tampouco houve pressa quando eclodiram a Sars e o Ebola. Não é possível que se tenha de esperar tanto tempo para concluir o que talvez já se possa antecipar: a criação de um novo GT para formular os pontos de referência para a elaboração de um texto básico, que possa servir para a elaboração de um acordo internacional. E quando finalmente se consiga adotar um tal acordo, que autoridade máxima irá garantir a sua implementação? No mundo multilateral há sempre um espaço vazio entre resoluções adotadas por consenso e as respectivas medidas de implementação que acarretam. Se é tão necessário e urgente um acordo, por que deveria nascer da Assembleia Mundial da Saúde e não da Assembleia-Geral das Nações Unidas, o foro político universal?
A situação em muito se assemelha a criação, em 13 de novembro de 2020, na OMS, do conselho sobre a economia da saúde para todos. Ao anunciar o lançamento de mais essa estrutura interna, Tedros Adhanom disse que os investimentos em saúde, por mais necessários que sejam, não são tudo. É preciso antes pensar como se valoriza a saúde. O diretor geral tem razão quando acrescenta que a saúde não é um custo, mas um investimento. Contudo, temos visto significativos desinvestimentos nos sistemas nacionais de saúde, um dos principais fatores na equação do desastre sanitário que se assiste mundo afora na pandemia da Covid-19, mas que escapam à competência da organização.
Em 1º de junho, o Washington Post publicou uma carta assinada pela diretoria geral do FMI, da OMS, da OMC e pelo presidente do Banco Mundial, na qual manifestam apoio à ideia de acelerar a imunização nos países em desenvolvimento. Para isso, propõem injetar US$ 50 bilhões na OMS, na plataforma ACT-A (Access to Covid-19 Tools Accelerator)[7] e no da Covax (Covid-19 Vaccines Access). A iniciativa merece elogios, desde logo, mas a questão que persiste é como executá-la. No primeiro parágrafo do presente artigo dizia-se que o número de doses de vacinas administradas até o presente ascendia a pouco mais de 1.5 bilhão. A população mundial é de quase 8 bilhões. Tendo em conta que todas as vacinas, com a exceção de uma, exigem ao menos duas, e talvez três doses, a quantidade necessária de doses elevar-se-ia a mais de 20 bilhões. Nesse contexto, é legítimo perguntar se o gesto dos quatro diretores gerais atende a uma decisão política, ainda que irrealizável, ou a uma possibilidade real.
No âmbito da sociedade civil global observam-se posicionamentos críticos sobre a lentidão de respostas efetivas às desigualdades e insuficiências na resposta à pandemia, em suas dimensões sanitárias e econômicas e suas graves consequências sociais, em um mundo onde democracia política e justiça social e ambiental/climática estão seriamente ameaçadas. As manifestações da Agora dos Habitantes da Terra sobre o texto aprovado pela Cúpula de Saúde do G20 e as considerações da Third World Network sobre o efeito da postergação dos debates sobre o tratado pandêmico, assim como as considerações sobre a inocuidade de uma suspensão de patentes sem efetiva transferência de conhecimento e capacidade de produção da vacina e outros insumos, marcam o posicionamento de várias coalizões e iniciativas. Até lá os movimentos sociais prometem se mobilizar para incidir no conteúdo e alcance do mesmo, mas também pressionar por medidas imediatas no enfrentamento da pandemia, inclusive em torno à evolução na OMC e das reuniões do G7, ainda em junho, e do G20, em outubro.
Há um movimento de mudança que pode ser observado pelo apoio sem precedente ao waiver das patentes, pela ideia de prover os países em desenvolvimento das vacinas necessárias. Resta a saber se a ambição desse movimento está à altura do desafio de prováveis pandemias. A Covid-19 representa um ponto de inflexão na história da humanidade. A resposta que daremos a esse movimento de mudança que parece surgir definirá o futuro que teremos, não necessariamente o futuro que queremos.
Paulo M. Buss é professor Emérito da Fundação Oswaldo Cruz e coordenador do Centro de Relações Internacionais em Saúde (CRIS/Fiocruz.)
Santiago Alcázar é diplomata, pesquisador e assessor sênior do Centro de Relações Internacionais em Saúde (CRIS/Fiocruz).
Luiz Augusto Galvão é doutor em Ciências, pesquisador e assessor sênior do Centro de Relações Internacionais em Saúde (CRIS/Fiocruz)
[1] Dados de 3 de junho de 2021.
[2] O dashboard da OMS pode ser acessado em https://covid19.who.int
[3] A resolução pode ser acessada em https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/WHA74/A74_ACONF2-en.pdf
[4] O leitor interessado poderá acessar o relatório da revisão do RSI em https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/WHA74/A74_9Add1-en.pdf
[5] O relatório do Comitê Independente de Vigilância e Consulta do Programa da OMS sobre Emergências de Saúde pode ser acessado em https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/WHA74/A74_9Add1-en.pdf
[6] Esses dois documentos, bem como todos os demais do Painel Independente podem ser acessados em https://theindependentpanel.org
[7] O ACT-A, como se sabe apoia-se nas colunas de diagnósticos, medicamentos, vacinas e fortalecimentos dos sistemas de saúde. A coluna de vacinas é a COVAX.
Por Paulo M. Buss, Santiago Alcázar e Luiz Augusto Galvão – Le Monde Diplomatique Brasil . 10/06/2021
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