Em notícia anterior tivemos a oportunidade de apresentar o documento “If you could do one thing...” (Se você pudesse fazer uma coisa…), lançado em janeiro deste ano pela Academia Britânica de Ciências Sociais e Humanas. Dentre as propostas elaboradas por renomados cientistas, destacamos a de Alan Maynard, da Universidade de York, sobre o papel do custo-efetividade na evidência de redução das desigualdades (The Role of Cost-Effectiveness Evidence in Reducing Inequality). Contudo, não poderíamos deixar de relatar mais uma das propostas apresentadas, principalmente pela sua potencial aplicabilidade na realidade brasileira.
Apesar da longa história que a Inglaterra possui na elaboração e implementação de estratégias com foco na redução das desigualdades e da reforma social e educacional que ocorreu a décadas passadas, houve pouco progresso no que se refere à igualdade de oportunidades, condição fortemente associada ao nível de escolaridade e sua qualidade. O impacto negativo da origem social sobre os resultados apresentados pelas crianças e seu bem-estar persistiram, ou até mesmo aumentaram. Por isso, a proposta de Edward Melhuish, da Universidade de Londres, sobre impacto da educação e de cuidados na primeira infância na melhoria do bem-estar, é tão pertinente. Além disso, vem bem ao encontro a uma das nossas maiores prioridades na redução das desigualdades sociais em saúde: a melhoria no indicador de educação infantil.
O que chama atenção para essa proposta é que ela não está unicamente relacionada à educação. Envolve o incentivo a uma intervenção política que tem como base a alocação de recursos financeiros para melhorar as oportunidades de vida na primeira infância através da universalidade da prestação de serviços em centros de educação infantil, que integram educação, assistência social e psicológica à criança, apoio aos pais e serviços de saúde. Melhor ainda é saber que já foram implantados e que já possuem avaliações positivas.
O autor do projeto aposta no fato de que as capacidades de aprendizagem são formadas principalmente durante os primeiros anos da infância e este é o momento mais eficaz para melhorar a vida de crianças, principalmente as mais carentes. Edward Melhuish diz que é imperativo agir não apenas em âmbito educativo e social, mas também econômico. Reforça a ideia de que ‘sistemas ideais’ são aqueles que combinam qualidade, disponibilidade e acessibilidade, ou seja, fornecer ‘qualquer’ creche ou pré-escola não é suficiente, a qualidade do ensino é fundamental para obtenção de efeitos benéficos em longo prazo, além da intersetorialidade das ações.
Na Inglaterra, as crianças só tem direito ao ensino público gratuito a partir dos 4 anos de idade. Os centros ‘Sure Start’ acolhem crianças a partir dos 2 anos de idade com aprendizagem precoce, bem como oferece uma rede de cuidadores e creches. Há também oferta de informações e atividades para as famílias,
para que os pais possam fazer ‘escolhas informadas’, como ter uma alimentação saudável. Os centros também oferecem apoio, por exemplo, no caso de solicitação de benefício ou aconselhamento de dívida, além de educação para adultos, reintegração ao mercado de trabalho, e serviços de saúde para a criança e a família. A ideia central é concentrar os recursos em melhorar as oportunidades de vida na primeira infância de maneira universal efetivamente reduzindo a desigualdade, aumentando o bem-estar e a produtividade econômica.
Como funciona um centro de educação infantil ‘Sure Start’?
A Inglaterra vem transformando seus serviços para a primeira infância nos últimos 15 anos, e os centros de educação infantil ‘Sure Start’ tem sido um dos componentes chaves para essa mudança. Desde 2004, quando o governo publicou uma estratégia para o desenvolvimento de uma rede nacional de centros ‘Sure Start’, o objetivo principal tem sido melhorar a vida de crianças e suas famílias, com um foco particular sobre aqueles que mais precisam. Os centros trabalham para garantir que todas as crianças estejam devidamente preparadas para a escola, independentemente da sua origem ou situação familiar.
A estrutura inicial dos centros resultou em uma abordagem um pouco fragmentada, gerando um sucesso parcial do projeto. No entanto, em 2006, uma visão mais intersetorial foi aplicada aos centros aumentando a provisão de colaboração e de conexão entre os setores de ação. Além disso, o aumento da qualidade e a larga escala de abrangência foram fatores importantes para a duração e sucesso dos centros. Anteriormente os centros se concentravam apenas em áreas pobres, mas o sucesso só ocorreu com uma visão mais universalista de atendimento e apoio social.
Atualmente existem três tipos de centros que oferecem diferentes níveis de serviços: centros completos sedeados em torno de creches, centros como parte de escolas e centros que funcionam para o atendimento às famílias. A utilização destes três modelos torna possível o envolvimento dos centros em relação à formulação de políticas e introduz uma maior responsabilidade no que diz respeito a sua eficácia.
Dentre os resultados obtidos por aqueles que frequentam os centros podemos citar os das crianças de três anos de idades filhos de pais adolescentes ou não adolescentes. Os que participam dos centros apresentaram um comportamento social positivo e uma maior independência. O ambiente de aprendizagem em casa e o relacionamento entre pais e filhos também ficaram melhores, bem como houve um aumento do uso de serviços de saúde. As crianças de 5 e 7 anos de idade apresentaram melhorias principalmente na saúde, com menores taxas de excesso de peso e melhor saúde geral própria e de seus pais. Apesar da perspectiva universal dos centros ‘Sure Start’ e de ter revelado ser uma intervenção capaz de trazer melhorias em nível populacional, as crianças mais pobres foram as que se beneficiaram mais.
Em média, o custo anual de cada criança que frequenta os centros ‘Sure Start’ (2009-10) é em torno de £ 1.300 (aproximadamente R$ 5.000,00), ou £ 4.860 (aproximadamente R$ 19.000,00) para o período desde o nascimento até a idade de quatro anos. Apesar de parte desses recursos ser compensada de certa forma por meio do próprio centro, ao possibilitar o retorno dos pais ao mercado de trabalho, avaliar o custo-efetividade dessas micro intervenções é muito importante (referindo-se a nossa primeira notícia sobre o documento “If you could do one thing...” e a proposta de Alan Maynard). Além disso, é fundamental ter em mente que parte do sucesso da formação e dos resultados de uma criança depende da cultura e do contexto social em que ela está inserida, somados a atuação fundamental dos pais. Melhorar os desfechos em saúde e educação das crianças contando somente com a ação dos ‘centros’ pode ser uma tarefa muito árdua e fadada ao insucesso se não forem levados em conta esses pilares de formação da criança. Isso não significa dizer que devemos desistir de intervenções de educação infantil. Pelo contrário, devemos investir em ações como as desenvolvidas pelos centros “Sure Start”, cuidando para que a melhoria na educação seja mantida nos anos subsequentes, caso contrário o efeito de tais ações desaparece.
Na Inglaterra entende-se que a experiência pré-escolar bem sucedida é fundamental para o futuro das crianças, pois além de beneficiar a saúde, aumenta as habilidades de enfrentamento, o sucesso no mercado de trabalho, e consequentemente, aumenta o potencial social e econômico de seu país. No entanto, para atingir bons resultados, é necessário que haja colaboração entre diferentes setores, especialmente entre saúde e educação, prestação de serviços de qualidade que sejam replicáveis em larga escala, e ações que tenham impacto sobre toda população. A educação pré-escolar não deve ser uma estratégia apenas para os grupos desfavorecidos socialmente. É um meio de promover o desenvolvimento educacional e social para todos, e deve ser vista como parte da infraestrutura para o desenvolvimento econômico do país. A implementação de políticas locais deve ser sempre direcionada para ações nas quais as autoridades possam melhorar a saúde de suas comunidades e onde o foco seja a redução das desigualdades sociais em saúde.
Referências Bibliográficas
House of Commons Education Committee. Foundation Years: Sure Start children’s centres. Report. London; 2013. (Fifth Report of Session 2013–14). [acesso em 10 abr 2014]. Disponível em: http://www.publications.parliament.uk/pa/cm201314/cmselect/cmeduc/364/364.pdf
“If you could do one thing…” Nine local actions to reduce health inequalities. London: British Academy; 2014 [acesso em 10 abr 2014]. Disponível em: http://www.britac.ac.uk/policy/Health_Inequalities.cfm
Maynard A. The Role of Cost-Effectiveness Evidence in Reducing Inequality. In: “If you could do one thing…” Nine local actions to reduce health inequalities. London: British Academy; 2014. p. 112-121. [acesso em 15 abr 2014]. Disponível em: http://www.britac.ac.uk/templates/asset-relay.cfm?frmAssetFileID=13286
Sure Start Children’s Centres. [acesso em 10 abr 2014]. Disponível em: http://www.foundationyears.org.uk/making-it-happen/sure-start-children-centres/
The “Core Purpose” of Sure Start Children’s Centres. [acesso em 10 abr 2014]. Disponível em: http://www.foundationyears.org.uk/wp-content/uploads/2011/10/Core_purpose_of_Sure_Start_Childrens_Centres.pdf
Por Gabriela Lamarca e Mario Vettore . 24/07/2014
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