Os benefícios econômicos de grandes empreendimentos, especialmente em regiões pobres, figuram entre os mais fortes argumentos em prol de sua instalação, seja via iniciativa pública ou privada. O que se mantém a sombra desse modelo de desenvolvimento, porém, são os impactos sociais e ambientais causados pelos investimentos. Ferramentas como o Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil atuam contra essa “invisibilidade”. Com mais de 500 casos registrados com detalhes em todo o País, o projeto é uma ferramenta que ajuda os pesquisadores a lidarem com desafios muitas vezes alheios a outros ramos acadêmicos: de pressões internas a ameaças de corporações.
Resultado de um projeto desenvolvido em conjunto pela Fiocruz e pela Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), o Mapa existe há cinco anos e foi lançado com 297 registros. Desde o mapeamento inicial, o objetivo é dar apoio às populações e grupos atingidos e dar subsídios às instituições que defendam seus interesses. Dos resultados colhidos até agora, as informações já subsidiaram pesquisas e estudos em diversas áreas, além de influenciar, inclusive, leis e decisões judiciais em benefício das comunidades afetadas, como relata o pesquisador Diogo Rocha, integrante da equipe do Mapa. “Consideramos que, ao conhecer a história de luta de povos e comunidades que enfrentaram problemas semelhantes, cada um pode reconhecer que sua luta não é isolada, e que há outras pessoas por aí enfrentando situações semelhantes”, comenta o pesquisador. Ele acrescenta que o banco de dados também permite às pessoas conhecerem as estratégias que deram certo contra processos e empreendimentos, mesmo aquele que pareciam definitivos ou inevitáveis. No ano passado, o projeto também gerou um livro, Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil: o Mapa de Conflitos, publicado pela Editora Fiocruz.
“A receptividade ao projeto tem sido muito boa em todos os eventos nos quais participamos, principalmente naqueles em que estão presentes representantes de povos e comunidades envolvidos em conflitos, estejam eles já retratados no Mapa ou não”, comenta Rocha, ao acrescentar que, recentemente, o projeto fechou uma parceria com o Ministério Público Federal (MPF) para que os números do Mapa integrem o sistema de informações do órgão. “Esperamos que eles, como todas as pessoas, comunidades e grupos envolvidos nas lutas socioambientais se apropriem cada vez mais do Mapa. Ele está aí para ser usado”, pontua o pesquisador. As próximas etapas do projeto incluem uma reformulação do layout do site, para torná-lo ainda mais simples e atraente para qualquer tipo de usuário. “Achamos que quanto mais fácil for o uso do Mapa, mais ele poderá cumprir seu papel, não só enquanto repositório de informações sobre os conflitos ambientais e suas consequências sobre a saúde coletiva, como enquanto ferramenta pedagógica”, diz Diogo Rocha.
Casos são ignorados
A comemoração pelos resultados se torna mais importante quando se consideram as dificuldades de acessar, coletar e divulgar os detalhes dos conflitos. Diogo Rocha explica que o maior desafio é tentar romper com a invisibilidade pública de um significativo número desses casos, que envolvem desde invasão de territórios à restrição de acesso a alimentos. Quando se fala nos efeitos sobre as pessoas, os danos são tão diversos quanto lamentáveis: entre os principais estão ameaças violentas, insegurança alimentar, doenças, falta de acesso a atendimento médico e coação física. Além disso, os pesquisadores também sofrem intimidações “Mas nós acreditamos que enfrentar esta pressão é importante também no sentido de contribuirmos de alguma forma para que tais empresas e agentes públicos superem o nível do discurso e da propaganda e passem a atuar de forma realmente responsável e consequente diante das comunidades cujas vidas hoje afetam negativamente”, frisa Diogo Rocha.
O pesquisador explica que, em geral, os conflitos envolvem as comunidades e povos mais vulnerabilizados do País. “Eles têm pouco acesso aos meios de comunicação tradicionais e uma pequena penetração nos meios alternativos, como a mídia alternativa, as universidades, centros de pesquisa e alguns órgãos públicos, para fazer circular seus problemas, demandas e denúncias”, comenta Diogo Rocha. “Nosso projeto se propõe a ser um amplificador das vozes presentes nos territórios”, pontua. Ele ressalta que, quando a equipe do Mapa identifica um conflito, isso mostra que, de alguma forma, os movimentos sociais e as comunidades envolvidas já se posicionaram. “Nesse ponto, elas já assumiram seu protagonismo no conflito e conseguiram enfrentar a questão da sua própria invisibilização social, tornando as injustiças ambientais a que estão submetidas uma questão pública”, destaca o pesquisador.
Essa ocultação também é percebida por outros pesquisadores de conflitos ambientais. Professora associada do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, Raquel Rigotto esclarece que o encobrimento dos prejuízos faz parte do modelo econômico em vigor no Brasil. “As implicações da instalação dos grandes empreendimentos ou da expansão de setores como o agronegócio trazem impactos negativos sobre áreas como meio ambiente, trabalho, saúde e cultura. Mas a tendência é que esses reflexos sejam ocultados”, reforça a pesquisadora.
Quando se fala na saúde das populações envolvidas, os desdobramentos são extensos. “Temos percebido que a relação da saúde das comunidades com esses empreendimentos acontece em vários níveis”, explica Rigotto. Ela detalha que começa mesmo antes da “ação” em si. “Há uma série de problemas desde o anúncio, porque as famílias, que antes acreditavam que estariam ali para criar seus filhos e netos, já são ameaçadas de expulsão, o que causa desentendimento e apreensão, atormentando a paz da comunidade, que é fundamental para a manutenção da saúde”. Na sequência, vêm a alteração do acesso à alimentação, a exposição às drogas, à poluição e à contaminação, agravadas pela falta de acesso a tratamentos médicos necessários, entre outros impactos negativos à saúde.
Raquel Rigotto observa que os pivôs mais comuns nos casos de conflitos ambientais estão, em geral, sobre três grandes eixos: agronegócio, mineração e infraestrutura. São grandes companhias que miram em commodities e o próprio governo, que patrocina obras para sustentar esse modelo econômico, especialmente com captação e distribuição de água e energia. Ela analisa que Nordeste, Centro-Oeste e Norte são as regiões do País mais atingidas pelos danos dessas operações. “No Nordeste esse processo está muito intenso”, alerta a pesquisadora, que exemplifica com a expansão da fruticultura irrigada para exportação no Rio Grande do Norte, a atividade industrial portuária no Ceará e em Pernambuco e o cultivo de soja no Maranhão.
A realidade dos conflitos não permite que se abra um horizonte positivo para as próximas décadas. Tanto Diogo Rocha quanto Raquel Rigotto destacam que o modo como a sociedade brasileira tem construído seu desenvolvimento econômico induz à pressão sobre as comunidades. “Embora evidentemente torçamos pelo fim das injustiças socioambientais, o contexto sociopolítico atual não aponta isso como viável a curto prazo”, avalia Rocha. “O Brasil precisa rever sua política econômica e seu modelo de desenvolvimento, que está muito voltado aos interesses do capital, permitindo que nossa população e nossos bens naturais sejam subordinados a esses interesses”, alerta Raquel Rigotto, que corrobora a mensagem que o cientista político Marcos Lima passou em entrevista a este portal. Para ela, além dos graves efeitos sobre as pessoas, a fragilidade desse sistema se comprova através da vulnerabilidade da economia o País.
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