Entrevista (Série: 3): As cenas do crack, o ajuste de políticas ligadas à droga e os resultados do estudo na visão de seus coordenadores

Neilane Bertoni: Pesquisadores destacaram diferenças entre as regiões
Neilane Bertoni: Pesquisadores destacaram diferenças entre as regiões/Foto: Naldo Lima/ ASCOM-ICICT

Já existem estudos suficientes no Brasil para embasar políticas de combate ao crack que sejam eficazes na redução dos danos causados pela droga e também do número de usuários?

Este não é o primeiro estudo feito sobre drogas ou propriamente o crack no país. Existem diversas outras pesquisas com essa população. Mas é a primeira desta proporção, que traça um perfil tão detalhado dos usuários, exatamente porque nós fomos onde os usuários estavam, onde eles consumiam a droga, ao invés de nos limitarmos ao que habitualmente denominamos “populações cativas”, com escolares ou pacientes de clinicas. Ter esse detalhamento sobre o perfil dos usuários de crack/similares no Brasil e a comparação entre as capitais e os demais municípios do país, ajuda bastante a orientar as ações. O poder público pode agora ajustar as políticas já adotadas e criar outras com embasamento científico. Um exemplo disso é a questão da internação compulsória. O estudo da FIOCRUZ mostrou que quase 80% dos usuários no Brasil deseja receber alguma forma de tratamento/ajuda. Ou seja, com esse resultado, ações de internação compulsória não se mostram custo-efetivas, pois investem recursos de forma maciça em uma iniciativa polemica e de resultados duvidosos, quando deveria investir prioritariamente na ampla maioria de usuários que solicita ajuda. Mas é importante entender que o primeiro passo é trabalhar nessa aproximação com o usuário, entendendo suas necessidades, para que a sua motivação para o tratamento para redução de danos se traduza em efetiva ação. Não é algo imediato.

Em capitais menores também é comum existirem as cracolândias?

O que temos são cenas de uso de crack/similares de tamanhos variados nos diferentes municípios e até mesmo dentro de cada município. As grandes cenas de uso que persistem no mesmo local por anos foram popularmente denominadas cracolândias. Mas não é uma realidade em todo o país. Por exemplo no Rio, à época da pesquisa, tivemos cenas com 200 pessoas mas também cenas com 4 ou 5 pessoas. As cenas em geral têm grande mobilidade.

Em comparação à população brasileira, os usuários de crack apresentaram prevalência de HIV oito vezes maior. Quais situações nas cenas de crack são agravantes para este problema e que medidas podem ser tomadas com relação à ele?

A prevalência do HIV na população geral brasileira é de 0,6%, enquanto que entre os usuários de crack/similares essa proporção foi de 5,0%. As situações de risco de infecção a que esses usuários se expõem os tornam mais vulneráveis: o número de parceiros sexuais, o uso inconsistente de preservativo, o uso de drogas injetáveis (mesmo que tenhamos encontrado que apenas 10% dos usuários de crack usavam também drogas injetadas) e o sexo comercial.

São necessárias medidas de redução de danos, tanto em relação ao uso das drogas quanto em relação a disseminação da informação sobre formas de transmissão das DST/HIV e a distribuição de preservativos.

Foi possível identificar por que o consumo frequente da droga é mais comum na região Nordeste?

Pensava-se que o maior número de usuários de crack/similares estaria no Sudeste, exatamente por causa das imagens das cracolândias que são divulgadas pela mídia. Mas como dito, essas grandes cenas não são as mais frequentes em todos os locais, nem mesmo no Sudeste, onde a despeito da imensa visibilidade das cenas de grande porte e extensão, predominam cenas de médio e pequeno porte. O Nordeste apresenta cenas menores e bastante móveis, o que se mostra estreitamente correlacionado com a exclusão social. O motivo para o número elevado nas capitais do Nordeste é na verdade uma somatória de vários fatores. A alguns fatores pode-se atribuir diretamente estes resultados, quanto a outros serão necessárias investigações adicionais. No Nordeste temos, por exemplo, valores de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) mais baixos do que no Sudeste, mesmo comparando as capitais. A desigualdade social também é bastante pronunciada no Nordeste, e a pobreza parece tornar estes indivíduos mais vulneráveis ao consumo regular de drogas como o crack. Além das sabidas questões da prostituição e trabalho infantil que também parecem estar relacionadas ao consumo da droga.

Francisco Inácio: cenas de crack pesquisadas não só nas capitais do Brasil
Francisco Inácio: cenas de crack pesquisadas não só nas capitais do Brasil/ Foto: Vinícius Marinho/ Multimeios/ICICT

Regionalizar as políticas de combate ao crack seria mais efetivo para lidar com o problema?

Num país como o Brasil, com marcadas disparidades sociais e culturais entre as macrorregiões, as ações de saúde devem ser regionalizadas para um melhor resultado. Para a questão das drogas não seria diferente. No Nordeste, por exemplo, foi onde encontramos o maior percentual de crianças e adolescentes usuárias de crack/similares. Então essa questão deve ter prioridade lá.

O crack é citado como uma droga que causa dependência rapidamente. Existem muitas diferenças entre dependente e o usuário eventual?

Trata-se de uma droga de absorção muito rápida (menos de 10 segundos), cujos efeitos são igualmente transitórios, e que causam uma fissura (vontade imperiosa de usar o produto) muito intensa. Por essas razoes os conhecidos fenômenos de formação de habito, tolerância e dependência tendem a se instalar mais rapidamente. O usuário eventual e aquele que faz uso descontinuo de uma dada substancia, e cujo padrão de consumo não se caracteriza por um consumo compulsivo, acompanhado por desenvolvimento de tolerância ao produto, o que requer o aumento progressivo da dose para obtenção de efeito similar.

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