Série (2): O perfil dos usuários encontrados nas “cenas de crack” no Brasil

Alto índice de troca de sexo por dinheiro ou drogas, uma porcentagem preocupante de gestantes usuárias de crack, a prática comum de relações sexuais sem proteção e a predominância de não brancos entre os consumidores da droga foram alguns dos registros obtidos pelo Estudo sobre o perfil dos usuários de crack*, realizado pela Fundação Oswaldo Cruz em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad). Duas linhas de investigação permearam a pesquisa: uma domiciliar, abordada na primeira matéria da série que vem sendo publicada neste portal e outra epidemiológica, feita nas chamadas cenas do crack, em diversos municípios, não só nas capitais do país e descrita nesta reportagem.

Características sociais dos usuários, como moradia, renda, escolaridade, fatores como envolvimento com o crime e o tráfico de entorpecentes e ainda, circunstâncias que os levaram a experimentar a droga, foram abordados neste inquérito epidemiológico, que utilizou o método TLS Time Location Sampling, com a descrição de características sociodemográficas e comportamentais da população estudada. A amostra utilizada compreendeu as 26 capitais brasileiras, o Distrito Federal, 9 regiões metropolitanas e municípios de médio e pequeno porte. O inquérito epidemiológico foi feito no primeiro semestre de 2011, tendo como base de informação sobre a localização das “cenas do crack” fontes como Secretarias de Saúde, Assistência Social, Segurança, Programas de Saúde da Família, ONGs, lideranças comunitárias e os próprios usuários de drogas. Os locais de visitação foram selecionados de modo aleatório, e as entrevistas feitas em horários distintos.

Bem como no inquérito domiciliar a pesquisa tomou como referência para uso regular da droga o consumo por pelo menos 25 dias nos últimos 6 meses. Com a presença da equipe de profissionais de saúde que fez as entrevistas foi possível realizar testes rápidos de HIV/AIDS/Hepatites virais e Hepatite C. Após aconselhamento os entrevistados recebiam o resultado dos testes. As entrevistas foram feitas apenas com maiores de idade, porém, foi registrada presença de crianças e adolescentes nas cenas do crack.

Uma importante observação descrita pelos pesquisadores foi a de que há grande mobilidade das cenas de uso do crack, que se dão em decorrência de fatores diversos, principalmente ligados à ações policiais, intervenções no espaço urbano, ao tráfico de drogas e fenômenos climáticos. O estudo destaca que os usuários encontrados nesta cena estão predominantemente na faixa etária de 30 anos, e ainda, que adolescentes e crianças não constituem maioria nos locais pesquisados. Homens representam 78,7%, em média. Pesquisas anteriores registravam aproximadamente 60% de usuários do sexo masculino.

Quanto a raça, o inquérito fez uma divisão de porcentagens entre usuários brancos e não-brancos. Há predominância dos usuários entre o grupo dos classificados não-brancos, o correspondente a 80%. Na população geral, segundo o Censo 2010 do IBGE os não-brancos correspondiam a 52%.

A maior parte dos usuários de crack encontrados nos locais pesquisados declarou-se solteira, 55,3%. Quanto a escolaridade, o inquérito mostra baixa porcentagem dos que chegaram a cursar o ensino médio, na faixa dos 20%. Os que chegaram ao nível superior não atingem 5%. Já os que declararam não ter completado nenhuma série escolar representam 5%.

Quanto a moradia, é expressivo o número de usuários em situação de rua, cerca de 40%. Os pesquisadores esclarecem, porém, que a porcentagem se refere ao número de usuários que declarou passar a maior parte do tempo nas ruas e não necessariamente estão morando nas ruas. Houve expressiva diferença entre capitais e os demais municípios quando analisada a porcentagem dos usuários em situação de rua. Nas capitais o índice chegou à 47,3%, enquanto nos demais municípios esta porcentagem caiu para 20%.

As formas de obtenção de renda dos usuários da droga incluem os trabalhos esporádicos, autônomos, que correspondem a cerca de 65%. Há também uma grande frequência de relatos de sexo em troca de dinheiro/ ou drogas 7,5%. Também foram citadas como fontes de renda atividades ilícitas como tráfico de drogas e, furtos, roubos e afins, correspondem a 6,4% e 9,0% respectivamente.

Do total de entrevistados quase a metade já havia tido problemas com a prática de crimes, tendo sido detida pelo menos uma vez. Em média 41,6% disseram ter sido detidos no último ano. A posse ou uso de drogas lidera os motivos para a detenção 13,9%, seguida por assalto/roubo com registro de 9,2%, furto/fraude ou invasão de domicílio marcam 8,5%, além do tráfico ou produção de drogas, citados por 5,5%.

Quando questionados sobre os motivos que os levaram ao uso de crack/similares, mais da metade dos usuários disse ter vontade/curiosidade de sentir o efeito da droga. Outra razão relatada para experimentar o entorpecente foi a pressão dos amigos, citada por 26,7% dos entrevistados. Outros 29,2% deles disseram que um dos motivos para início do uso da droga foram os problemas familiares ou perdas afetivas.

De acordo com os pesquisadores, tais resultados apontam para questões centrais nas políticas públicas: reforçar laços familiares de modo a minimizar os conflitos e prevenir o consumo ou mesmo facilitar o processo de reinserção dos usuários na sociedade, através de um trabalho realizado não apenas com os próprios, mas com suas famílias.

Entre as mulheres entrevistadas em média 10% relataram estar grávidas e mais da metade das usuárias já havia engravidado ao menos uma vez desde que passou a fazer uso da droga. O dado obtido evidencia um cenário preocupante, visto que as consequências do consumo do crack durante a gestação sobre o desenvolvimento neurológico e intelectual dos bebês são muito graves.

Sobre relações sexuais com exposição de risco, cerca de 39,5% dos usuários do crack, mais de um terço, informaram não ter usado o preservativo em nenhuma das relações sexuais vaginais no mês anterior a entrevista. E mais da metade dos entrevistados 53,9% afirmou nunca ter realizado teste para HIV.

Com relação ao tempo de consumo da droga, as capitais tiveram um registro médio de 91 meses, cerca de 8 anos. Já os demais municípios mostraram um tempo substancialmente inferior, equivalente a 59 meses, em média 5 anos. Tal evidencia mostra que o uso da droga foi “interiorizado” mais recentemente. O resultado obtido também joga por terra as afirmações veiculadas de que os usuários do crack teriam sobrevida inferior aos 3 anos de consumo. A pesquisa revela que mais de 50% dos entrevistados faz uso da droga diariamente. O número médio de pedras usadas por usuário nas capitais é de 16 por dia, enquanto nos demais municípios o número é de 11 pedras ao dia.

O inquérito também investigou os efeitos extremos causados pela dependência verificando a ocorrência de intoxicação. Segundo o estudo, apesar da autopercepção do que é a overdose ser bastante difícil diante de outros problemas de saúde, há uma expressiva a proporção de usuários que relatou tal experiência. Entre os entrevistados 7,8% afirmaram que nos últimos 30 dias anteriores a pesquisa haviam tido episódios de intoxicação aguda. Destes, 44,7% citaram ter sido pelo uso excessivo do crack e 22,4% pelo abuso do álcool. A questão revela o potencial do impacto para a atenção de urgência pelo SUS no que diz respeito ao foco especializado neste tipo de problema.

“Os resultados indicaram uma situação de grande vulnerabilidade social e de saúde dos usuários de crack. Social pois boa parte deles estão em situação de rua, vivem de trabalhos esporádicos e tem baixa escolaridade. De saúde, pois apresentam um baixo uso de preservativo em suas relações sexuais, fazem o compartilhamento dos apetrechos para o consumo da droga, consomem o crack com alta frequência e também outras drogas concomitantemente ao uso do crack principalmente álcool e tabaco, o que leva algumas vezes a terem overdoses. E mesmo nessas condições, pouco acessam os serviços de saúde”, situa Neilane Bertoni, coordenadora da pesquisa ao lado de Francisco Inácio Bastos.

Sobre a procura por tratamento para a dependência da droga, foram citados por 6,3% desses usuários os serviços ambulatoriais para a dependência química como alternativa procurada nos últimos trinta dias que antecederam a pesquisa. Tal dado mostra a necessidade de ampliação e fortalecimento desses equipamentos na rede de saúde, para viabilizar o acesso daqueles que desejam buscar ajuda relativa ao vício da droga. No que se refere aos equipamentos de atenção em regime residencial ou internação, as Comunidades Terapêuticas foram os mais acessados pelos usuários, 4,2%.

A coordenadora da pesquisa comentou a questão do acesso e da busca por tratamento pelos usuários de crack/similares, revelando outro dado. “O estudo da FIOCRUZ mostrou que quase 80% dos usuários no Brasil deseja receber alguma forma de tratamento/ajuda. Ou seja, com esse resultado, ações de internação compulsória não se mostram custo-efetivas, pois investem recursos de forma maciça em uma iniciativa polêmica e de resultados duvidosos”, concluiu Neilane Bertoni.

*crack e outras formas similares de cocaína fumada (pasta base, merla e “oxi”)

 

Referências Bibliográficas

 

Perfil dos usuários de crack e/ou similares no Brasil [Internet]. [acesso em 21 out 2013]. Disponível em: http://www.icict.fiocruz.br/sites/www.icict.fiocruz.br/files/livreto_epidemiologico_17set.pdf 

Pimentel J. Estudo da Fiocruz estima alcance do crack nas capitais brasileiras [Internet]. Rio de Janeiro: Portal DSS Brasil; 2013 Out 10 [acesso em 21 out 2013]. Disponível em: https://dssbr.ensp.fiocruz.br/estudo-da-fiocruz-estima-alcance-do-crack-nas-capitais-brasileiras/

Taxas escolaridade e rendimento aumentam em dez anos, revela Censo 2010 [Internet]. Portal Brasil; 2012 Abr 27 [acesso em 21 out 2013]. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/educacao/2012/04/taxas-escolaridade-e-rendimento-aumentam-em-dez-anos-revela-censo-2010

 

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