Do ponto de vista estrito da medicina clínica, qualquer influência em saúde que se localiza fora do paciente, se contrapondo a natureza biológica, pode ser considerada uma influência social. Dentro dessa ecologia social são considerados determinantes sociais em saúde: renda familiar, classe social, riqueza da família e bens, educação, emprego, grau de autonomia no trabalho e uso do tempo, qualidade e natureza da habitação, raça/etnia, produtos e subprodutos das relações sociais (coesão social, rede e apoio social, capital social), dentre outros.
Os autores esclarecem que existem provas irrefutáveis de que os fatores sociais têm influências profundas sobre a saúde. Tal afirmação se sustenta no fato de que algumas disparidades refletem situações evitáveis e desnecessárias de sofrimento, e as evidências sugerem que elas poderiam ser reduzidas através da melhoria do ambiente social no qual as pessoas vivem e trabalham (Marmot et al. 2008). Halfon e colaboradores apontam que atualmente já há em muitos países o surgimento de iniciativas políticas nacionais que abordam determinantes sociais de saúde, visando reduzir a pobreza e as desigualdades, assim como seus impactos sobre a saúde.
Nessa publicação especial sobre saúde infantil no Canadá, do periódico Healthcare Quarterly, os autores revisaram as evidências sobre os determinantes sociais da saúde e a força da evidência de seu impacto na saúde, e indicaram as crianças como grupo-alvo particularmente sensível aos determinantes sociais, especialmente nos primeiros anos de vida. Os autores foram enfáticos ao dizer que as exposições sociais precoces e adversas (como a qualidade da parentalidade e cuidados recebidos, a exposição à violência doméstica, depressão materna e segurança de bairro) se tornam programadas nos sistemas biológicos, provocando cadeias de risco que podem resultar em doença crônica na meia-idade. Adultos com quatro ou mais exposições adversas na infância tiveram um risco de 4 a 12 vezes maior de alcoolismo, abuso de drogas, depressão e tentativa de suicídio, 2 a 4 vezes maior chance de fumar, de ter auto-avaliação ruim de saúde e doenças sexualmente transmissíveis, com gradientes de risco semelhantes para a presença de isquemia, doenças cardíacas, câncer, doença pulmonar crônica e doença hepática.
Apesar do reconhecimento das abordagens diretas e indiretas às famílias, que visam à promoção de saúde infantil, é imprescindível o foco nos determinantes sociais upstream. Porém, Halfon cita que em alguns países, como os Estados Unidos e o Canadá, onde ideologia e tradição dominante atrasam o desenvolvimento social, é necessário uma combinação de abordagens: abordagens de ‘cima para baixo’ associadas às de “baixo para cima”.
Atualmente, parece haver um ponto de convergência, onde os prestadores de cuidados de saúde e o poder público começam a reconhecer a importância fundamental dos determinantes sociais para a saúde. Hafton e seus colegas afirmam que para a obtenção de uma resposta eficaz aos determinantes sociais, medidas que envolvam tanto iniciativas diretas de política social, bem como a sensibilização da sociedade civil sobre os determinantes sociais da saúde e da execução intersetorial em nível local são imprescindíveis. Ambas são iniciativas destinadas a promover a saúde positiva na infância criando um caminho virtuoso e um ciclo de saúde mais afirmativo apoiadas em estratégias de interrupção da via entre os riscos sociais e os desfechos de saúde desfavoráveis.
Um desafio adicional na mudança de perspectiva da saúde infantil, principalmente em sociedades individualistas como Canadá e Estados Unidos, seria transitar de um modelo de responsabilidade unicamente familiar, focado em programas, para uma estratégia em nível comunitário, focada em investir em todas as crianças para o sucesso. Somando-se às intervenções baseadas em evidências, para melhorar o desempenho dos sistemas de saúde e assistência social. Porém, para serem eficazes, estas estratégias exigirão nada menos do que uma transformação das políticas existentes para criança inseridas nos sistemas de saúde.
Os autores ilustram o artigo com exemplos de sucesso como o do Hospital da criança em Boston, Massachusetts, onde se optou por uma abordagem sistemática à crianças com asma. Além do fornecimento de inaladores, o hospital pagou aos enfermeiros para fazer visitas domiciliares após a alta, garantindo que as crianças soubessem como usar seus medicamentos e que teriam acompanhamento adequado. Eles também forneceram inspeções na casa das crianças, adequando o ambiente. Os autores explicam que este exemplo nos ensina que o Governo sozinho não pode transformar o sistema de saúde. São as ações individuais e familiares que fazem a verdadeira mudança (Gawande, 2010).
Quanto a desfechos em saúde, no Brasil ainda persistem diferenças regionais em questões como saneamento básico, adequação de moradia, acesso, utilização e cobertura de serviços de saúde, poluição ambiental, educação materna, ingestão de micronutrientes, renda, dentre outras. O relatório da Comissão Nacional de Determinantes Sociais da Saúde indica que apesar de alguns avanços na cobertura das políticas públicas ao longo dos anos, ainda persistem fortes desigualdades econômicas e sociais no país, com reflexos negativos nas condições de vida de crianças, principalmente, em áreas e regiões onde o desenvolvimento econômico não ocorreu na mesma intensidade.
No que se refere às intervenções e programas de combate às iniquidades em saúde e nutrição infantil, a Comissão Nacional de Determinantes Sociais da Saúde aponta para uma escassez de informações de boa qualidade para uma avaliação adequada. Apesar de o Brasil ter vários programas com foco em populações mais pobres, poucos programas foram avaliados sobre seu real impacto nas populações mais pobres, e menos ainda em termos de seu impacto na redução das desigualdades e em indicadores de saúde. Alguns estudos ainda confundem determinantes de uma boa saúde, como progressos ambientais, bom saneamento e água limpa, melhor nutrição, bons níveis de imunização e melhores moradias, com determinantes das iniquidades em saúde. Para a comissão, a atual queda da mortalidade infantil no Brasil não significa, necessariamente, que as diferenças sociais estejam sendo reduzidas. Ou seja, a redução não é homogênea entre os estratos sociais. Existem desigualdades socioeconômicas em praticamente todos os indicadores de saúde e nutrição de crianças menores de cinco anos.
Visto que essas desigualdades são um quadro de iniquidade que impede que as crianças atinjam seu potencial de saúde, crescimento e desenvolvimento, se faz necessária uma atuação eficaz com um esforço multisetorial. Porém, não é utopia esperar que dentro do quadro atual de rápidas mudanças que estão ocorrendo no Brasil, principalmente quanto à nutrição, concentração de renda e mortalidade, haja uma redução nas iniquidades infantis em um futuro próximo.
Referências Bibliográficas
Halfon N, Larson K, Russ S. Why Social determinants? Healthcare Quarterly. 2010;14 SpecNº:8-20.
CNDSS-Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. As causas sociais das iniqüidades em saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; 2008.
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