Existe vacina para as iniquidades sociais?

Serie especial Saúde Brasil

No Brasil, as doenças infecciosas têm sido caracterizadas ao longo da história pela localização em áreas endêmicas devido aos aspectos ambientais, como o clima e a vegetação, que favorecem a biodiversidade para vetores. Em paralelo, nas grandes cidades, a disseminação de tais doenças era notoriamente influenciada pelas mazelas sanitárias urbanas. Nas últimas décadas, os ecossistemas e ambientes tropicais sofreram mudanças importantes devido às atividades humanas de exploração e extrativismo, mudanças comportamentais dos indivíduos e migração de áreas rurais para urbanas ou de áreas endêmicas para não-endêmicas. Com isso, os contextos para a transmissão de doenças infecciosas mudaram muito, gerando novos fatos, cenários e uma crescente conscientização política e progresso científico em âmbito nacional. Toda essa transição tornou cada vez mais expressivo e relevante o papel das iniquidades sociais como fatores distais e mediadores para as doenças infecciosas, fatores que comprometem os esforços para controle e prevenção de tais doenças.

O Brasil, felizmente, tem muito mais êxito nas conquistas de controle e prevenção de doenças infecciosas, do que fracassos. Essa afirmação fica muito clara no artigo de Barreto e colaboradores sobre os sucessos e insucessos no controle dessas doenças no contexto brasileiro, apresentados na série especial Lancet Brasil. Os autores avaliaram os êxitos relativos às políticas e intervenções para doenças preveníveis por vacinação, diarréia e cólera, e doença de Chagas, consideradas doenças controladas com êxito. Além disso, descreveram doenças controladas com sucesso parcial, como HIV/AIDS, hepatites A e B, hanseníase, tuberculose, esquistossomose e malária; e também doenças consideradas como fracassos de controle, como a dengue e a leishmaniose visceral. Embora não tenham realizado uma revisão abrangente das tendências de todas as doenças infecciosas no Brasil, os autores esclarecem sobre pontos cruciais relativos aos determinantes sociais que influenciaram a prevalência, incidência, taxas de mortalidade e prevenção dessas doenças entre 1980 e 2008.

Apesar das reduções pronunciadas na mortalidade proporcional por doenças específicas como as diarréias, doenças preveníveis por vacina e pneumonia em crianças, Barreto e colaboradores afirmam que as doenças infecciosas ainda são um problema de saúde pública no Brasil. Os autores assumem a importância dos determinantes sociais em saúde no desenvolvimento, tratamento e prevenção das doenças infecciosas. Complementamos essa afirmação citando o trabalho de Acosta (2008), publicado como notícia neste mesmo site da CMDSS. A autora, que dissertou sobre a tuberculose, afirma que moradores de áreas menos favorecidas (bairros com piores indicadores socioeconômicos) apresentam oito vezes mais chance de desenvolver a doença quando comparados aqueles de áreas mais favorecidas, fortalecendo a tese de que há uma estratificação sócio-econômica associada à distribuição de doenças infecciosas.

No que diz respeito às iniquidades em saúde, um ponto importante citado por Barreto e colaboradores foi de que, no geral, a cobertura da vacinação no Brasil é universal e muito abrangente, mas não é uniforme nos diferentes níveis socioeconômicos, com uma cobertura menor nos grupos socioeconômicos mais altos e mais baixos (Luna et al., 2009). Arriscamo-nos a hipotetizar que essa desigualdade na cobertura vacinal penaliza mais os grupos socioeconômicos mais baixos porque ainda existem problemas de acesso às vacinas e a informação. Para Maurício Barreto e seus colegas, esses grupos possuem baixo nível de escolaridade, sofrem por morar em áreas de rápida urbanização e com pouco controle de vetores, e vivem em habitações de baixa qualidade. Em contrapartida, acreditamos que os grupos socioeconômicos altos não aderem às campanhas porque recorrem ao setor privado, menosprezando os produtos e serviços oferecidos pelo governo.

As estratégias das campanhas de vacinação, em geral, não contemplam os fatores contextuais dos diferentes grupos socioeconômicos, deixando, inevitavelmente, os menos  favorecidos fora do alcance do sistema de saúde brasileiro, conhecido e proclamado como universal, equânime e integral. Aqueles que não aderem ou não são “alcançados” por ações preventivas ou curativas não podem ser culpabilizados por isso, uma vez que são vítimas de situações injustas, desnecessárias e evitáveis. Essas iniquidades na cobertura vacinal também estão presentes nas áreas endêmicas e se estendem ao acesso e a distribuição aos serviços; e mais especificamente no caso do HIV/AIDS, Barreto e colaboradores afirmam que são perpetuados alguns problemas nos cuidados no pré-natal e de introdução à pro?laxia, apesar da redução de transmissões verticais.

Pelo menos no sentido stricto da palavra, ainda não existe “vacina” para as iniquidades sociais em saúde. Se existisse, acreditamos que esta deveria ter efetividade próxima a 100% nos imunizáveis. Para o controle de algumas doenças infecciosas, como diarréia e coléra, e até mesmo a hepatite A, disseminadas por transmissão fecal-oral, a “vacina” foi o aumento pronunciado da oferta de água tratada e encanada e, mesmo que em menor grau, do esgoto sanitário, além das melhorias nos níveis de higiene e nas condições de vida em geral. Os autores enfatizam que os programas de transferência de renda, o Sistema Único de Saúde e outras melhorias sociais e ambientais são fatores fundamentais para o controle das doenças infecciosas.

Na série especial Lancet Brasil,  Barreto e colaboradores sugerem que é fundamental a harmonização entre as políticas sociais e econômicas mais amplas e as demandas e necessidades específicas para o controle efetivo das doenças infecciosas. Apostam que os desafios futuros incluem a expansão da redução das diferenças individuais e regionais em termos de riqueza, aprimorando a infraestrutura e os serviços sociais, além de uma maior ampliação dos programas que apoiam a prevenção e o cuidado na área de saúde.

Referências Bibliográficas

Acosta LMW. O mapa de Porto Alegre e a tuberculose: distribuição espacial e determinantes sociais [dissertação de mestrado na internet]. Porto Alegre: Faculdade de Medicina, Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da UFRGS; 2008 [acesso em 01 Ago 2011]. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/13416/000643505.pdf?sequence=1

Barreto ML, Teixeira MG, Bastos FI, Ximenes RAA, Barata RB, Rodrigues LC. Sucessos e fracassos no controle de doenças infecciosas no Brasil: o contexto social e ambiental, políticas, intervenções e necessidades de pesquisa. Saúde no Brasil 3. The Lancet [periódico na internet]. 2011 Maio 9 [acesso em 2011 Set 5]:47-60. Disponível em: http://download.thelancet.com/flatcontentassets/pdfs/brazil/brazilpor3.pdf

Luna EJ, Veras MA, Flannery B, Moraes JC. Household survey of hepatitis B vaccine coverage among Brazilian children. Vaccine. 2009 Aug 27;27(39):5326–31.

Pimentel J. Mapa de Porto Alegre e a Tuberculose: Distribuição Espacial e Determinantes Sociais [Internet]. Rio de Janeiro: Portal DSS Brasil; 2011 Ago 02.

Sattenspiel L. Tropical environments, human activities, and the transmission of infectious diseases. Am J Phys Anthropol. 2000;113 Suppl 31:S3-31.

Entrevista com:

2 Comentário

  1. Eu percebi que o título desse texto foi interessante e instigante. Entendo que a vacina para as iniquidades tem nome: intersetorialidade. Acredito que essa vacina não imuniza 100%, mas chega aos 90%!

  2. Esta vacina precisa ter um componente universal, humanitário, e subtipo regional, com especificidade local. Contudo, deverá ter uma base política e tecnica forte. Parabéns pelo texto e me sinto honrada pela citação.

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*