Nenhuma outra doença parece estar tão intimamente associada à ausência de equipamentos de infraestrutura urbana em Pernambuco, como a filariose, constituindo-se assim um indicador de pobreza. A sua ocorrência delimita os territórios desprivilegiados da cidade do Recife (Albuquerque, 1993; Albuquerque, Morais, 1997), de Olinda (Braga, 2001) e de outros municípios da Região Metropolitana do Recife (Bonfim, 2009).
No caso do Recife, cidade constituída por 94 (noventa e quatro) bairros, agrupados em seis Distritos Sanitários, que por sua vez são divididos em três microrregiões, a heterogeneidade ambiental e socioeconômica é marcante.
Diversos estudos (Paim,1980; Guimarães, Fischmann,1986; Paim, 1987; Paim, Costa, 1993 ) têm apontado para a influência das condições de vida sobre a saúde dos cidadãos. Neste sentido, evidencia-se o Recife poderia ser visto como uma cidade sob risco. Risco de adoecimento e mortes evitáveis, sobretudo na parcela da população mais carente (Recife, 2002).
Na cidade do Recife a filariose é sabidamente endêmica há várias décadas. Entre agosto de 1999 e maio de 2000 realizou-se um inquérito de prevalência de base populacional filariose, em amostra estratificada segundo microrregiões da cidade e que envolveu um total de 18.279 pessoas. Foram pesquisados 91 (noventa e um) bairros e 529 setores censitários.
Este estudo demonstrou a existência de áreas de transmissão de filariose linfática em quase toda área territorial do município, porém, com níveis de endemicidade classificados como de baixos a intermediários nas diversas microrregiões. Esses dados corroboram estudos prévios que mostram a distribuição focal da filariose. A microrregião 2 do Distrito Sanitário II, uma das áreas com piores níveis de desenvolvimento humano do município (PNUD, 2005) e com uma média de prevalência de microfilaremia de 5,5%, foi a que apresentou o maior nível de endemicidade. Esses dados confirmam o padrão focal de distribuição da filariose linfática em espaços urbanos e reforça a sua relação com as precárias condições de vida da população. A partir dos resultados desse estudo, a gestão municipal (2001/04) definiu o enfrentamento da filariose como prioridade.
Com base no entendimento do papel central dos determinantes sociais na transmissão da filariose, buscou-se enfrentar a filariose através de uma abordagem de risco coletivo, estabelecida pela estreita relação do modo de transmissão com a ocupação do espaço urbano, rompendo assim com a abordagem tradicional, com enfoque no risco individual (Albuquerque, Morais, 1997). Assim, no Recife, entre 2001 e 2003, elaborou-se um modelo de intervenção de base territorial, definido de acordo com o risco socioambiental de transmissão e de níveis de prevalência da doença nas distintas áreas. Deslocou-se o foco das ações sobre os indivíduos, para ações voltadas ao espaço onde a se dá a sua transmissão. Para tanto, outras ações, como o reordenamento da rede de atenção à saúde foram necessárias (Recife, 2002).
As intervenções se basearam na interrupção da transmissão da doença, através do incremento no diagnóstico, com cobertura em torno dos cem por cento das áreas prioritárias, cuja identificação foi norteada pelos dados epidemiológicos disponíveis, ambientais e de prevalência de microfilaremia. O objetivo tem sido tratar as pessoas contaminadas pelo parasito e, consequentemente, identificar áreas com alta prevalência de microfilaremia em unidades geográficas menores (bairros, setores censitários, microáreas), instituindo outras estratégias de ação como o tratamento em massa com a Dietilcarbamazina (DEC).
A redução do contato homem-vetor foi a segunda linha da estratégia definida. A permanência de condições favoráveis à proliferação de criadouros do Vetor Culex quinquefasciatus (água estagnada e poluída nos ambientes domiciliares e peridomiciliares), juntamente com a permanência de indivíduos infectados e não tratados, contribuem para manutenção da endemia na cidade do Recife. Considerando que as condições ambientais em muito influenciam o controle vetorial, estas ações necessitavam ser executadas de forma integrada. Desta forma, o Programa de Saúde Ambiental se mostrou, então, decisivo para o sucesso da intervenção. Para alcançar a diminuição da densidade do vetor da filariose no Recife, a níveis que impedissem a transmissão do agravo, decidiu-se adotar a estratégia de controle integrado do vetor, que se caracteriza pela aplicação simultânea de métodos mecânicos, físicos e biológicos, ações de educação em saúde e a consideração das características e aspectos biológicos e ecológicos do vetor.
O Programa de Controle da Filariose do Recife (Recife, 2002) tem por objetivo eliminar a filariose na cidade do Recife. As ações coordenadas tiveram início em 2003 e dados de 2010, provenientes da Secretaria de Saúde do Recife, apontam êxitos importantes no que diz respeito ao declínio da endemicidade de filariose no Recife, conforme demonstra o gráfico (clique para ampliar).
Para controlar a endemia, o setor saúde necessita atuar no sentido de promover ações intersetoriais voltadas a melhoria das condições sanitárias das áreas de transmissão (melhoramento da infraestrutura de saneamento e habitação), além de ações de controle do vetor, tratamento massivo nas áreas de alta prevalência e intensificação da busca passiva e ativa nas áreas com menores níveis de endemicidade.
Em 2009, o governo do estado lançou o Programa de Enfrentamento às Doenças Negligenciadas (Projeto Sanar) e estabeleceu como meta reduzir os níveis de transmissão a menos de 1% nos municípios endêmicos (um total de quatro) da região metropolitana do Recife até 2014. Para tanto, foram definidas estratégias ações de vigilância epidemiológica, vetorial e diagnóstico laboratorial nas áreas prioritárias (com e sem tratamento coletivo), além de fornecer apoio aos municípios com insumos e equipamentos para a adoção da estratégia de tratamento coletivo nas áreas prioritárias.
No caso específico do Recife, recomenda-se a avaliação do impacto do modelo de intervenção adotado sobre a transmissão da filariose, particularmente nas áreas com risco socioambiental de transmissão intermediário e alto, utilizando métodos laboratoriais mais sensíveis e desenhos de pesquisa que possibilitem a obtenção de medidas mais precisas. Devido à drástica redução da carga microfilarêmica em populações submetidas a tratamento antifilarial, os métodos parasitológicos perdem valor diagnóstico devido à baixa sensibilidade.
Em um cenário que tenha como meta a eliminação da filariose do município, as ações intersetoriais das secretarias de saneamento, habitação e educação voltadas para execução de obras de infraestrutura urbana parecem ser prioritárias.
Referências Bibliográficas
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Secretaria de Saúde. Diretoria de Vigilância à Saúde. Programa de Controle da Filariose Linfática no Recife; 2002.
Entrevista com:
Excelente texto. A filariose continua a nos desafiar e demonstrar sua estreita relação com os DSS. Recife, capital do estado de Pernambuco, conserva as características básicas para a manutençãoo dessa endemia. Tema muito oportuno nas vésperas da Primeira Conferencia Regional sobre DSS. Parabéns as autoras do texto!