Índios lutam por dignidade e acesso à saúde de qualidade

Os primeiros registros feitos sobre as terras brasileiras já falavam sobre a população indígena e seu modo de vida e de interagir com a natureza. Mais de 500 anos depois da chegada dos primeiros europeus colonizadores ao País, este povo segue lutando para preservar sua cultura e seus hábitos, superar os estereótipos e buscar melhores condições de vida e saúde para suas famílias, dentro do seu próprio modelo de convivência. Preconceito, hostilidade e falta de informação fazem com que muitos índios ainda vivam submetidos às condições de vida precárias e longe de direitos considerados básicos – como o acesso universal à saúde – à vida de qualquer brasileiro. No processo de reconstrução de sua identidade e afirmação de sua cultura dentro de um modelo que nem sempre os compreende, os índios enfrentam problemas muito parecidos com outras populações vulnerabilizadas, como a falta de saneamento básico e a dificuldade no acesso aos serviços de saúde.

Segundo o Censo Demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 80,5% dos municípios brasileiros há pelo menos um indígena autodeclarado. São 817.963 mil índios brasileiros, dos quais 26,1% vivem no Nordeste, segunda maior região com população indígena do país, ficando atrás apenas da Amazônia, onde vivem mais de 341 mil índios. É no Nordeste que se encontram o terceiro e quarto maiores estados em densidade populacional indígena do país: Bahia, com 6,9% da população e Pernambuco com 6,5%. Ao todo no País são 220 povos, que falam cerca de 180 línguas diferentes.

Apesar da forte presença e da importância da cultura indígena para a formação da identidade de todo o povo brasileiro, desde o processo de colonização e de ocupação das terras, os índios perderam espaço não apenas territorial, mas tiveram também sua cultura hostilizada e diminuída.  “Eles foram obrigados a deixar de lado sua etnicidade e vários rituais o que, ao longo do tempo, provocou um processo de perda da identidade cultural. Boa parte dos índios no Nordeste, por exemplo, perdeu a língua, que é uma raiz forte”, conta a pesquisadora da Fiocruz Pernambuco Idê Gurgel. É o que também acredita Marcondes Secundino, consultor da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e da Organização das Nações do Mundo para Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para o Projeto de Educação Escolar Indígena. Ele defende que essa situação criou um estereótipo do indivíduo indígena, presente não apenas no senso comum, mas também na literatura, em publicações didáticas e no discurso elitista. “É aquela representação em que se projeta o índio destituído de roupas, nômade, habitante da floresta, isolado dos “hábitos modernos” e praticante de uma religião própria”, explica.

Atualmente, as populações indígenas são atendidas por um subsistema do Sistema Único de Saúde (SUS), com equipes que circulam nas comunidades indígenas com o objetivo de prestar cuidados primários. Para Ceiça Feitosa, coordenadora do Departamento de Mulheres Indígenas da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), os índios deveriam ter um sistema de saúde que garantisse um atendimento diferenciado, não apenas nos atendimentos básicos, mas também nos casos mais complexos. “Até podemos dizer que a atenção primária está relativamente boa, mas, quando partimos para a atenção secundária e terciária as coisas se complicam, pois somos jogados no mesmo sistema e entramos na mesma fila”, pontua.

Pesquisa realizada em 2011 pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz) revelou que, no Nordeste, 41,2% das crianças indígenas sofrem com problemas de anemia. Apesar do alto índice, a região obteve o melhor resultado se comparado às outras regiões do país. No Norte este número chegou aos 66%. A mesma pesquisa revelou que apenas 40% das moradias dos índios no Nordeste contam com latrinas. Se comparado ao Norte, onde o número não passou de 1%, o Nordeste apresenta condições melhores, no entanto, a maioria é ainda desassistida desse serviço, direito fundamental assegurado pela Constituição Federal, assim como acesso à água de qualidade e eletricidade, por exemplo.

Entre os anos de 2008 e 2009, pesquisadores da Fiocruz Pernambuco realizaram uma pesquisa com o povo indígena Xukuru – etnia formada por mais de 9 mil índios que reside em Pesqueira, município da região Agreste de Pernambuco – para dimensionar e compreender a situação de saúde nas quais eles se encontravam. Os pesquisadores identificaram que em uma das divisões de área dessa etnia (região da Serra, Agreste e da Ribeira) 50% das casas ainda não possuíam banheiros. “A Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e os agentes de saneamento têm essa função específica, então era uma situação que não precisava mais estar ocorrendo em volume tão grande”, defende Paulette Cavalcanti, uma das pesquisadoras envolvidas no projeto. Ela destaca, ainda, a absoluta importância de um sistema de saneamento para prevenir doenças e garantir condições de saúde mais adequadas dentro daquela comunidade.

“No início do projeto ouvimos o depoimento da mãe do atual cacique. Ela contava que, quando o então cacique Chicão, seu marido, faleceu, ela se viu saindo de um posto de saúde com uma sacola cheia de remédios. Ela mencionava que a medicina daquele posto tinha transformado a dor dela em um problema de saúde com um remédio para dormir, um para depressão e outro para pressão. Essa visão foi muito importante para o nosso projeto”, conta Paulette Cavalcanti. “Na pesquisa percebemos, por exemplo, o quanto os postos de saúde tinham sido inseridos naquela área como um elemento completamente externo à cultura indígena. Não havia diferença alguma de um posto da Zona Rural de um município vizinho. E de péssima qualidade”, critica. Uma das ações propostas pelos pesquisadores para tentar minimizar esse choque cultural foi propor que os postos tivessem algum elemento da cultura dos Xukurus. “Poderia ser tanto no visual, de ter a foto do cacique ou adornos, como eram as escolas, como também um espaço onde tivessem plantas e que eles pudessem ter acesso”, detalha a pesquisadora, que ainda diz que esta iniciativa dentro do projeto não teve grandes progressos. A falta de diálogo entre as formas de conhecimentos medicinais tradicionais com os saberes dos índios é uma falha deste sistema.

Para Secundino, os gestores e profissionais de saúde indígena não são devidamente preparados para trabalhar com estas populações. “Eles não são preparados para trabalhar com especificidades étnicas e o reconhecimento de práticas e de saberes tradicionais que cada povo indígena detém como acerto cultural e com o qual a medicina ocidental deveria dialogar. O que existe na prática é uma imposição da medicina ocidental em detrimento dessas práticas e saberes tradicionais indígenas”, defende o consultor. Na opinião de Paulette Cavalcanti o sistema é falho por não garantir a qualidade dos serviços e a liberdade destes povos. “Na minha concepção, a existência do subsistema de saúde indígena deveria garantir uma organização de saúde diferente do SUS geral, para eles terem os elementos de garantir o direito, inclusive, de não se submeterem aos tratamentos oferecidos tradicionalmente”, defende a pesquisadora. “Uma crítica muito forte que fizemos durante o trabalho com os Xukurus era que uma das curandeiras se tornou auxiliar de enfermagem e ficamos muito impressionados porque ela não foi proibida, mas também não pode usar seu conhecimento dentro do posto. O conhecimento que ela tinha foi totalmente negado quando ela foi contratada”, comenta.

Outra dificuldade no enfrentamento aos problemas de saúde locais está na própria infraestrutura e logística das ações. Dentro de boa parte dos territórios indígenas não há atendimentos específicos, como na área de odontologia, pela dificuldade de se criar uma unidade que seja itinerante e que se adapte e atenda as condições necessárias para atender plenamente esta população. Os índios acabam buscando estes serviços, como qualquer outro cidadão, nos centros urbanos.

No Nordeste, 33,7% dos índios residem em áreas urbanas. Este processo de aproximação mais forte com a cultura tradicional também acabou refletindo numa nova realidade na saúde desta população. Problemas como dependência de drogas, sobretudo álcool e crack, começaram a ser retratados pelos indígenas dentro de suas comunidades, além da forte presença de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes e hipertensão. A expansão das áreas urbanas e a natural aproximação dos povos indígenas com não-indígenas também facilitam a continuidade do processo de pressão sobre os índios no sentido de tomar seus territórios e incorporá-los às terras de latifúndios e grandes produções. “Essa pressão se dá através de leis e uma forte bancada ruralista que existe no Congresso. Isso se deve ao fato das áreas indígenas ainda serem as únicas que possuem mata e água potável”, explica Ceiça Feitosa, que além de ser da APOINME, pertence à etnia Pitaguary do Ceará.

Para Secundino, da Fundaj, a força da elite dentro da conjuntura política atual é o grande motor deste processo. “As elites ocupam relevantes posições no âmbito do Estado brasileiro e a partir deste privilégio tenta anular direitos e emperrar a burocracia estatal que tem como princípio assegurar esses direitos, entre eles, o da demarcação territorial que se encontra praticamente paralisada no Brasil e, especialmente, no Nordeste”, acredita.

Apesar das inúmeras dificuldades enfrentadas pelas populações indígenas ao longo dos séculos, as últimas décadas representam uma retomada da cultura dos índios, resgate de sua língua, do seu contato com a terra, com suas crenças e seus valores. Na década de 1980 – quando este processo começa a criar maior consistência –, pouco mais de uma dezena de povos indígenas era contabilizada no Nordeste, número que hoje passa de 80 povos. A região também apresentou um crescimento da população autodeclarada indígena. Enquanto no ano de 2000 eram 170.389 pessoas autodeclaradas como indígenas, em 2010 esse número foi de 208.691 declarações.

Entre os desafios enfrentados por estas populações está a convivência com a tecnologia, que vem se colocando como grande ferramenta de mobilização e conscientização nesta luta. “É possível usar essas técnicas sem se distanciar da sua identidade indígena. Hoje tais tecnologias nos auxiliam na divulgação de nossa luta e na defesa dos nossos direitos”, acredita Ceiça Feitosa. Marcondes Secundino, da Fundaj, também defende que a tecnologia pode ser uma grande aliada na construção de uma realidade com mais igualdade e qualidade de vida para as populações indígenas. “Cabe a cada povo decidir o uso social que quer fazer do novo instrumento disponível. O acesso ao celular e à TV, por exemplo, pode significar democratização da comunicação e da informação em lugares remotos desse país. O uso social dessas novas tecnologias pode, inclusive, melhorar a qualidade de vida. Também pode se transformar em instrumento de luta política, de formação de um pensamento crítico, capaz de mudar a realidade vivida”, conclui.

Dentro da compreensão de saúde, estes brasileiros também têm um longo caminho pela frente. Universalizar o acesso ao atendimento básico de saúde, ampliar as condições de infraestrutura como instrumento facilitador do acesso aos serviços de saúde e resgatar a cultura medicinal, os saberes de cada povo, para retomar o envolvimento dos índios de cada localidade com os conhecimentos adquiridos por cada etnia ao longo dos séculos, são alguns dos desafios. Também há a necessidade de oferecer aos índios um atendimento que os compreenda, os respeite e que possa auxiliar na melhoria das condições de vida das famílias.

Através do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Sasi/SUS) e das suas unidades descentralizadoras, os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), o poder público, através da gestão Federal e da intersetorialidade necessária, pode e deve oferecer aos diversos grupos étnicos condições de habitação, alimentação, segurança, trabalho e educação, garantindo a eles o acesso aos mais diversos bens e serviços de saúde, interagindo com o conhecimento especial e único desta população e respeitando as diferenças neste diálogo. Além de todo esforço que cabe à iniciativa pública, a reflexão destes índios sobre sua própria realidade, sobre sua situação e seus direitos, é indispensável para a criação de uma comunidade indígena menos vulnerabilizada.

Referências Bibliográficas

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