Josué de Castro: legado que se renova

O Brasil não é o mesmo que Josué de Castro deixou quando morreu, em 1973. Hoje o País orgulha-se de estar entre as nações com menos de 5% de sua população em situação de subnutrição, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU). Entretanto, o avanço não impede que mais de 40% da população brasileira de baixa renda ainda viva em situação de insegurança alimentar: são milhões de pessoas que não sabem se sua família vai ter toda a comida que precisa até o fim do mês. Razões como essas tornam ainda mais importante o desenvolvimento do legado do pesquisador pernambucano, que mapeou cientificamente a fome do Brasil, a expôs para o mundo e ofereceu soluções para o problema. Para destacar a relação da Fiocruz Pernambuco com o pesquisador, neste mês de setembro – quando Josué faria 107 anos de idade e a entidade completa 65 anos de atividades –, esse legado foi lembrado na conferência Josué de Castro, intérprete do Brasil, realizada no dia 1º, no Recife.

Mais do que uma referência natural para a pesquisa na área de saúde, Josué de Castro dá nome ao pavilhão que abriga o Departamento de Saúde Coletiva (Nesc), salas e aula e biblioteca da Fiocruz Pernambuco, no Recife (PE). O evento foi uma promoção da instituição e do Centro Josué de Castro, representado pelo seu coordenador, Malaquias Batista Filho. A conferencista foi a professora Nísia Lima, vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz, que lembrou da história de Josué de Castro e como sua multidisciplinaridade foi importante para o debate sobre o desenvolvimento econômico do País.  “A sugestão é que sua obra seja vista como parte importante da tradição intelectual brasileira, já que ele realizou análises e propôs caminhos de intervenção política, com base em uma visão crítica em relação aos rumos do desenvolvimento”, frisou Nísia Lima.

REVOLUÇÃO – Criado em uma família humilde, Josué de Castro cresceu alimentado pela curiosidade de entender as razões das desigualdades que se impunham ao seu redor, mais escancaradas nos manguezais às margens do Rio Capibaribe, no Recife, onde seres humanos em busca de alimento cotidianamente travavam uma luta pela sobrevivência. Cenas que mais tarde o pesquisador descreveria como “estranho mimetismo entre homens e caranguejos”. “A fome se revelou espontaneamente nos meus olhos”, disse certa vez o homem que revelou ao Brasil abundante o Brasil que não tinha o que comer.

Embora sua obra Geografia da Fome, publicada em 1946, seja um grande marco da sua contribuição para o assunto em nível global, as atividades dele permeavam diversos determinantes sociais. Como já descreveu a doutora em Sociologia Aplicada Anna Maria de Castro, filha de Josué, ele, “(…) além da fome, também estudou questões de interesse global que lhe são relacionadas, como o meio ambiente, o subdesenvolvimento e a paz.” Através de seu trabalho, Josué de Castro relevou aos brasileiros e ao mundo como a injustiça social e a valorização econômica em detrimento ao desenvolvimento humano levava pessoas à miséria, à saúde debilitada e à morte. Porém nem o reconhecimento mundial da relevância de sua obra o salvou da tirania do exílio imputado pela Ditadura Militar. Exclusão que levaria Josué à depressão que acelerou o fim da sua vida, como relatado no documentário Josué de Castro, Cidadão do Mundo, de Silvio Tendler, lançado em 1994. “O Brasil tem essa característica de ocultar seus grandes problemas. E ele mostrou que tem fome no mundo, tem fome no Brasil e essa é uma questão que tem que confrontada”, declarou o ativista Herbert José de Sousa, o Betinho, no vídeo a seguir.

FOME HOJE – Em maio deste ano, o governo brasileiro comemorou a divulgação do mais recente relatório da ONU, que marcava à ascensão do Brasil, em 2012, ao grupo de países em que menos de 5% da população sofre com subnutrição. De acordo com o documento, houve uma redução das taxas entre as décadas de 1990 e 2000, saindo de 22,6 milhões para 19,9 milhões a quantidade de pessoas que passam fome. A entidade apontou que os fatores mais importantes para estes resultados foram políticas como os programas Fome Zero e Bolsa Família e a elevação da renda entre as mulheres, que investem mais na saúde e alimentação familiar.

Esses ganhos, no entanto, perdem o brilho da celebração quando se consideram os 2,7 milhões que ficaram ainda à margem, independentemente do crescimento do País. “Claro que ainda se passa fome no Brasil”, exclama o coordenador do Centro Josué de Castro, Malaquias Batista Pinto. Segundo ele, mais de 40% da população de baixa renda ainda vive em insegurança alimentar. Outro dado que reforça esse cenário vem do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), em 2013, 22,6% das famílias brasileiras sofriam algum tipo de insegurança alimentar, das quais fazem parte 7,8% de um nível de moderada a grave (veja no infográfico).

Malaquias pontua que a falta de uma alimentação digna é “uma ameaça territorialmente difusa”, embora se saiba que é mais comum em situações como agrupamentos índios, grupos quilombolas e comunidades pobres urbanas e rurais. “A imagem traumática da fome ainda não está apagada na memória coletiva. E talvez ainda permaneça como uma ameaça ou como realidade concreta, por mais 10 ou mais anos”, prevê Malaquias. Isso ocorre porque o descompasso entre avanços econômicos e sociais ainda é muito marcante. “Basta lembrar que o Brasil ainda tem 12 milhões de favelados”, frisa o pesquisador. Ele esclarece que Josué de Castro mostrou a desconexão entre os males que assolavam o País e preconceitos comuns à época, como a preguiça de índio e a incompetência do negro. “E de um modelo de apropriação abusiva do meio ambiente (solos, águas, flora, fauna e recursos minerais) e de exploração desumana da mão de obra nativa ou importada para os interesses superiores do mercado”, explica.

Com a persistência desses procedimentos pró-desigualdade social, o espaço deixado pela mudança no quadro da fome aparentemente vem sendo ocupado por outros males nutricionais. O coordenador do Centro lembra que problemas como anemia, deficiência de vitamina A e sobrepeso atingem níveis altos nas populações mais pobres. “São elas que agora se tornam os grupos mais expostos a esta situação que se faz acompanhar”, comenta, ao exemplificar com outras doenças, como hipertensão arterial, diabetes e altos níveis de colesterol. “É um cenário híbrido, em que ainda coexistem as doenças carenciais próprias da pobreza, ao lado do processo pandêmico das doenças crônicas não transmissíveis”, complementa.

PESQUISAS – Desafios dessa magnitude chamam a atenção de estudiosos que dão continuidade, em diversas frentes, aos canais abertos por Josué de Castro. No Centro que leva seu nome, no Recife, pesquisadores unem seus esforços acadêmicos para manter um debate permanente sobre “a transição alimentar e nutricional, as condições de vida das populações faveladas, a questão da mobilidade urbana, a situação do emprego, renda, os desafios da nova educação voltada para os problemas e vivências concretas, a questão do desenvolvimento sustentável”, como reforça Malaquias.

Para ele, uma das novas contribuições que esses desdobramentos do trabalho de Josué de Castro poderia ter está na discussão do salário mínimo. “Deveríamos tomar o precedente histórico dos 80 anos do estudo pioneiro de Josué de Castro sobre as condições de vida de 500 famílias operárias do Recife para rediscutir as novas bases de salário mínimo no Brasil”, detalha Malaquias. “Homem de uma visão de futuro, com certeza Josué de Castro acolheria esta proposta, justificada nas grandes mudanças que resultaram em uma nova realidade para reabrir uma discussão de fundamentos conceituais e empíricos sobre a cesta (ou cestas) alimentares no Brasil e, de modo geral, sobre orçamentos familiares”.

Esse embasamento teórico permite à instituição prestar consultoria a outras entidades e órgãos públicos envolvidos em desenvolvimento de políticas públicas na área. Contudo, esse trabalho não garante o funcionamento pleno do Centro Josué de Castro. Apesar de ser reconhecido como de utilidade pública, ele não tem pessoal o suficiente para dar suporte às atividades. Em relação aos pesquisadores, são 20 pessoas, que se revezam em diferentes campos e que estão conectados ao Centro através da colaboração com instituições apoiadoras. “Trabalhamos com um espírito de amadores, espontaneamente mobilizados. É o nosso bem, mas, ao mesmo tempo, nosso mal. Um senhor desafio!”, diz Malaquias.

SAIBA MAIS – Duas vezes indicado para o Prêmio Nobel da Paz, Josué de Castro ocupou, entre outros cargos de destaque, o de presidente da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Na sua rápida passagem pela política, foi o deputado mais votado do Nordeste em 1958. Audidata e poliglota, ele publicou 22 livros e foi traduzido para mais de 25 idiomas. Morreu aos 65 anos, no exílio em Paris.

Dentre as obras que realçam seu trabalho, está o livro Médicos Intérpretes do Brasil (São Paulo, Editora Hucitec, 2015), organizado por Nísia Lima e Gilberto Hochman, que mostra o papel de médicos na interpretação de aspectos gerais sobre a sociedade brasileira e na proposição de projetos para o País. “Neste livro reunimos textos instigantes de médicos do século 20, comentados por pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento. Como não poderia deixar de ser, Josué de Castro foi um dos médicos selecionados e dele publicamos ‘As condições de vida das classes operárias no Nordeste’, complementado pelo texto de Francisco de Assis Guedes de Vasconcelos”, comenta Nísia Lima.

 

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