Tratar sobre o uso de drogas por adolescentes consiste em um desafio que se coloca para além do que poderíamos abordar ao longo deste relato de experiências. Pelo caráter multifacetado desse fenômeno, apontaremos apenas alguns dos seus contornos, considerando as principais discussões suscitadas ao longo das nossas atividades de pesquisa, ainda bastante incipientes. Entendemos que o conjunto dos problemas sociais, dentre os quais destacamos o uso de drogas por adolescentes, evidencia a relação estreita da saúde com a organização social, o que proporciona o estabelecimento das teorias afinadas com a determinação social da saúde e se configura também numa condição socialmente imposta e influenciada pela “questão social” (SILVA; SOUZA, TERENCIO, 2011, p. 686). Utilizamos o termo “questão social” entre aspas por compreendermos que tal expressão “não é semanticamente unívoca. Ao contrário, registram-se em torno dela compreensões diferenciadas e atribuições de sentido muito diversas” (NETTO, 2001, p. 41).
Entre as nossas vivências, destacamos que, no ano de 2008, participamos da implantação do Núcleo de Promoção da Saúde, no município de Estrela de Alagoas/AL, cidade situada no Agreste alagoano, com população estimada em 17.254 habitantes (IBGE, 2010). Naquela ocasião, iniciamos uma atuação interdisciplinar e intersetorial, com destaque para a interface saúde-educação, através do “Projeto de Prevenção e Controle do uso de álcool e outras drogas por adolescentes com ênfase em práticas socioeducativas e em atividades que promovam uma cultura de paz” (TERENCIO; SILVA, 2011).
Em 2009, apresentamos alguns desdobramentos do projeto no Congresso Internacional de Promoción de Salud (Hermosillo, México). Naquele ano, ingressamos na Universidade Federal de Alagoas e demos continuidade ao trabalho através da Pró-Reitoria de Extensão Universitária (PROEX). Em 2010, mantivemos as ações, entretanto, considerando apenas a Escola Municipal João Paulo II, situada na zona urbana do município, com uma média de 1.300 alunos, matriculados no ensino fundamental. A publicação “A questão do uso de álcool e outras drogas por adolescentes”, lançada em 2011, durante a Bienal Internacional do Livro ocorrida em Maceió (Edufal), trouxe discussões significativas, que já evidenciavam um diferencial na nossa concepção acerca dessa problemática. Nesse mesmo ano, submetemos um projeto a um edital da SESu/MEC, intitulado “Práticas socioeducativas: estratégia para redução de danos e prevenção do uso de drogas por adolescentes e jovens”, cujas ações foram desenvolvidas em 2012, tendo seus principais resultados publicados, recentemente, no Livro “Redução de danos e uso indevido de drogas: contribuições para práticas socioeducativas” – Edufal, 2013. Desde o início deste ano, estamos atuando no Observatório sobre Drogas no Agreste Alagoano (PROEX/UFAL), sediado no Campus Arapiraca, com um polo em Estrela de Alagoas.
Com base nestas experiências, entendemos que o uso de drogas por adolescentes (incluindo álcool, tabaco e outras drogas) no capitalismo contemporâneo consiste numa refração da chamada “questão social”. Suas implicações repercutem em diversas esferas de reprodução da sociedade capitalista, sobre o que nos ocuparemos a seguir.
O uso de drogas “muito provavelmente irá acompanhar toda a história da humanidade” (BRASIL, 2010). Entretanto, é importante destacar que suas consequências “assumem, na atualidade, níveis alarmantes e justificam os inúmeros esforços empreendidos em função da necessidade de redução dos danos causados pelo uso de drogas” (SILVA et al., 2011, p. 21), ainda que suas causas sejam inatingíveis pelas diversas ações em curso. Tal compreensão ganha força quando consideramos a estreita relação entre o uso de drogas e as diversas mazelas sociais, como violência, desemprego e pobreza.
Diante das forças de resistência empreendidas pelos trabalhadores, motivados, principalmente, pelo binômio pobreza e desemprego – segundo Souza (2012, p.42), o desemprego constitui uma das “expressões contemporâneas da ‘questão social’. As respostas do capital expressam, a seu modo, diversas estratégias de concessão, de coerção e de repressão o que, em parte, caracterizam as ações do Estado, enquanto esfera político-administrativa do sistema capitalista.
No caso dos adolescentes pobres, os efeitos imediatos provocados pelo uso de drogas colaboram para potencializar as sensações de ser e, não raro, dão a coragem necessária para conseguir, a todo custo, aquilo que ainda não têm. Convém lembrar, no entanto, que mesmo o adolescente da classe burguesa, cujas condições econômicas possibilitam a satisfação de necessidades das mais diversas, acaba por conviver com as refrações dessa problemática, uma vez que “sua condição de classe dominante não consegue protegê-lo, integralmente, da exposição e do uso de drogas” (SILVA et al., 2011, p. 89).
Na concepção da saúde coletiva, entende-se que a produção de saúde é originária de um processo sociohistórico que irá determinar as condições em que a saúde será oportunizada para a sociedade, o que perpassa um jogo de interesses por disputa de recursos dentro de um contexto de desenvolvimento social, político e econômico (GONZÁLES, 2003). Esse processo de estabelecimento da saúde acaba por não ser suficiente para atingir uma isonomia societária dentro do pressuposto do direito fundamental de todos os indivíduos, pela própria forma como é estruturada e pensada politicamente.
Desta forma, o uso de drogas por adolescentes não “constitui apenas um problema de saúde ou uma questão de segurança pública. Trata-se de um fenômeno cujas raízes remontam ao processo de complexificação social e precisa ser apreendido em suas determinações e múltiplas expressões” (SILVA et al., 2013). Estamos propondo uma leitura crítica acerca da noção hegemônica sobre os Determinantes Sociais da Saúde, por entendermos que “a determinação é essencialmente econômica, pois os supostos DSS consistem em condições sociais com raízes materiais precisas, que apenas vão adquirindo novas formas de acordo com o momento histórico vivido pelo sistema do capital, mas que não deixam de compor uma questão uma” (SOUZA; SILVA; SILVA, 2013, p. 56).
Cabe ressaltar que a “teoria dos Determinantes Sociais da Saúde ganhou importância apenas recentemente, mais precisamente no século XX, a partir do momento em que as ciências da saúde começaram a ser entendidas como essencialmente sociais […]” (p. 21). Segundo a Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais da Saúde, estes são definidos como “os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde na população” (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007, p. 78).
Por esta razão, a questão do uso de drogas por adolescentes deve ser tratada à luz do processo sociohistórico, o que implica situá-la para além do campo da saúde, da segurança pública ou mesmo de uma abordagem comportamental. Diante deste quadro, o Estado vai tentando amenizar os efeitos provocados pela questão do uso de drogas, quer motivado pelo impacto econômico dos seus efeitos para a esfera econômica, quer pelas suas implicações com o caso da violência e da criminalidade, além dos gastos com a saúde. Nesse contexto, situamos a internação compulsória e o recém implantado, pela Prefeitura de São Paulo/SP, o “Cartão Recomeço”.
No primeiro caso, argumenta-se que alguns dependentes, em função do agravamento da dependência, não dispõem das condições psicológicas necessárias para decidirem sobre sua internação. Uma equipe especializada avalia a situação e indica a internação compulsória, segundo autorização judicial. No caso do “Cartão Recomeço”, a prefeitura de São Paulo se responsabiliza pelo custo da internação, com um valor pré-estabelecido, sendo o repasse financeiro efetuado para as instituições credenciadas para esta modalidade de acompanhamento.
Pelo que observamos na realidade de Alagoas, e segundo dados da Secretaria de Promoção da Paz (SEPAZ, 2012) do estado, única no país, o número de instituições credenciadas no ano passado não passava de 12 para atender a todo o estado. Observamos também que muitas famílias pobres não têm condições financeiras de arcar com as internações em clínicas particulares, pois, em média, os custos mensais com a internação giram em torno de R$ 1.200. Em geral, as prefeituras alagoanas, sobretudo as do interior, têm dificuldade em arcar com os custos da internação e os dependentes ficam a mercê da caridade alheia para conseguir um tratamento adequado.
De imediato, observa-se que tais medidas constituem estratégias para amenizar os impactos da dependência e oportunizam o tratamento pelas vias institucionalmente reconhecidas. Entretanto, há uma necessidade de instituir um conjunto de ações que incidam, efetivamente, nas causas da questão pois, do contrário, com o tempo, haverá o estrangulamento da capacidade estatal em responder à problemática. Ademais, a ampliação de medidas como estas serve também para demonstrar a incapacidade do Estado em atuar na raiz da questão, assim como de garantir, em sua capacidade instalada, as condições de tratamento aos dependentes e familiares.
Para melhor ilustrar tal discussão, temos o caso do Projeto “Acolhe Alagoas” que, segundo a SEPAZ, surgiu para interferir nos crescentes índices de violência no estado. Tal projeto tem foco no acolhimento a dependentes químicos, com a atribuição “de fortalecer ações de inclusão e resgate social de pessoas com dependência química que têm uma relação estreita com os índices de violência no Estado” (ALAGOAS, 2012). O projeto foi desenvolvido a partir da concepção de ser a dependência química um estilo de vida com danos sociais elevados e não somente o uso exagerado de determinada substância psicoativa. Procura-se contemplar a multifatoriedade na origem do consumo de drogas.
O projeto é de acolhimento por se considerar necessária a parada de consumo drogas e a saída do local de risco social elevado, com o objetivo de promover o equilíbrio do dependente, seu acolhimento, proteção e oferecer possibilidade de reestruturação física e social. Todo o projeto é consentido pelo usuário e pela família. Tem como público-alvo homens e mulheres em consumo ativo de drogas, a partir de 12 anos de idade, que tenham vulnerabilidade social e desejo de abstinência de drogas, e que não possuam comorbidade física ou mental grave em atividade que inviabilize sua permanência no ambiente de tratamento (ALAGOAS, 2012). Ainda não dispomos de dados que atestem a eficácia das ações propostas pelo Projeto Acolhe Alagoas, mas destacamos que, em função dos pré-requisitos estabelecidos, muitos dependentes (chamados no projeto pela generalização “usuário”) ficarão de fora.
Estas notas acerca da problemática do uso de drogas por adolescentes nos permitiram entender que todos os complexos sociais são regidos pelas contradições do modelo capitalista de produção. Tal modelo determina as diferentes ações propostas pelas políticas públicas, em geral de cunho proibicionista e assistencial, determinando os diversos papeis sociais que produzem um sistema repetitivo e cíclico de construção social. Há uma reprodução de valores e modelos que apenas mantêm e reproduzem o atual modelo societário, sem, contudo, propor mudanças estruturais que possibilitem a construção de uma sociedade que consiga desenvolver uma nova compreensão sobre a problemática das drogas.
É no confronto com as diversas representações sociais, com as experiências e ações de outros pesquisadores que percebemos as diferentes realidades e os significados atribuídos à problemática em questão. Põe-se a necessidade de questionamentos sobre o desenvolvimento de ações diferenciadas, a partir de uma concepção radicalmente crítica, entendendo que os indivíduos são sujeitos e são produzidos historicamente, e que portam as condições objetivas e subjetivas de transformação da sociedade atual, por uma sociedade efetivamente humana, livre e justa. É nesse processo que situamos a questão em relevo, enquanto fenômeno possível de ser superado apenas quando as suas determinações econômicas o forem.
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