A extensão da ameaça da EC 86/2015 sobre o SUS

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Situação do financiamento do SUS tende a se agravar com EC e com a crise atual (Crédito: André Yanckous/Agência Kah)

Destaque entre os grandes desafios que se impõem sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), o repasse de recursos passou por uma importante e potencialmente danosa mudança recentemente, com a Emenda Constitucional 86/2015. As novas regras mudam os percentuais de repasse, com perdas que podem gerar a R$ 9 bilhões, além de deixar esses canais mais suscetíveis às crises econômicas como a que atravessamos agora – justamente quando a população mais precisa dos serviços públicos de saúde. Preocupações que ganham mais relevância quando se considera que o Brasil aplica, efetivamente, menos de 4% do seu Produto Interno Bruto (PIB) em saúde, enquanto parâmetros internacionais apontam pelo menos 7%. Nesse cenário detalhado abaixo pelo economista Francisco Funcia, consultor Economia, Gestão, Orçamento e Finanças Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), que concedeu esta entrevista pouco depois do início da Mobilização em Defesa do SUS – AbraSUS, movimento através do qual sociedade civil, academia e gestores podem trabalhar para reverter esse quadro.

No artigo Implicações da Emenda Constitucional n. 86/2015 para o processo de financiamento do Sistema Único de Saúde, o senhor aponta que ela representará, na prática, perda de financiamento para o SUS no curto prazo. O senhor poderia nos explicar a relação entre o financiamento do SUS antes e depois da EC 86/2015? Como estaríamos se ela não estivesse em vigor?

A regra válida até o ano de 2015 (Emenda Constitucional 29/2000 e Lei Complementar 141/2012) estabelece que a aplicação mínima no ano “x” corresponde ao valor empenhado no ano “x-1”, corrigido pela variação nominal do PIB do ano “x-1”. Além disto, a cada cinco anos, seria possível rever a metodologia de cálculo para a apuração deste valor mínimo, bem como, no segundo semestre de 2013, foi aprovada a “lei do Pré-Sal”, na qual uma parte dos recursos seria destinada para financiar despesas com ações e serviços públicos de saúde (ASPS) adicionalmente àquele valor da aplicação mínima.

Com a aprovação da EC 86/2015, a partir de 2016, o critério de cálculo para apuração da aplicação mínima corresponderá a um percentual da Receita Corrente Líquida (RCL) do próprio exercício, iniciando com 13,2% e aumentando este percentual anualmente até atingir 15% em 2020. Os recursos do Pré-Sal perderam a condição de financiamento adicional ao da aplicação mínima e não há mais dispositivo constitucional para a revisão quinquenal da metodologia de cálculo dessa aplicação mínima. Além disto, as emendas parlamentares individuais passaram a ter o caráter de execução orçamentária obrigatória (emendas impositivas), correspondente a 0,6% da RCL (aproximadamente R$ 4,5 bilhões), quando a média anual destas despesas no período 2009-2013 foram de aproximadamente R$ 1 bilhão.

Dentre os cálculos que o senhor apresenta no artigo, quais números sintetizam as perdas que o senhor aponta?

Um exemplo claro da perda de aplicação em ASPS decorrente da EC 86/2015 pode ser evidenciado a partir da simples constatação de que, se estivesse vigorando em 2014, as despesas empenhadas corresponderam a 14,2% da RCL, enquanto que, para os primeiro e segundo anos de vigência, os percentuais constitucionais são menores (13,2% e 13,7%, respectivamente). Como ainda não terminou o exercício de 2015 e fatos novos surgem diariamente, não é possível ter um valor exato da perda decorrente somente da mudança de critério para apuração do cálculo do valor mínimo, sendo que, num dos cenários, chegará a R$ 9 bilhões. Em outro estudo que realizamos posteriormente, para manter o padrão de gasto de 2014 e incorporar os acréscimos de despesas obrigatórias, foi estimada uma insuficiência na peça orçamentária de 2016 de R$ 16,6 bilhões em 2016, se for destinado somente o valor mínimo de R$ 100,3 bilhões (calculado com base em 13,2% da RCL nos termos da EC 86/2015).

O senhor aponta também que os ganhos a partir de 2018 serão “pagos” com prejuízos até 2016. Quais serão os efeitos para o SUS no longo prazo? De algum modo a EC “protege” os recursos da saúde em crises econômicas futuras?

A recessão econômica que está em curso neste ano de 2015, deverá ocorrer também em 2016 e, talvez, também em 2017. Trata-se de um processo de desaceleração da atividade econômica iniciada no segundo semestre de 2014 e aprofundada no primeiro semestre de 2015. Como uma parte das medidas recessivas começou a ser aprovada pelo Congresso Nacional a partir de novembro, não há perspectiva de recuperação da atividade econômica no curto prazo e, consequentemente, as receitas públicas (em âmbito federal, estadual e municipal) terão queda real neste e nos próximos anos, diminuindo na mesma proporção os valores da aplicação mínima do SUS no contexto de aumento de desemprego decorrente da recessão, quando então aumentará ainda mais a demanda por serviços públicos de saúde.

O PLP 321/13 teria esse papel “protetor”?

O PLP 321/13 representou um importante “grito” da sociedade em defesa de mais recursos para o SUS. Foram mais de 2,2 milhões de assinaturas auditadas, fruto da mobilização de vários setores da sociedade coordenados pelo movimento “Saúde+10”, em prol de 10% das receitas correntes brutas. Em termos de RCL, esta cifra corresponderia em 2014 a 19,2%, portanto, muito acima tanto dos 14,2% efetivamente aplicados em ASPS, como dos 13,2% que deverão ser aplicados como mínimo em 2016 conforme a EC 86/2015.

Quais os impactos sobre a saúde no Nordeste e a redução das desigualdades regionais em saúde com a EC 86/2015?

A recessão econômica paralisou o processo de redução das desigualdades socioeconômicas e regionais realizado nos últimos 12 anos. Neste contexto, as mudanças introduzidas pela EC 86/2015 trarão prejuízos muito elevados no atendimento à população. Considerando que a recessão econômica está provocando queda da receita pública nas três esferas de governo e que dois terços do orçamento do Ministério da Saúde representam transferências fundo-a-fundo para Estados e municípios, o quadro de subfinanciamento do SUS será ainda mais forte, com atrasos de repasses e a impossibilidade de aumentar ou, até mesmo, de manter a prestação de serviços.

Qual será o principal desafio dos gestores públicos nesse contexto?

A saúde é um direito de todos e um dever do Estado, conforme o artigo 196 da Constituição Federal. Mais do que nunca, a defesa do SUS passa pela luta contra a redução de recursos do Ministério da Saúde e, ao mesmo tempo, pelo desenvolvimento de ações voltadas para a melhoria da qualidade do gasto. É preciso superar o discurso conservador daqueles que querem acabar com o SUS sob a alegação de que “recurso não falta, o que falta é gestão”. Os parâmetros internacionais apontam para uma aplicação mínima de 7% do PIB para sistemas de saúde com as características do SUS, enquanto que, no Brasil, em termos consolidados, os governos federal, estaduais e municipais aplicam menos de 4% do PIB. Portanto, a luta é sim por mais recursos, inclusive para financiar ações voltadas para a melhoria da qualidade do gasto.

Como a sociedade civil e a academia podem contribuir para que essa situação prevista pelo senhor no artigo seja revertida ou amenizada?

O Conselho Nacional da Saúde coordenou neste mês o processo de formação da Frente Nacional de Mobilização em Defesa do SUS – “AbraSUS”, cujo trecho final do “Manifesto” sintetiza o esforço deste momento:

“Às vésperas da realização da 15ª Conferência Nacional de Saúde, a unidade da luta institucional, social e popular em defesa do SUS deve conciliar três eixos de ação que podem resolver no curto prazo os efeitos negativos do subfinanciamento do SUS para o atendimento de saúde da população:

  •         Apoiar a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 01-A/2015 – que modifica a Emenda Constitucional nº 86/2015 por meio do aumento do valor da aplicação mínima da União em ASPS para 19,2% da Receita Corrente Líquida e rejeitar a prorrogação da DRU (Desvinculação das Receitas da União) para 2023 com alíquota majorada para 30% em tramitação no Congresso Nacional;
  •         Defender a criação de uma contribuição sobre as movimentações financeiras (nos moldes da CPMF) e a taxação sobre grandes fortunas como novas fontes exclusivas para o SUS, cujos projetos estão tramitando no Congresso Nacional, de caráter progressivo (quem dispõe de maior capacidade contributiva deve pagar mais) e compartilhada entre a União, os Estados, Distrito Federal e os Municípios; Reforma tributária que promova a justiça fiscal, e;
  • Cobrar do governo federal a mudança da política econômica de caráter recessivo, com o início imediato de um processo de redução da taxa de juros, por outra política voltada para o crescimento econômico com inclusão social.

 

 

 

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