As mudanças do perfil epidemiológico, marcadas pelo aumento na prevalência de Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT), apresentam-se como importante desafio para a saúde coletiva no século XXI. A mortalidade por DCNT tem apresentado aumento crescente nas últimas décadas e, em 2013, as Doenças Cardiovasculares foram consideradas a primeira causa de morte no país, segundo a Sociedade Brasileira de Cardiologia (2016).
Entre as DCNT destacam-se a hipertensão (HAS) e o diabetes mellitus (DM) que representam importantes fatores de risco para complicações cardiovasculares, coronarianas, encefálicas, vasculares periféricas e renais. No Brasil, em 2014, verificou-se que aproximadamente ¼ (22,7%) da população brasileira era hip
ertensa, sendo Recife a segunda capital de maior prevalência (26,7%), e 8% eram diabéticos (BRASIL, 2015).
A HAS e o DM apresentam curso clínico que muda ao longo do tempo, com possíveis períodos de agudização, podendo gerar complicações. À medida que estas doenças se complicam, os custos, tanto diretos, como indiretos e os intangíveis (dor, ansiedade, transtornos laborais, perda de qualidade de vida, entre outros) assumem uma maior proporção e provocam grande impacto na vida das pessoas. Por isso, requerem um sistema de saúde integrado e organizado em rede, de forma que se possa ter resolutividade nos três níveis de atenção à saúde.
Em 2013, com o objetivo de estruturar uma rede de cuidados aos Portadores de DCNT foi instituída a Portaria nº 252/GM/MS, já revogada no ano seguinte pela Portaria nº 483. Esta redefine a Rede de Atenção à Saúde para estes pacientes no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), além de sugerir diretrizes para a organização das linhas de cuidado. Vale ressaltar que o modelo de atenção à saúde é essencial para a estruturação da rede, mas, na prática, ainda apresenta dificuldades para o seu cumprimento, principalmente devido a falhas de comunicação entre a atenção primária, média e alta complexidade.
Estudos realizados em municípios do Nordeste apontam para as dificuldades em garantir a integralidade da atenção e a contrarreferência tem sido apontada como um nó crítico para a integração entre os serviços (SANTOS, 2015). O pouco conhecimento e a dificuldade dos especialistas em se adequar ao modelo adotado, a quase ausência de espaços de discussão dos casos entre os profissionais da atenção primária e especializada, são apontados como motivadores dessa contrarreferência deficiente, levando a crer que o investimento deva ser mais em capacitação desses profissionais do que em instrumentos gerenciais (MEDINA, 2006; SANTOS, 2008; SANTOS, 2015). Portanto, a discussão sobre a referência e contrarreferência remete à integralidade que, entre as diretrizes organizativas do SUS, parece ser a que menos tem avançado quando comparada com a descentralização e com a participação da comunidade.
Os encaminhamentos desnecessários e o escasso uso de protocolos de atendimento contribuem para a insuficiente resolutividade da Atenção Primária à Saúde (APS), e esse é um aspecto que ainda merece muita atenção, uma vez que sobrecarrega os serviços especializados com casos simples, que poderiam ter seu acompanhamento realizado na APS. A sobrecarga de serviços de alta complexidade resulta em gastos anuais bilionários principalmente com procedimentos propedêuticos e terapêuticos (MENDES, 2011). Assim, o papel de ordenar a rede de atenção e coordenar o cuidado dos pacientes são desafios a serem superados pelos profissionais das equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) e pelos gestores das três esferas de gestão.
Contudo, mesmo para encaminhar apenas aqueles casos com indicação, ainda assim seria necessário fazer uma discussão sobre cotas de consultas, exames especializados e disponibilidade de medicamentos, em muitos lugares considerados insuficientes. O que não se pode afirmar é que apenas com o aumento dessas cotas, o problema seria resolvido. Há que se ter um diagnóstico consistente da capacidade instalada e o percentual efetivo de utilização desses serviços, remetendo à necessidade de regulação desses procedimentos (ALBUQUERQUE et al., 2013).
A HAS, DM e suas complicações poderiam ser evitadas ou minimizadas se a APS tivesse subsídios para assegurar um maior controle glicêmico e pressórico. No entanto, estudo realizado em 2010, no Estado de Pernambuco, com 785 hipertensos e 822 diabéticos cadastrados em 208 equipes da ESF, constatou que a pressão arterial foi controlada em apenas 43,7% dos hipertensos e 25,8% dos diabéticos e destes apenas 30,5% apresentaram HbA1c abaixo de 7% (FONTBONNE et.al, 2013). Outro estudo realizado com a mesma população apontou que o acesso aos medicamentos ainda está abaixo da média recomendada pela OMS, fato que se agrava nos municípios de pequeno porte (BARRETO et al., 2015).
Em Recife, onde há uma rede de média e alta complexidade considerável e onde houve uma marcante expansão da cobertura da ESF, alcançando 53,9% no ano 2016, são necessários estudos sobre integração entre os serviços, na perspectiva da continuidade do cuidado, sobretudo para as doenças crônicas, considerando que a ampliação da cobertura seja apenas uma das dimensões do acesso (ALBUQUERQUE et al., 2013). Para além da capital pernambucana, estudos dessa natureza devem ser replicados em vários municípios do país.
Um estudo de caso sobre a articulação entre a ESF e os serviços especializados para a atenção aos pacientes com Diabetes, no Distrito Sanitário III do Recife, encontrou os seguintes achados: insuficiente resolutividade das equipes da ESF, interferindo diretamente na continuidade do cuidado; insuficiente programação das ações, com processo de trabalho centrado na queixa do paciente; pouca importância ao uso de protocolos clínicos; deficiência de capacitação técnica dos profissionais para o atendimento a esses pacientes; insuficiente aproximação da comunidade e tímido desenvolvimento de atividades de educação em saúde; grande importância dada ao número de consultas, em detrimento de ações mais estruturais e de maior impacto; incipiente consciência dos profissionais sobre a corresponsabilidade frente à dificuldade de acesso dos pacientes a consultas especializadas; fragilidade na comunicação entre os serviços, sobretudo entre os profissionais da ESF e os especialistas das unidades de referência (SANTOS, 2008).
Mais recentemente, nesse mesmo Distrito Sanitário, foi realizada uma pesquisa na qual se verificou que a Rede de Atenção à Saúde aos portadores de Diabetes Mellitus no SUS estava implantada parcialmente, embora o contexto político de gestão tenha se mostrado favorável à implantação da Rede. Entre os principais achados destacam-se a inexistência de protocolos para estratificação dos pacientes por risco (83,3%), a incipiente regulação de leitos (Grau de Implantação=50%) e a dificuldade no agendamento de consultas (Grau de Implantação=50%). No que se refere à contrarreferência, 66,7% das equipes analisadas relataram nunca ou quase nunca acontecer (SANTOS, 2015).
Em relação à implantação da atenção à HAS pelas equipes da ESF do Recife, Costa e colaboradores (2011), classificaram como insatisfatória (58,8%) ao analisar todos os distritos sanitários do município e não identificar diferenças significativas entre os mesmos, com variação entre 54,1% e 65,0%. A dimensão estrutura apresentou características ainda menos favoráveis do que o processo de trabalho. Entre os principais fatores negativos relacionados ao grau de implantação foram mencionados a deficiência de insumos, área física, qualificação profissional na atenção ao hipertenso, incipiente uso da informação para o planejamento das ações, além da ausência de coordenação geral do programa de hipertensão na gestão central e a incipiência das coordenações nos distritos sanitários.
No que se refere à disponibilidade e regularidade de distribuição das medicações, a quantidade de medicamentos recebidos pelos serviços de saúde não corresponde à necessidade de todos os usuários (SANTOS, 2015). Situações semelhantes foram verificadas por Kovacs e Feliciano (2000), em estudo realizado no Recife, antes da grande expansão da ESF (em torno de 6% no ano 2000), o que nos leva a supor que a tentativa de reorganizar o modelo de atenção no município a partir da ESF tem encontrado muitas dificuldades para alcançar êxito.
Tendo em vista que o modelo de atenção à saúde para a doença crônica requer educação em saúde para o autocuidado apoiado e continuado, uma rede organizada e resolutiva, decisões compartilhadas e um fluxo de informações que garanta avaliação sistemática para diagnosticar complicações em fase inicial, é emergente a mudança no modelo de assistência, assim como da ressignificação do cuidado.
Ao longo dos últimos anos, a APS tem sido considerada uma importante estratégia para o enfrentamento dos problemas de saúde pública. É notório o investimento neste âmbito, com o aumento de mais de 30% na cobertura da ESF no intervalo de 2002 a 2014 (ABRASCO, 2015), entretanto ainda são muitos os desafios na qualificação deste nível de atenção diante dos seus atributos. Para Starfield (2002), os atributos essenciais da APS que são o acesso de primeiro contato, longitudinalidade, integralidade e coordenação da atenção, a torna capaz de prover o cuidado integral e melhorar efetivamente a saúde da população. No entanto, como fazê-lo sem estrutura adequada, recursos humanos qualificados e autonomia decisória e financeira, tendo em vista as iniquidades e desigualdades sociais que impactam na saúde e se manifestam de maneira diferente a depender do território?
Diante destes atributos é importante redirecionar olhares que considerem a complexidade do cuidado neste âmbito, não apenas no que se refere às relações sociais, mas também à tecnologia necessária para a resolutividade, vigilância e monitoramento de agravos crônicos. Também se torna iminente a discussão da eficiência, e não apenas da efetividade, para o fortalecimento da APS e, como ordenadora do SUS, para consequente consolidação das Redes de Atenção ao paciente crônico.
Referências bibliográficas
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