São os serviços de saúde geradores de iniquidade? São sim. Essa é a tese que Barbara Starfield defendeu no seu último editorial do International Journal for Equity in Health em abril do ano passado.
A autora começa por definir a iniquidade como “a presença de diferenças sistemáticas e potencialmente remediáveis entre grupos populacionais, definidas, social, econômica ou geograficamente”. Starfield diferencia a iniquidade da desigualdade, geralmente utilizada para descrever diferenças entre indivíduos, que não necessariamente são remediáveis.
A iniquidade pode ser horizontal ou vertical. A iniquidade horizontal existe quando pessoas com as mesmas necessidades não tem acesso aos mesmos recursos. A iniquidade vertical existe quando pessoas com mais necessidades não recebem mais recursos. Na utilização dos serviços de atenção primária, a maioria dos países industrializados alcançou a equidade tanto horizontal quanto vertical. No entanto isso não acontece nos serviços especializados, onde, mesmo se a equidade horizontal foi atingida a equidade vertical ainda não: “as populações socialmente desfavorecidas tem menos acesso aos serviços especializados do que as suas necessidades requerem”.
Os países não contam com estatísticas sobre iniquidades, mas os indicadores de saúde utilizados para descrever aspectos da saúde da população e seu impacto nos serviços são uteis também para avaliar a equidade em saúde. Para produzi-los só se precisa estratificar a população em indicadores, sociais, econômicos ou geográficos, e determinar se existem diferenças nas taxas do indicador ao longo desta estratificação.
Starfield assinala que os serviços de saúde ocidentais baseiam-se no paradigma da doença. A doença constitui o elemento básico e central das patologias. Ela é uma “anormalidade” nos órgãos do corpo; assim, cada anormalidade vai se acumulando até constituir a doença. A medicina então será praticada necessitando conhecimentos e habilidades especiais que obedeçam aos “protocolos” de tratamento existentes para cada doença. Existem assim, os especialistas em diferentes grupos de órgãos (cardiologistas, pneumologistas, urologistas, etc.), os quais quase nunca estão preparados para lidar com interações de diferentes tipos de doenças.
A Professora Starfield mostra com clareza o modo em que essa medicina baseada em conjuntos de órgãos não consegue dar conta; aliás, ela faz parte de um esquema “outdated” (fora de época) que não reconhece a ligação existente entre uma doença e a pessoa que a padece. O, dito com as palavras da autora, “a medicina atual não tem lugar para reconhecer que as doenças não são entidades biológicas distinguíveis, que existem isoladamente e afastadas da pessoa”.
A maioria das doenças atuais são causadas por multi-morbidez (várias e diferentes doenças), isso significa que a sua abordagem requer de algo mais do que a especialização num conjunto de órgãos, deve ter um enfoque na pessoa como um todo. Apesar disso e por incrível que pareça, a informação dos problemas de saúde é coletada doença por doença. Desse modo, ocultam-se as necessidades das pessoas de diferentes grupos populacionais, alguns deles mais vulneráveis e com uma tendência maior a sofrer diferentes tipos de doenças e suas combinações.
Para Starfield a Atenção Primária consegue essa abordagem abrangente necessária na atualidade, graças a sua preocupação pela pessoa e pela população. Ela consegue também enfrentar melhor a multi-morbilidade que caracteriza as doenças contemporâneas ao longo do tempo. Essa tem sido a sua grande contribuição nas sociedades modernas. O problema aparece quando uma pessoa é encaminhada do nível da Atenção Primaria a um serviço especializado. É ali que o próprio sistema de saúde gera iniquidade. Por quê? Porque em geral as pessoas não têm uma doença isolada delas próprias. Elas têm várias e diferentes doenças que se podem combinar de formas diversas segundo a bagagem genética e os contextos nos quais elas moram (dentre outros aspectos). As pessoas de populações desfavorecidas têm mais doenças (combinações de morbilidades) o que faz com que consultem mais vezes no serviço de APS. Essas consultas aumentarão os encaminhamentos a serviços especializados aumentando assim, o risco de uma coordenação fraca, de efeitos colaterais ruins, e do aumento desnecesario de custos. Para Starfield, o que faz com que algumas pessoas ou populações sejam mais custosas não é o fato que elas tenham mais doenças crônicas, mas o fato de ter mais tipos de morbilidade.
Fica clara então a necessidade de ter um enfoque nas pessoas, na morbilidade das pessoas, e não na doença. A Atenção Primaria e os professionais da área são os mais qualificados para levar essa tarefa adiante.
E no Brasil? As idéias e propostas de Barbara Starfield podem alimentar mais ainda a discussão sobre a reorientação do sistema de saúde no país. Nesse processo se poderiam produzir indicadores que permitam recolher dados sobre as iniquidades entre grupos de população, não somente na atenção básica, mas também no acesso aos serviços especializados. Com essa informação se poderiam elaborar protocolos apropriados com foco nas pessoas e não na doença, calcular a carga de morbilidade e identificar as intervenções pertinentes a partir dessa informação. Para finalizar com as palavras da Professora Starfield “É hora que os médicos da Atenção Primária tomem a liderança do cuidado médico no sentido em que se necessita: cuidar dos pacientes e das populações, e não das doenças. Fazer isso não é só correto biologicamente, mas é, mais efetivo, eficiente, seguro e equitativo.”
A Doutora e Professora Barbara Starfield morreu no dia 10 de Junho passado, pouco depois da publicação deste editorial, aparentemente como decorrência de um problema coronário. Pediatra de formação, pesquisadora de serviços de saúde, e professora por talento natural, a Dra. Starfield trabalhou na Universidade Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health e na Faculdade de Medicina, bem como diretora do Primary Care Policy Center. Passou mais de 50 anos na Universidade Johns Hopkin’s. Foi uma lutadora incansável das idéias e propostas contidas na medicina de família e dos cuidados de saúde primários. Segundo o Presidente da Organização Mundial de Médicos de Família (WONCA), Dr. Richard Roberts: “Ela viu os médicos de família como a melhor esperança para a saúde. Muitas vezes, ela desafiou a nossa visão de que a medicina familiar deve olhar como, e empurrou-nos a ver mais longe e mais claro. Bárbara tinha um entusiasmo surpreendente para a vida, viajando constantemente ao redor do globo para partilhar idéias, cultivar jovens profissionais, e empurre os líderes a fazer melhor (…)Ela será lembrada por sua paixão pela justiça social, a inteligência incisiva, e uma energia incrível. Grandes pessoas têm uma vitalidade extraordinária, o que faz parecer imortal e embala-nos a pensar que teremos para sempre”. As idéias e propostas de Barbara Starfield continuam nos acompanhando no trabalho do dia a dia e a ela prestamos nossa homenagem neste portal que procura a superação das iniquidades.
Referência Bibliográfica
Starfield B. The hidden inequity in health care [editorial]. Int J Equity Health. 2011 Apr 20;10:15.
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