O tema aborto é um assunto que envolve valores morais e religiosos, está relacionado ao sistema público de saúde e ao desenvolvimento de políticas sociais. É controverso nas diferentes esferas da sociedade, extremamente passional e delicado, além de polêmico em muitos países. Segundo o relatório Morte e Negação: Abortamento Inseguro e Pobreza, ocorrem aproximadamente 211 milhões de gravidezes anuais em todo o mundo; 87 milhões de mulheres engravidam de maneira não intencional e, desse total, 31 milhões resultam em abortamentos espontâneos ou em natimortos; 46 milhões de gravidezes terminam em abortamento induzido, sendo que 19 milhões são feitos de forma insegura, implicando em 70 mil mortes maternas ao ano. Apesar de não serem números absolutos, devido a reconhecida subnotificação, o documento sugere que o aborto inseguro é responsável por 9,5% das mortes maternas diretamente relacionadas à gravidez no Brasil (International Planned Parenthood Federation, 2006).
De acordo com a International Planned Parenthood Federation, a média brasileira em 2006 foi de 2,07 abortos induzidos por grupo de 100 mulheres, representando a 4ª causa de morte materna, superado apenas pela hipertensão arterial, hemorragia e infecção. O problema é mais grave na Região Nordeste, onde a taxa é de 2,73, maior que a média nacional. A Região Sul foi a que apresentou a menor taxa, de 1,28 por 100 mulheres. O relatório aponta o Nordeste como uma das regiões de menor poder econômico, onde as mulheres têm menos acesso aos serviços de saúde e que concentra as maiores taxas de analfabetismo, de 18%. Para Monteiro, Adesse e Levin (2008), a menor escolaridade é um fator de risco para a ocorrência de aborto, pois quando mulheres analfabetas (11,5/100.000) foram comparadas com mulheres que tinham 12 anos ou mais de estudo (2,1/100.000) o Risco Relativo foi de 5,5.
“A ilegalidade do aborto não coíbe a prática e perpetua as iniquidades socioeconômicas em que é realizado. Há um contexto que impõe às mulheres oportunidades desiguais de evitar uma gravidez ou de escolher seu desfecho”, afirmam Pilecco e colaboradores, em seu estudo sobre aborto e coerção sexual publicado no periódico Cadernos de Saúde Pública. Os autores enfatizam que, em geral, mulheres com melhores condições financeiras têm maior escolaridade, o que na teoria, possibilita o maior acesso a informações e recursos de prevenção, mas sem efeito protetor para o aborto. Mário Monteiro e colaboradores concordam com esta afirmação e sugerem que mulheres pertencentes aos segmentos sociais mais elevados e, geralmente, moradoras dos grandes centros urbanos, têm acesso aos métodos e clínicas de abortamento ilegais com maior higiene e cuidado. Já as mulheres mais carentes – a grande maioria da população feminina brasileira – recorrem aos métodos inseguros, com pouca precaução, que resulta em um alto risco (Monteiro et al., 2008).
Pilecco, Knauth e Vigo discutem no artigo sobre aborto e coerção sexual a questão da vulnerabilidade entre mulheres jovens, moradoras do Rio de Janeiro, Porto Alegre e Salvador, e apontam para determinantes como a origem social, configurações familiares e de conjugalidade, redes de sociabilidade, projetos de maternidade, percurso escolar e inserção no mercado de trabalho, como fatores que influenciam na decisão das jovens quanto à manutenção ou à interrupção da gravidez. Embora tenham contrastado pouco as três cidades quanto as suas características contextuais e aquelas relacionadas ao aborto, outros estudos já mostraram que comparadas às mulheres do Sul do Brasil, aquelas que vivem no Nordeste e Centro-Oeste têm o dobro de risco de sequelas e mortalidade em consequência do aborto clandestino. Além disso, mulheres pretas e pardas têm um risco três vezes maior de mortalidade em consequência de abortamento inseguro em comparação com as mulheres brancas. Esses achados evidenciam mais do que diferenças socioeconômicas, culturais e regionais relacionadas a prática do aborto inseguro, mas iniquidades sociais inaceitáveis, conforme afirmam Monteiro e colaboradores.
“As mulheres pretas possuem piores condições de vida, de acesso aos serviços de saúde, como também possuem pior qualidade de atenção nos períodos gravídico e puerperal”, afirmam Martins (2001) e Leal e colaboradores (2005). Essa desvantagem se estende também no que diz respeito ao aborto, pois as brancas, que são jovens mais privilegiadas economicamente, além de terem maior acesso à contracepção, podem optar por um aborto mais seguro, ainda que de forma ilegal. Similarmente ocorre em termos de sexualidade e reprodução, a negociação entre gêneros denota desigualdade, pois a expressão de desejo e interação são influenciadas pelo contexto sociocultural, onde a mulher é mais vulnerável em relação ao homem na tomada de decisão em relação ao próprio corpo.
“Quando uma jovem se depara com uma gravidez não prevista, o aborto aparece como alternativa imediata para a resolução do problema”, afirmam Pilecco e demais autores. Com base nos dados provenientes do GRAVAD (Gravidez na Adolescência: Estudo Multicêntrico sobre Jovens, Sexualidade e Reprodução no Brasil), os autores afirmam que o aborto é um elemento que se conjuga com a coerção sexual. Nesse estudo, a coerção sexual foi entendida como um processo de restrição da liberdade sexual individual, mediante constrangimentos como pressão verbal, social, chantagens e uso de violência física, não como um evento isolado, e foi operacionalizada através da pergunta “Alguém tentou forçar você a ter relações sexuais contra a sua vontade?”. Os dados da pesquisa mostraram que a prevalência de coerção sexual entre mulheres jovens que tiveram ao menos uma gravidez (22,8%) foi semelhante a encontrada em usuárias de atenção primária na rede pública de São Paulo (24,2%), e menor nas jovens que relataram não ter tido nenhuma gravidez (16,5%).
Embora haja um certo consenso de que quanto mais escolaridade, mais informação, menos gravidez indesejada e menos aborto, Pilleco e colaboradores encontraram uma forte associação entre a ocorrência de aborto na primeira gravidez e a elevada escolaridade e renda familiar. Os autores ponderam que mulheres com trajetórias escolares e profissionais parecem perceber a gravidez como um evento que pode interromper ou retardar projetos, levando à opção pelo aborto. Além disso, outra possível explicação seria que a mulher com maior renda tem mais acesso a serviços de aborto seguro, o que pode ao menos em parte explicar a associação encontrada. Entretanto, os autores entendem que essa associação inversa não pode ser vista de maneira tão simplista a partir de determinantes sociais individuais, como escolaridade e status socio-econômico. Apontam para a existência de determinantes socioculturais que se interpõem entre a informação e o comportamento dessas jovens mulheres brasileiras, e que têm um peso muito grande na decisão do aborto. Sugerem a relação com os pais, principalmente com a mãe, a fonte das primeiras informações sexuais, e tipo de relacionamento afetivo-sexual com parceiro(s), como covariáveis nessa associação.
O aborto não é um episódio isolado. A mulher que aborta está inserida em um contexto onde permeiam desigualdades sociais, que interferem em todo o processo de gravidez, desde o acesso à contracepção até a tomada de decisão em relação à interrupção da gestação indesejada. Embora o maior acesso à informação atue na prevenção da gravidez, não interfere na ocorrência de aborto. Por isso, é fundamental o cumprimento e a continuidade de políticas públicas que reconheçam os direitos humanos reprodutivos das mulheres, programas que incluam os homens nessas políticas, serviços e ações de educação sexual e de atenção à anticoncepção, que além de respeitarem os aspectos sociopolíticos, culturais e econômicos, levem em consideração o grau de liberdade de pensamento e expressão das mulheres.
O Ministério da Saúde vem atuando, de maneira intra e intersetorial, no âmbito do Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal e, em especial, de forma articulada com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), nos Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres. Porém, salientamos que as estratégias preventivas devem considerar os macro determinantes sociais em saúde, sedimentados por indicadores epidemiológicos consistentes e confiáveis, que deverão ser utilizados por gestores e profissionais de saúde na intenção de dispensarem às mulheres técnicas mais qualificadas, humanizadas e livres de julgamentos morais nos casos de abortamento. Acreditamos que a criação de um ambiente favorável de atenção à mulher é a base de uma saúde pública de fato universal, integral e equânime, que reduz as iniquidades sociais e previne que a mulher opte pelo último recurso disponível: o aborto ou sua reincidência.
Referências Bibliográficas
Pilecco FB, Knauth DR, Vigo A. Aborto e coerção sexual: o contexto de vulnerabilidade entre mulheres jovens. Cad Saúde Pública. 2011 Mar;27(3):427-39.
International Planned Parenthood Federation. Morte e Negação: Abortamento Inseguro e Pobreza. Chicago; 2006.
Monteiro MFG, Adesse L, Levin J. Panorama do aborto no Brasil: grave problema de saúde pública e de justiça social. RADIS. 2008;66:10-5.
Martins AL. Mortalidade Materna: maior Risco para Mulheres Negras no Brasil. Jornal da Rede Saude. 2011;23:63-8.
Leal MC, Gama SGN, Cunha CB. Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001. Rev. Saúde Publica. 2005 Feb;39(1):100-7.
Diniz D, Medeiros M. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. Ciên Saúde Colet. 2010 Jun;15 Suppl 1:959-66.
Entrevista com:
Há muito tempo não leio um artigo tão bem escrito, esclarecedor e informativo,neste tema :aborto.Que é rejeitado pela sociedade, desrespeitando a mulher.
Não sou contra a descriminalização do aborto em função da triste realidade de mulheres carentes que têm consequências terríveis, chegando muitas vezes à morte, em função de abortos ilegais. Porém, confesso que tenho certa dificuldade em ver o aborto como “autonomia reprodutiva” da mulher. Hoje, com tantos métodos anticoncepcionais disponíveis, acredito que a autonomia estaria em uma educação sexual que empodera mulheres e meninas a buscarem atendimento médico e informação e, sobretudo, a exigir de seus parceiros que sejam precavidos, não só com a gravidez, mas com doenças sexualmente transmissíveis.
Talvez isso possa ser utópico em uma sociedade tão desigual quanto a nossa, mas na minha perspectiva essa seria a verdadeira autonomia reprodutiva a ser alcançada. A legalização do aborto seria uma saída, de certa forma até mais fácil, porém, ao meu ver menos eficaz que reconhece o fracasso e desigualdade da sociedade, visto que são as mulheres pobres aquelas que mais sofrem em função justamente de suas diversas formas de carências: pouco acesso a educação de qualidade, o que implica em educação sexual também, e pouco acesso a métodos contraceptivos que evitem a gravidez e, posteriormente acabam recorrendo a abortos ilegais.
Não tenho uma perspectiva religiosa, mas acredito que o aborto, legalizado ou não, seja uma medida extrema e que não é a grande solução para essa questão, muito menos, como você frisou no texto, em uma questão de deficiência.