Crack e outras drogas: o sistema de saúde está pronto para lidar com essa epidemia?

Imagem: Portal Brasil

O Nordeste concentra 800 mil usuários de crack, cocaína e outras drogas derivadas da mesma substância. O número equivale a 27% dos consumidores da droga no Brasil e coloca a região como a segunda maior em número de usuários do País, ficando atrás apenas do Sudeste, onde o índice chega a 46%. Em 2012, 832 mil pessoas afirmaram ter usado a substância no Nordeste. Os dados são do 2º Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD), realizado pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), estudo que revelou que o Brasil concentra 20% do consumo mundial de cocaína e que 1 milhão de pessoas são dependentes da substância no país, sendo 38% pela droga fumada.

Seguindo um fluxo de mudança de cenários e deixando de ser um problema apenas das camadas mais pobres da população, o crack chegou às classes média e alta e tem cada vez mais espaço na mídia e nas discussões dentro da sociedade, afirmando-se como um problema não só de saúde pública, mas também social. A falta de informações sobre o tema, o preconceito e o despreparo do poder público no enfrentamento à dependência da droga ampliam seu poder de destruição e os danos causados por seu consumo.

Para o psiquiatra e coordenador do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas da Universidade Federal da Bahia (Cetad/UFBA), Antônio Nery Filho, a droga é um grande objeto de interesse da mídia, que transformou seu consumo em fenômeno social. “O curioso é que a mega difusão do consumo de crack leva ao aumento do consumo (efeito propaganda), pela população geral, o que por sua vez justifica a exposição, num círculo de expansão contínuo. Contudo, muitos trabalhos mostram que o uso de crack é mais prevalente nas populações excluídas, em extremo abando nas ruas, formando guetos batizados como cracolândias (cidades do crack), largamente reproduzidos por todos”, defende.

Para traçar e compreender o perfil dos usuários e estimar o número de consumidores da droga no país, a Fundação Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro e Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (SENAD) estão desenvolvendo, desde 2011, uma pesquisa nas 26 capitais, em nove regiões metropolitanas e no Distrito Federal. No Recife (PE), a pesquisa está sendo conduzida pela Fiocruz Pernambuco (Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães). “A ideia é não só ter uma estimativa do número de usuários, mas também conhecer esse perfil, tanto em relação a problemas de saúde, seja saúde mental, bucal ou doenças infecciosas, como também o perfil em relação à questão da violência e da vulnerabilidade social como um todo. Estamos buscando dados sobre violência e também a respeito do acesso a serviços públicos, da saúde e também da assistência social”, conta Naíde Teodósio, pesquisadora da Fiocruz PE e uma das coordenadoras do estudo na capital pernambucana. Além de ser um estudo sociocomportamental, o trabalho também está realizando um inquérito sorológico para revelar a prevalência de HIV, Hepatite C e tuberculose entre os consumidores. “Acreditamos que problemática do crack envolve não apenas as demandas de saúde, mas também toda a vulnerabilidade em que está situado o dependente”, explica.

A diminuição dos impactos danosos do consumo do crack à saúde e à realidade social de seus dependentes é um grande desafio que envolve todas as vertentes do contexto em que se encontra este usuário.  “Eu acredito que a questão do crack deve ser trabalhada com a relação do sujeito com a droga. É preciso construir com aquele sujeito um projeto de vida. Para isso ele precisa ter alguma perspectiva de trabalho, de família e de lazer. Além de cuidar da dependência, que exige a questão do apoio e alguns medicamentos para controle da dependência, trabalhar todo um suporte e um apoio, o dependente precisa de alfabetização, de um trabalho, precisa alugar uma casa, reestabelecer o vínculo com sua família, com os filhos, com os pais”, explica Naíde Teodósio. Para ela, a saúde pode ser um primeiro contato, junto com assistência social, que participa do enfrentamento, mas, sozinha, ela não vai resolver enquanto não for dada uma perspectiva à população dependente. Ela acredita no papel importante da polícia neste processo, na perspectiva da segurança pública, tanto no que diz respeito ao cuidado com os usuários, quanto no controle do tráfico de drogas.

É o que também acredita o gestor do Departamento de Repressão ao Narcotráfico da Polícia Civil de Pernambuco (DENARC-PC-PE), delegado Renato Rocha, que defende que a polícia é um dos atores envolvidos no processo de diminuição dos impactos danosos do uso de drogas, mas que outros setores precisam ser inseridos. “Claro que o uso de drogas não é só caso de Polícia. Este problema também perpassa por questões sociais e de saúde pública, demandando uma vasta atuação de serviços públicos, razão pela qual, muitas vezes, a participação de outros órgãos e instituições voltadas ao problema se faz necessária para que a redução dos danos causados pelo uso de drogas seja alcançada”, explica, defendendo a importância do envolvimento de diversos sujeitos.

Dentro da perspectiva da saúde pública, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem um grande valor no cuidado e tratamento da dependência química, que tem estado muito agregado à iniciativa privada e, muitas vezes, religiosa. Para atender às necessidades impostas pela situação da droga no Nordeste, e no Brasil de maneira geral, o SUS deve se estruturar para criar condições de atender ao problema de forma precisa.  “O sistema público de atenção à saúde no Brasil, particularmente o SUS – em que pese seu enorme valor – não está preparado tecnicamente, nem gerencialmente, para atender aos usuários de substâncias psicoativas legais e menos ainda as ilegais. Não existem leitos disponíveis em hospitais gerais para estes pacientes (provavelmente pelo enorme preconceito que ainda envolve os portadores de transtornos mentais , incluindo-se os usuários de psicoativos). Além disso, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e CAPS ad (para álcool e outras drogas), carecem de maior e melhor atenção pelos poderes municipais”, acredita Antônio Nery Filho. Ele destaca, ainda, que as comunidades terapêuticas que surgem para preencher o vácuo deixado pelo poder público, – boa parte com caráter religioso – atuam, em geral, sem a compreensão necessária dos aspectos socioculturais e medico-psicológicos nos quais está envolvido o consumo das substâncias psicoativas.

“Creio que não se deve separar as drogas de outros agravos à saúde: deve-se criar programas consistentes que alcancem as crianças e adultos na perspectiva de valorizar e proteger a vida, por exemplo, quanto à alimentação, ao esporte, ao trânsito, desde o início escolar até a entrada nas universidades. Por outro lado, creio ser indispensável tornar a mídia mais responsável no trato desta questão, afastando-se dos aspectos sensacionalistas, geralmente associados à violência”, conclui Nery.

O uso problemático do crack, assim como de todas as drogas – lícitas e ilícitas – sugere um problema que é muito maior do que o estado de saúde do dependente. A dependência, em suas diversas formas de apresentação, é o reflexo de uma doença que vai além da relação do usuário com a substância, mas, que agrega também todo o contexto no qual está inserido aquele indivíduo: nível de educação e de informação, moradia, trabalho e todo o contexto social no qual ele vive. Diante disso, e como tantas outras demandas de saúde e sociais, o enfrentamento a este problema exige uma compreensão ampla, estratégias intersetoriais que contem com o envolvimento de múltiplos níveis de gestão e de atuação.

Proporção de usuários em números absolutos – 2º Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD) (Fonte: UNIFESP)

Referências Bibliográficas

Laranjeira R, Madruga CS, Pinsky I, Caetano R, Ribeiro M, Mitsuhiro S. II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas: o uso de cocaína e crack no Brasil. São Paulo: INPAD; 2013 [acesso em 31 maio 2013]. Disponível em: http://inpad.org.br/wp-content/uploads/2013/03/LENAD_PressRelease_Coca.pdf

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