Desigualdade sem fim

Ao mesmo tempo em que celebra suas ricas diferenças culturais e sociais, o Brasil carrega traços de uma desigualdade regional profunda. O brasileiro da região Centro-sul vive uma realidade socioeconômica muito distinta de quem vive, por exemplo, às margens do Rio São Francisco ou na Amazônia. As diferenças no acesso a bens públicos, infraestrutura e investimentos são alguns dos fatores que evidenciam a necessidade de uma estratégia de políticas de longo prazo. Para avivar essa discussão, Região e Redes entrevistou o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada Aristides Monteiro Neto, que organizou o livro Desenvolvimento Regional no Brasil: Políticas, estratégias e perspectivas, lançado em fevereiro de 2017. As respostas foram enviadas por e-mail.

Região e Redes: O livro “Desenvolvimento Regional no Brasil: políticas, estratégias e perspectivas” permitiu levantar inúmeras questões sobre o desenvolvimento regional no Brasil. O que você destaca do debate fomentado pelos autores?

Aristides Monteiro Neto: O livro procurou realizar, para o período 2000-2014, um balanço de experiências, soluções e novos problemas afetos à dimensão regional do desenvolvimento brasileiro. Esta data tem a ver com a disponibilidade de dados e informações estatísticas (por exemplo, os PIB estaduais de 2014 somente foram estimados em fins de 2016) e com o fim de um ciclo de governo.

Diria que há três pontos norteadores que se sobressaem nas discussões do livro: primeiro, a avaliação da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) que aponta o seu êxito na disponibilização crescente de recursos dos Fundos Constitucionais (FCs) de desenvolvimento (FCO, FNO e FNE) para viabilizar a dinâmica do investimento. Os recursos conjuntos dos FCO+FNO+FNE saíram do patamar de R$ 3 bilhões correntes em 2003 para R$ 23,5 bilhões correntes em 2013. Contudo, as aplicações destes recursos são fortemente comandadas pela demanda que emana do empresariado, não tendo a própria política um papel mais ativo na orientação estratégica de setores mais relevantes a ser dinamizado; segundo, o relativo insucesso do apoio governamental à renovação e modernização industrial visto no agregado do país, pois o processo de desindustrialização não foi adequadamente contido. A estrutura produtiva nacional (e as regionais) permaneceu presa a setores de baixa e média intensidade de capital, com algumas exceções é claro; e terceiro, a percepção de que estratégias de desenvolvimento regional devem contar não apenas com ações e recursos de uma política regional explícita, como a PNDR, mas com um amplo leque de ações e recursos de várias políticas nacionais (setoriais e sociais) com impacto territorial predefinido. No período recente, constatou-se, ao lado dos recursos dos FC, a importância para a ampliação da dinâmica do investimento regional o papel dos desembolsos do BNDES – no caso da região Nordeste, o FNE desembolsou entre 2000-2012, em Reais constantes de 2012, o acumulado de R$ 89,9 bilhões; por sua vez o BNDES, neste mesmo período desembolsou R$ 152,1 bilhões. Adicionalmente, programas sociais como o Bolsa Família (PBF) e os Benefícios de Prestação Continuada (BPC) transferiram o montante acumulado de R$ 127,5 bilhões na economia do Nordeste (2000 a 2012), fortalecendo dinâmicas econômicas municipais e aumentando a capacidade de arrecadação de impostos regionais.

RR: Que modelo de Estado é necessário para dar conta de mobilizar a sociedade, recursos e outras forças capazes de promover um processo de desenvolvimento regional que diminua as desigualdades históricas?

AMN: Sem dúvida, um Estado que se preocupa com o desenvolvimento regional é aquele capaz de mobilizar simultâneas estratégias e recursos nas regiões. Deve, contudo, ter muito claro que seu objetivo é promover a mudança estrutural e sustentada numa dada região. A dimensão estrutural deste esforço tem a ver com gerar mudança na estrutura produtiva em direção à ampliação de setores de intensidade de valor agregado superiores. Portanto, diminuir relativamente a importância de ramos/setores produtivos de baixa intensidade de valor pelo sucessivo acréscimo de ramos/setores de maior valor agregado. A dimensão sustentada, por sua vez, tem a ver com ampliação do bem-estar pela melhoria da qualidade de vida (educação, saúde) e do meio ambiente para os cidadãos. Estas dimensões tem que ser acionadas simultaneamente, pois numa estratégia de expansão do valor agregado setorial na região, por exemplo, será requerida a ampliação da formação de capital humano para o salto de produtividade.

RR: Qual ente federado é responsável por puxar um processo dessa magnitude? Quem tem a força para realizar enfrentamentos e transformações tão profundas?

AMN: No Brasil é o governo federal que detém os recursos econômicos, institucionais e políticos necessários para levar adiante estratégias de desenvolvimento regional. Sua participação na arrecadação tributária está em torno de 65% do total. Sua capacidade instalada de formulação e desenho de políticas também é muito superior a dos estados e municípios. Contudo, para ter êxito qualquer estratégia precisa contar com a necessária cooperação com os entes subnacionais. Daí ser um esforço sempre necessário trabalhar canais e esferas de coordenação e articulação de políticas em nosso arranjo federativo.

RR: Quando o tema é desenvolvimento, várias entendimentos são possíveis. O livro que que o senhor organizou trata o desenvolvimento sob quais perspectivas? Estão contempladas nessa discussão as questões sociais e políticas relacionadas ao tema?

AMN: Sim, foi preocupação da organização do livro apresentar o desenvolvimento em perspectiva ampla. Neste sentido, procurou-se mostrar desde recortes nacionais para políticas e territórios como recortes estaduais e sub-regionais. Veja que no caso da Amazônia, por exemplo, tanto há uma discussão sobre a aplicação e impactos da PNDR no conjunto da região quanto o estudo do Sudeste do Pará na região de Carajás, que recebe impacto da atividade da mineradora Vale, região que já tem um PIB equivalente a 0,9% do PIB nacional, equivalente ao de Alagoas. E há, ainda, o estudo sobre o impacto das receitas de royalties do gás de petróleo nas cidades ao longo da calha do rio Solimões no estado do Amazonas.

Ademais, os estudos que tratam de novas questões, como as das instituições de ensino superior e dos sistemas regionais de inovação, são também relevantes para o desenho de novas políticas regionais. São ideias que trazem, sem dúvida, ricas contribuições ao debate. Provocam-nos a repensar políticas regionais não apenas como instrumentos para redução ou mitigação de disparidades, mas como instrumentos de fortalecimento e exploração de potencialidades e oportunidades em territórios escolhidos.

RR: O pacto federativo brasileiro é condição para o desenvolvimento regional. Por outro lado, o debate acerca do federalismo brasileiro está interditado. O que pode ser feito para trazer luz sobre a questão do desenvolvimento equitativo entre regiões?

AMN: Não creio que o debate sobre o federalismo está interditado. Na verdade, acho que o debate tal como ele se faz, expressa os interesses em jogo. No Brasil, nós temos uma grande dificuldade em promover mudanças fortes e estruturais nas economias regionais. Os recursos que alimentam e estimulam a implantação de empresas em regiões como Norte e Nordeste são fortemente subsidiados. Isto significa que estamos financiando crédito barato para os capitalistas das regiões desenvolvidas se instalarem naquelas regiões. Estes empresários tornam-se desse modo pouco incentivados a aumentar competitividade, pouco propensos a aumentar sua capacidade exportadora. Não é à toa que a indústria que se instala no Norte e Nordeste, na média, tem nível de produtividade muito baixo, como estudos têm revelado. Num jogo mais geral do capitalismo brasileiro, estas regiões tornam-se presas dos interesses das regiões mais ricas (de seu empresariado).

Um grande instrumento da política regional brasileira são os incentivos fiscais da Zona Franca de Manaus, que são, na verdade, um instrumento de ganhos para as empresas do Sudeste. Quando se olha de fora parece que – é discurso muito recorrente – os paulistas “sustentam” o Brasil. O que não é verdade, o país por vários mecanismos vem sistematicamente financiando, a custa de incentivos e crédito subsidiado, parte da ineficiência das empresas paulistas, mas não apenas deste estado.

Dito isto, pode-se ainda perguntar: devemos ainda ter política regional? Sim, devemos pois as economias das regiões precisam ser fortalecidas, mas podemos, depois de décadas de incentivos fiscais, mudar a política para abarcar um leque mais variado e com propósitos diferentes de instrumentos. Por exemplo, incentivos para a inovação tecnológica e para ampliação da capacidade exportadora. Investimentos na formação de mão-de-obra qualificada nas regiões mais atrasadas etc.

RR: O livro mostra que as política públicas são determinantes para conduzir e orientar um processo de desenvolvimento regional. Entretanto, muitas das políticas atuais se sobrepõem e até competem entre si. Pensar regionalmente exige uma visão mais integrada e ampla.

AMN: A competição entre políticas é fenômeno sempre recorrente no Brasil. Há uma competição muito grande pela apropriação de recursos públicos. Contudo, deve ser ressaltado que temos tido um caminho de construção de acertos. A construção de sistemas universais, que vem desde a constituição de 1988, para políticas sociais na educação (FUNDEB) e na saúde (SUS) são grandes exemplos de pactuação interfederativa de políticas. Os resultados advindos deste esforço estão à vista na reconhecida melhoria dos indicadores sociais do país nas últimas duas décadas (na ampliação do índice de desenvolvimento humano-IDH e na redução do índice de vulnerabilidade social-IVS).

Precisamos nos espelhar mais nestas experiências para União, estados e municípios, juntos, poderem realizar estratégias mais promissoras e sustentadas de desenvolvimento regional.

RR: O desenvolvimento regional é um tema que está imbricado com outros vários igualmente estruturais: reformas política, tributária, urbana, enfrentamento das desigualdades de modo geral. Qual a sua a opinião sobre esse cenário e perspectivas de solução?

AMN: Sempre foi assim. As questões estão todas inter-relacionadas, pois o desenvolvimento regional depende de soluções para seu financiamento, bem como para as decisões sobre escolhas de que regiões em cada momento serão alvo de políticas.

No Brasil, quando colocamos a questão regional em longa perspectiva, vemos que um dos feitos da política regional foi ter criado canais de recursos para as regiões de menor desenvolvimento. As regiões Norte e Nordeste, por exemplo, que estavam decadentes e ficando para trás até os anos 1950, foram beneficiadas com recursos de fundos constitucionais para promoverem mudanças e modernização de suas estruturas produtivas. Logo elas deixaram de ser apenas problemas e passaram a ser parte das soluções do desenvolvimento nacional.

Há muito ainda a ser feito? Sim, há. Em particular o nível médio de PIB por habitante no Nordeste é metade do nacional e precisa ser aumentado. Mas esta região cresceu muito desde 1960 quando a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) foi criada e sua economia diversificou-se muito. Enfim, quero dizer que os problemas para a política regional brasileira não são mais os mesmos dos anos 1950, eles mudaram de patamar.

RR: Temos estudado o planejamento e a gestão regional no SUS. Mas esse processo tem esbarrado em questões político-partidárias. É possível blindar as políticas e os processos inerentes a esse tema das disputas eleitorais de modo a se construir projetos de médio e longo prazo?

AMN: Neste livro não tratamos deste tema do SUS. Contudo, tanto para a política de saúde quanto para qualquer política crucial para o desenvolvimento nacional, a criação de consensos políticos é fundamental para a sua implementação.

RR: Dentro dessa discussão onde se encontram as pessoas? Como fomentar a participação social num debate que ainda é restrito aos círculos acadêmicos e intelectuais? Não falta povo nesse debate?

AMN: Este é, sem dúvida, assunto relevante da formulação e implementação de políticas públicas: a participação social. No Brasil tem-se avançado em várias experiências das políticas sociais onde os interesses das políticas são mais próximos da vida da população (saúde e educação).

A política regional é tradicionalmente assunto das elites econômicas no Brasil. Elas é que definem a utilização de recursos. Veja que o principal instrumento da PNDR, os fundos constitucionais regionais, corresponde a recursos de baixo custo financeiro para serem emprestados exclusivamente ao setor empresarial. Estes recursos não podem ser alocados para projetos públicos de infraestrutura de desenvolvimento. O que é uma pena pois estes recursos poderiam ter destinação mais diversa – sem deixar de apoiar o empresariado – como fomentar experiências de fortalecimento de arranjos produtivos regionais/locais que englobam não uma única empresa, mas um tecido produtivo a ser incentivado.

Sem dúvida, vários especialistas vêm-se colocando a favor de maior participação social nos destinos da política regional. Em 2011, o Ministério da Integração realizou seu primeiro ciclo de conferências estaduais e regionais para discutir, entre outras coisas, a ideia de participação federativa e social mais ampla. Pouca consequência efetiva ocorreu depois disso. É assunto a ser retomado.

 

Fonte: Monteiro Neto A. Desigualdade sem fim. [entrevista na internet]. Região e Redes; 2017 Maio 29. Entrevista concedida a Paulo Bellardi. [acesso em 09 ago 2017]. Disponível em: http://www.resbr.net.br/desigualdade-sem-fim/#.WYtQ3ITyuUk

 

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