Equidade horizontal na utilização de cuidados de saúde no Brasil

Acesso à serviços de saúde é reflexo das desigualdades/ Imagem: blog.saude.gov.br

Indicador do Observatório sobre este tema:
ind030301

 

Apesar das desigualdades sociais persistentes, a utilização de serviços de saúde no Brasil parece evoluir paulatinamente no sentido de uma maior equidade horizontal, onde as pessoas com as mesmas necessidades de saúde têm acesso semelhante aos serviços de saúde. No entanto, ainda é passível de críticas e reflexões.  Será que temos realmente ‘igual acesso para igual necessidade’? Será que o maior acesso se reverte em equidade na utilização dos serviços de saúde? Além disso, é importante questionar se uma maior equidade no acesso e utilização dos serviços de saúde se traduz em uma maior equidade nos resultados em saúde. Na prática, o que foi observado é que a gratuidade na utilização dos serviços do SUS valoriza a igualdade, mas nem tanto a equidade de acesso, pois ao oferecer serviços gratuitos para todos não leva em consideração que alguns teriam capacidade de pagar, e que com esses recursos poderiam melhorar a qualidade de acesso dos que não tem capacidade de pagar (Medici, 2011). O sistema público de saúde brasileiro avançou muito em termos de universalidade no atendimento, mas as desigualdades em saúde permanecem como um desafio que é reforçado por um gradiente social na utilização de serviços de saúde. A grande controvérsia reside no fato de que pessoas em desvantagem social são as que necessitam de maiores cuidados médicos, mas consomem menos serviços do que pessoas com melhor condição socioeconômica, a chamada lei do cuidado inverso. No Brasil, discute-se muito sobre igualdade, mas as divergências em nível da necessidade são quase ignoradas, resultando na presença de desigualdade nos cuidados de saúde.

Dados sobre quem usa o SUS já foram discutidos anteriormente em nosso Observatório (https://dssbr.ensp.fiocruz.br/quem-usa-o-sistema-unico-de-saude-2/), mas a questão da equidade não foi aprofundada. O Indicador de atenção ambulatorial (Ind 030301), baseado nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 1998/2003/2008), mostra que ao longo desses anos a proporção da população com 14 anos ou mais de idade que consultou o médico nos últimos 12 meses aumentou. No entanto, apesar da maior disponibilidade de serviços ambulatoriais, postos de saúde, centros especializados, hospitais públicos e agentes comunitários de saúde*, existem diferenças relacionadas à determinantes sociais, como a escolaridade e a renda, e geográficos, que determinam quem procura o serviço de saúde.

O Indicador 030301 mostra uma forte relação entre a escolaridade e a proporção de visitas ao médico (em todos os anos). Os indivíduos que têm maior escolaridade são os que mais visitam o médico. Há, inclusive, um salto significativo na proporção entre as categorias de menor escolaridade para as duas últimas categorias de maior escolaridade (15 ou mais e 11 a 14 anos), demonstrando um expressivo gradiente na utilização de serviços de saúde segundo o nível de escolaridade. Além disso, há diferenças relacionadas à renda, a PNAD de 2008 mostrou que 42% dos brasileiros de menor renda não realizaram nenhuma consulta nos 12 meses anteriores a pesquisa, ao contrário de 18% dos indivíduos de renda mais elevada (mais de cinco salários mínimos de renda domiciliar per capita) (Medici, 2011).

No que diz respeito às diferenças regionais, o indicador do Observatório mostra que em 2008 as regiões Sudeste e Sul foram as que apresentaram maior proporção de pessoas que consultou um médico (69,0 e 67,5%, respectivamente), ao contrário da região Norte, que apresentou a menor proporção entre as macrorregiões (59,7%), independentemente no nível de escolaridade. Isso nos diz que as pessoas residentes nas regiões Sul e Sudeste apresentam maiores chances de utilização de serviços de saúde do que os residentes de outras regiões no Brasil (Travassos et al., 2006), o que consequentemente gera desigualdades nos resultados em saúde da população entre os estados brasileiros.

Com o indicador do Observatório foi possível verificar também que na região Norte houve pouco crescimento longitudinal na proporção de consultas em todas as faixas de escolaridade, comparado às outras regiões, principalmente Sul e Sudeste. Além disso, transversalmente a região Norte apresentou um gradiente na utilização de serviços de saúde relacionado à escolaridade. No ano de 2008, a proporção de pessoas com maior escolaridade (15 anos ou mais) que consultaram o médico nos últimos 12 meses foi quase 30% maior do que a dos menos escolarizados (8 a 11 anos). Distoando significativamente da região Sudeste, onde essa diferença na proporção não chegou a 5% entre as mesmas categorias.

A equidade horizontal no acesso aos cuidados de saúde tem se revelado um tópico de referência no âmbito da economia da saúde. James Macinko, da New York University, e Maria Fernanda Lima-Costa, da Fiocruz de Belo Horizonte, estudaram as tendências da equidade horizontal na utilização de diferentes tipos de serviços de saúde utilizando os dados da PNAD de 1998, 2003 e 2008. Os resultados mostram que os principais contribuintes para as desigualdades pró-ricos em saúde no Brasil são fatores como renda, localização geográfica, e a presença de plano de saúde privado. A utilização dos serviços (especialmente entre os ricos) parece estar acima e além do que seria esperado, dada as suas necessidades de saúde. A superutilização dos cuidados de saúde pode ser indesejável por causa dos custos, de benefícios limitados e potenciais efeitos iatrogênicos de testes e procedimentos desnecessários. Isso gera uma diferença de padrões de utilização entre aqueles que usam o serviço público versus o setor privado de serviços de saúde, com a maior utilização de quase todos os serviços entre aqueles com um plano de saúde privado.

Macinko e Lima-Costa afirmam que desde o início do ano 2000 tem havido aumento na oferta de cuidados primários, serviços de diagnóstico e atendimento especializado, e isso pode ter resultado na maior utilização pelos pobres, compensado pela maior utilização por parte dos ricos entre esses diferentes tipos de serviços. Por outro lado, existem altas taxas de hospitalização entre os pobres, que pode representar a falta de acesso a alguns serviços de prevenção ou o uso de hospitais como um substituto para a atenção básica. Além disso, ressaltam que apesar do grande crescimento econômico e a implementação de políticas sociais no Brasil durante esse período, o financiamento da saúde ainda é uma questão que merece nossa atenção. Atualmente, a participação total do governo com os gastos em saúde é estimada em 45%, o que representa menos de 4% do PIB, um valor que é menor que o da maior parte dos outros países com sistemas de saúde universais.

É possível reconhecer o esforço do governo para melhorar o acesso aos cuidados, especialmente entre os mais pobres. Talvez por isso as desigualdades na utilização de cuidados de saúde no Brasil não sejam tão pronunciadas quanto se esperaria. No entanto, com base nos dados da PNAD, podemos ver que ainda persistem iniquidades sociais que precisam ser combatidas, que resistem à custa de desigualdades geográficas e sociais (de renda e escolaridade). A promoção da equidade no cuidado à saúde implica em confrontar a lei do cuidado inverso, melhorando cobertura, elegibilidade, acesso geográfico e cultural e distribuição equitativa de recursos. Essa distribuição deve levar em conta não apenas tamanho de população, estrutura de idade ou número de leitos (o que reforçaria as desigualdades geográficas), mas principalmente as iniquidades no estado de saúde (Dahlgren & Whitehead, 2007). Além disso, para alcançarmos um sistema de saúde equitativo é necessário o reconhecimento de áreas onde pode haver subutilização do serviço de saúde, associado a uma avaliação longitudinal do potencial de utilização de cuidados desnecessários. Políticas governamentais destinadas a aumentar o acesso, sobretudo à atenção primária, são fundamentais e podem ajudar a tornar a utilização de serviços de saúde no Brasil mais justa ao longo do tempo.

*Em 2010 o SUS disponibilizava 41.000 postos de saúde e centros de serviços ambulatoriais, 30.000 especializados, cerca de 2.000 hospitais públicos e 236.000 agentes comunitários de saúde (Macinko & Lima-Costa, 2012).

Referências Bibliográficas

Cambota JN. Desigualdades sociais na utilização de cuidados de saúde no Brasil e seus determinantes [tese de doutorado]. São Paulo: Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade; 2012 [acesso em 19 set 2012]. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/12/12140/tde-11062012-190139/

Dahlgren G, Whitehead M. European strategies for tackling social inequities in health: Levelling up Part 2. Copenhagen: World Health Organization Regional Office for Europe; 2007. (Studies on social and economic determinants of population health, No. 3).

Ind030301 – Proporção da população de 14 anos e mais que consultou médico nos últimos 12 meses, por ano, segundo
região e escolaridade [Internet]. Rio de Janeiro: Portal Determinantes Sociais da Saúde. Observatório sobre Iniquidades
em Saúde. CEPI-DSS/ENSP/FIOCRUZ; 2012 Jan 30 [acesso em 19 set 2012]. Disponível em:

Macinko J, Lima-Costa MF. Horizontal equity in health care utilization in Brazil, 1998-2008. Int J Equity Health [periódico na internet]. 2012 Jun 21 [acesso em 19 set 2012];11:33. Disponível em: http://www.equityhealthj.com/content/pdf/1475-9276-11-33.pdf

Medici A. Propostas para melhorar a cobertura, a eficiência e a qualidade no setor de saúde. In: Bacha EL, Schwartzman S. Brasil: a nova agenda social. Rio de Janeiro: LTC; 2011 [acesso em 19 set 2012]. p. 23-93. Disponível em: http://www.schwartzman.org.br/simon/agenda1.pdf 

Ruiz G. Quem usa o Sistema Único de Saúde? [Internet]. Rio de Janeiro: DSS Brasil; 2012 Abr 09 [acesso em 19 set 2012]. Disponível em: https://dssbr.ensp.fiocruz.br/?p=9534&preview=true

Travassos C, Oliveira EXG, Viacava F. Desigualdades geográficas e sociais no acesso aos serviços de saúde no Brasil: 1998 e 2003. Ciên Saúde Colet [periódico na internet]. 2006 [acesso em 19 set 2012];11(4): 975-86. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232006000400019&script=sci_arttexthttp://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232006000400019.

 

 

 

 

Entrevista com:

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*