Fatores psicossociais na desnutrição crônica infantil

Enquanto a associação entre desnutrição infantil e pobreza é amplamente reconhecida de longa data, a influência da pobreza no aparecimento dos transtornos mentais comuns tem sido objeto de estudo há menos tempo. A pobreza, ao mesmo tempo em que cria condições mais propícias para o estabelecimento da desnutrição, sobretudo o menor acesso à alimentação adequada e a maior susceptibilidade às doenças transmissíveis associadas às condições insalubres do ambiente, cria também as condições para o aparecimento de outros problemas, como por exemplo, o surgimento de sintomas mentais nos adultos responsáveis pela criança.

Transtornos mentais comuns (TMC) são quadros em que estão presentes ansiedade, depressão e sintomas de somatização, mas que não chegam a preencher os critérios para um transtorno mental (Piccinelli e cols – 1999). A associação entre os assim chamados transtornos mentais comuns e pobreza é tão frequente, que Patel e Kleinmann sugeriram que esses deveriam ser considerados um transtorno associado com a pobreza (Patel e Kleinman – 2003). Os TMC representam um problema de alta magnitude na população brasileira, sobretudo entre as mulheres. Costa e Ludermir (2005) encontraram uma prevalência de 44.2% em mulheres e 24,5% em homens da zona rural de Pernambuco. Araújo e cols. (2005) encontraram uma prevalência de TMC de 39.4% em mulheres de Feira de Santana, na Bahia.      Num estudo de coorte realizado por Anselmi e cols. (2008), observou-se prevalência de TMC em 32,8% das mulheres e 23,5% nos homens. Adicionalmente, verificaram que, entre as mulheres, ter sido pobre na infância e ter cor da pele preta ou parda associou-se de forma independente com maior prevalência de transtornos mentais comuns.

Um estudo de nosso grupo, realizado no semiárido alagoano, uma das áreas de maior vulnerabilidade social do país, mostrou uma prevalência de TMC maternos de 56.2% na área rural e 43.8% na área urbana (de Paffer e cols. – 2012).

O atendimento empreendido por uma equipe multiprofissional a crianças desnutridas em uma unidade avançada da Universidade situada em uma área pobre da periferia, suscitou a seguinte pergunta: por que as mães dessas crianças apresentavam dificuldade em entender e seguir as orientações relacionadas aos cuidados com seus filhos? A partir dessa observação surgiu a ideia de realizar uma pesquisa sobre o tema.

Em 1996, publicamos um estudo mostrando a associação entre a desnutrição infantil e os TMC maternos (Miranda e cols – 1996). A partir dos anos 2000, novos estudos foram publicados por outros autores até que, em 2011, foi realizada uma metanálise (Surkan e cols -2011) que concluiu pela existência da associação. Entre os 17 artigos selecionados conforme os critérios de inclusão estabelecidos no plano de metanálise, constavam estudos prospectivos que mostravam a direção da associação, indicando que os TMC maternos eram um fator de risco para a desnutrição infantil (Rahman e cols – 2004) (Patel e cols – 2003).

Para contribuir para a avaliação dos fatores que poderiam interagir nessa associação, nosso grupo realizou uma série de investigações que estudaram variáveis potencialmente importantes. Com relação às variáveis relacionadas à mãe, observou-se uma associação entre a desnutrição infantil (déficit estatural) e incapacidade materna decorrente de transtorno mental (Cavalcante Neto, 2011)(de Pafer e cols.,2011), assim como com a menor escolaridade da mãe e a falta de suporte social (Gusmão, 2012). Com relação às variáveis relacionadas ao pai, observou-se associação entre a desnutrição infantil e o comprometimento da saúde mental do pai (Gusmão, 2012).

Com relação a variáveis familiares, embora a taxa de violência intrafamiliar fosse alta tanto contra a mulher quanto contra a criança, não foi detectada associação com a desnutrição (da Silva, 2008). Além disso, observou-se associação entre a desnutrição infantil e o número elevado de residentes no domicílio e quando o atual companheiro da mãe não era o pai biológico da criança desnutrida (do Carmo, 2010). Ainda nas variáveis familiares, Amorim (2012) observou que, entre as crianças de 12 a 36 meses, a baixa qualidade do ambiente familiar como um todo e, especificamente, o menor envolvimento materno com a criança, estavam associados diretamente com a desnutrição. Já em crianças de 37 a 72 meses esta associação ocorria especificamente com a baixa estimulação do comportamento acadêmico, que se relaciona a preparação para a escola (Amorim, 2012).

Em relação às variáveis relacionadas ao ambiente, observou-se na zona rural do semiárido alagoano uma associação entre o prejuízo da saúde mental materna e ausência de companheiro, enquanto que na zona urbana foi observada uma associação entre o prejuízo da saúde mental materna e baixa escolaridade (de Paffer, 2009). Encontra-se em andamento um estudo sobre a saúde mental da criança desnutrida, buscando identificar variáveis relacionadas à criança.

Em estudo feito com populações quilombolas de Alagoas, detectou-se prevalência de 10,2% de desnutrição crônica em crianças de até 5 anos. Suas mães mostraram prevalência de TMC de 65,3%. Nessas comunidades quilombolas, as mães de crianças desnutridas, quando comparadas às mães daquelas sem diagnóstico de desnutrição, têm menor nível de escolaridade, menor estatura, maior número de filhos e as famílias têm menor renda per capita (Neiva, 2011).

Pelos resultados obtidos, pode-se verificar que algumas variáveis poderiam ser importantes tópicos a serem considerados no estabelecimento de prioridades na atenção dedicada a mães em situação de vulnerabilidade social. Por exemplo, a ausência do companheiro ou quando este companheiro não for o pai biológico da criança desnutrida. A falta de suporte social, além de também merecer ser considerada como objeto de diálogo terapêutico, deveria receber maior atenção no sentido de garantir atitudes mais concretas para o acesso ao referido suporte.

O planejamento de intervenções que considerassem esses fatores psicossociais maternos como risco para a desnutrição de seus filhos foi objeto de um estudo sobre a interação mãe-criança desnutrida (Miranda e cols. – 2000). Os resultados desse estudo evidenciaram que na comparação com mães sem TMC, mães com TMC apresentavam uma pior interação com seus filhos desnutridos.

Nosso primeiro trabalho de intervenção em Alagoas (Pereira, 2011) foi um estudo piloto do tipo quase experimental (formação dos grupos de forma não aleatória). Mães de crianças desnutridas foram avaliadas quanto à sua receptividade e assimilação de conteúdos no contexto de um processo educativo envolvendo discussão das características de uma interação mãe-criança satisfatória. Foi utilizada como material de ensino a versão brasileira do International Child Development Programme (ICDP – OMS) (WHO – 1997).

Na intervenção, que consistiu de cinco sessões de 90 minutos de duração com periodicidade semanal, o grupo experimental discutiu as oito regras para uma boa interação mãe-criança preconizadas pelo ICDP – OMS: demonstrar sentimentos positivos pela criança, seguir sua iniciativa, comunicar-se, elogiar, focar a atenção, dar significado a ação, expandir o conhecimento e regular o seu comportamento.

Nos 2 grupos, experimental (n = 25) e controle (n = 13), foram avaliados os fatores de risco identificados nos estudos prévios, o conhecimento, atitudes e práticas da interação mãe-criança (questionário CAP) e incapacidade associada à saúde mental avaliada segundo o “Self Report Questionaire” (SRQ) (WHO -1994). Na criança, foram avaliados o estado nutricional e o desenvolvimento neuropsicológico. Quanto à família, foram pesquisados fatores socioeconômicos e o ambiente familiar. Não foi incluída psicoterapia neste estudo em virtude da alta proporção de recusas das mães a esse tipo de intervenção. Na Tabela abaixo constam os resultados obtidos.

Tabela: Variação do escore do questionário de Conhecimentos, Atitudes e Práticas (CAP) antes e depois da intervenção empreendida no grupo experimental, segundo a saúde mental materna das duplas mãe-criança desnutrida assistidas no Centro de Recuperação e Educação Nutricional, Maceió, Alagoas.

 

Grupo Experimental

(n= 25)

 

Grupo Controle

(n = 13)

 

Antes

Depois

p

Antes

Depois

p

(Média±DP)

(Média±DP)

(Média±DP)

(Média±DP)

CAP (SRQ neg)*

28,5±10,3

39,4±15,9

0,009

31,3±8,9

33,1±15,8

0,736

CAP (SRQ pos)

28,7±9,8

40,2±14,8

0,02

21,7±7,2

31,5±13,5

0,06

SRQ: Self ReportQuestionnaire.
* Tiveram SRQ negativo (ausência de problemas mentais) 12 mães no GE e 7 no GC.

Embora não se tenha observado uma melhora nas atitudes e práticas das mães em relação aos seus filhos na análise dos aspectos de desenvolvimento infantil e ambiente familiar, observou-se que houve melhoria significante no escore do questionário CAP no GE logo após a intervenção, independentemente da presença de TMC. Parece que a intervenção proporcionou aumento no conhecimento das mães sobre como melhorar a interação com o seu filho. Contudo, esta diferença positiva no escore não se manteve na reavaliação após seis meses, assim como não resultou em melhoria do desenvolvimento das crianças.

Resultado contrastante tiveram Rahman e cols. (2009) em estudo experimental randomizado com grupos de gestantes realizado no Paquistão, também objetivando melhorar os conhecimentos e atitudes das mães em relação ao desenvolvimento infantil. Esses autores promoveram uma intervenção utilizando o LTP (Learning Through Play) (Bevc 2004). Após seis meses, obtiveram resultado positivo estatisticamente significante (RR = 4,3;IC 95 %: 3,7 a 14,9; p < 0,001), concluindo que mulheres do grupo de intervenção responderam melhor às questões dos conhecimentos maternos sobre o desenvolvimento infantil. Entre os motivos para os bons resultados, pode-se supor que estejam ligados ao fato de que a população alvo não era migrante recente como aquela que foi alvo da nossa intervenção. Além disso, a intervenção era realizada por mulheres da mesma comunidade através de visitas domiciliares, o que pode ter contribuído para uma maior interação e adesão por parte das mães incluídas na intervenção.

Podemos, assim, concluir que ao estudar os aspectos psicossociais associados à desnutrição infantil nos defrontamos com outros problemas de saúde pública, como os problemas de saúde mental. A drástica redução da prevalência da desnutrição ocorrida no Brasil nos últimos anos, inclusive na região Nordeste, não tem sido acompanhada por diminuição dos TMC maternos nem dos vários fatores que interagem com eles (tais como falta de suporte social, falta de maior e melhor escolaridade materna, comprometimento da saúde mental do companheiro). Isto tende a comprometer um desenvolvimento infantil adequado.

 

Referências Bibliográficas

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