As desigualdades são marcas do processo social e histórico de organização das diferentes civilizações e de suas relações entre si e com os recursos naturais e, posteriormente, do modelo de urbanização adotado na maior parte do mundo. “Ao longo dos séculos, ocorreram diversos processos de mudanças tanto políticas, como econômicas, sociais, culturais, climáticas, religiosas nos países e até nas suas denominações e extensões geográficas e territoriais” explica o sanitarista e diretor da Fiocruz Pernambuco, Eduardo Freese. Os períodos de monarquia, colonialismo e escravidão no Brasil resultaram numa concentração de renda que acarretou no monopólio de riquezas por pequenos grupos e, consequentemente, no surgimento da pobreza e da miséria. Assim, direitos que são considerados básicos para a vida de todo e qualquer indivíduo se transformaram em privilégios para poucos. “Algumas dessas desigualdades, além de injustas, são iníquas e, portanto, moralmente inaceitáveis”, define o médico e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Naomar Almeida.
A partir da análise do Censo Demográfico de 2010 é possível reconhecer algumas destas iniquidades – desigualdades evitáveis e injustas – presentes na realidade brasileira. Diferente do Sudeste e do Sul, regiões que receberam os maiores investimentos públicos e privados no último século, o Norte e Nordeste ainda concentram as famílias com maiores dificuldades econômicas e sociais e, consequentemente, com grandes problemas de saúde. Enquanto a mortalidade infantil no Sul foi de 12,6 a cada mil, no Norte do país este índice chegou aos 18,1%0. Enquanto no Nordeste 2,3% dos domicílios particulares permanentes ainda eram de taipa revestida, no Sudeste este número não passou de 0,1%, dados que, juntos, permitem a construção de um panorama da qualidade de vida nas regiões do Brasil.
Essas regiões também convivem com as doenças típicas das populações de baixa renda, as chamadas doenças negligenciadas, que são causadas por agentes infecciosos ou parasitas, e que estão diretamente relacionadas às condições de vida das famílias. Entre as enfermidades negligenciadas estão: doença de Chagas, filariose, esquistossomose e hanseníase e o número de casos por região também é um reflexo da realidade socioeconômica de cada localidade. No ano de 2011, segundo dados do Ministério da Saúde, foram registrados 37.102 casos de esquistossomose na região Nordeste, indicador que não passou dos 43 episódios no Sul, diferença gritante entre regiões.
O Nordeste é uma das regiões que mais sofre pela desigualdade socioeconômica brasileira, embora na última década esta realidade tenha começado a apresentar mudanças sutis a partir dos investimentos em políticas públicas e programas que objetivam reduzir as desigualdades entre as classes sociais e universalizar o acesso aos serviços e bens. A Região se depara com grandes desafios econômicos, sociais e também políticos no processo de transformação e redução destas iniquidades. “As estruturas de poder no Nordeste são demasiadamente consolidadas e seus operadores são muito eficientes no sentido da reprodução da dominação”, explica Naomar Almeida, contextualizando a dificuldade de transformação do meio político.
“Na região Nordeste, ainda observamos os mais elevados índices e taxas de mortalidade e morbidade infantis. Em crianças menores de quatro anos registramos uma menor expectativa de vida, se comparado a outras partes do país. Também há a concentração das chamadas doenças negligenciadas, a insegurança alimentar agravada pela seca secular no semiárido (Agreste e Sertão), além de diversas outras mazelas que causam sofrimento à população mais “carente” e que necessita ter sua “cidadania” resgatada”, ressalta Freese. A realidade da saúde das famílias das áreas mais desfavorecidas é um reflexo da complexidade de suas condições de vida e de diferenças de base como, por exemplo, frequência de crianças e adolescentes na escola e índice de empregabilidade. “Esse contexto social de desigualdade confere aos indivíduos posições sociais e de oportunidades distintas, as quais, por sua vez, provocam diferenciais na situação de saúde”, explica a professora adjunta do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Solange Laurentino, contextualizando os diferencias de saúde com oportunidades e posições sociais.
A (re) distribuição de renda através de programas sociais e de políticas públicas, bem como a promoção de novas oportunidades de geração de renda – como vem acontecendo no Brasil -, são medidas importantes e que ajudam a garantir a melhoria da qualidade de vida da população. Isso se dá a partir da ampliação do acesso a serviços, à cultura e aos próprios bens de consumo, como fogão, geladeira e televisão, que também têm seu papel na construção de uma realidade mais digna e com mais qualidade de vida. A persistência da existência das iniquidades reafirma a urgência em debater e procurar novas soluções para a afirmação de um modelo social mais igualitário.
As dificuldades em reverter a situação desigual atual consistem em reestruturar o modelo de convivência, a postura do Estado diante destas iniquidades e o entendimento disto como uma prioridade. A participação social neste processo assume um papel importante e indispensável no decurso de mudança do atual modelo de desenvolvimento, que instiga a concentração de renda na mão de poucos. “Neste aspecto, por mais que se utilize de ações baseadas em informação, só muito mais investimento em qualificação da informação – com uma ativa participação – possibilitará uma mudança transformadora dos grupos sociais envolvidos”, conclui Solange Laurentino.
Esta busca por um novo modelo de desenvolvimento que seja, em sua base, mais justo e que se comprometa em melhorar a vida da população deve envolver toda a sociedade. “Para que mudanças no modelo político econômico e para os investimentos em políticas públicas universais e equânimes atinjam seus objetivos e metas é fundamental que tenhamos um forte compromisso com a ética pública”, diz Freese, que atenta para a importância do envolvimento de partidos políticos, dirigentes e funcionários dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e participação popular neste processo.
Para saber mais sobre DSS leia:
- Determinantes Sociais da Saúde e Determinantes Sociais das Iniquidades em Saúde: a mesma coisa?
- Determinantes Sociais da Saúde: o que há de novo?
- Os determinantes das iniquidades em saúde e as intervenções para combatê-las
- Ações multisetoriais para combater as iniquidades em saúde
- Políticas de Combate às Iniquidades em Saúde baseadas em evidências científicas
Referências Bibliográficas
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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2012: resultados gerais da amostra. Rio de Janeiro: IBGE; 2012 [acesso em 29 jan 2013]. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/00000008473104122012315727483985.pdf
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