Regiões Norte e Nordeste mantiveram condições piores de desigualdades sociais em saúde, já no Sul e Sudeste houve pequena redução. Confira situação em cada região
Durante a pandemia de Covid-19, não faltaram relatos e reportagens que mostravam como determinados grupos populacionais vivenciaram este período com mais dificuldades do que outros. O desemprego, a fome, bem como as dificuldades de acesso às máscaras, álcool gel e até a água atingiram fortemente comunidades vulnerabilizadas. Diante deste contexto, pesquisadores do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia) construíram um índice que mede os efeitos das desigualdades sociais em saúde na pandemia no Brasil e descobriram que o abismo entre as regiões Norte-Nordeste e Sul-Sudeste se aprofundou neste período.
“A Região Norte, antes do início da pandemia [fevereiro de 2020], estava com quase 98% dos municípios na pior situação de desigualdade social em saúde e, mesmo com tantos investimentos em saúde desde então, praticamente a totalidade deles permanece nessa situação nos outros momentos”, explica a epidemiologista Maria Yury Ichihara, coordenadora do projeto que desenvolveu o Índice de Desigualdades Sociais para a Covid-19 (IDS-COVID-19). No caso de municípios da região Sul, o índice demostra que, do início da pandemia comparando com janeiro deste ano, a situação de desigualdades sociais em saúde reduziu 16%, sobretudo por conta do aumento da oferta de serviços de saúde.
Os dados oferecidos pelo índice alertam que a situação de desigualdade social em saúde no Brasil preexistia à Covid-19. Antes da pandemia, 98% dos municípios da Região Norte estavam nos agrupamentos 4 e 5, os dois piores grupos classificados pelo IDS-COVID-19. Na Região Sudeste, eram 35% dos municípios e no Sul, apenas 7%. “As desigualdades entre as regiões se aprofundaram, considerando que há uma melhoria dessas desigualdades em alguns municípios, embora não seja grande, enquanto outros permaneceram em situação crítica”, destaca a epidemiologista.
O IDS-COVID-19 foi calculado com base em dados socioeconômicos, sociodemográficos e de acesso aos serviços de saúde. Os pesquisadores exploraram bases de dados do Censo Demográfico do IBGE de 2010, bem como do Cadastro Nacional dos Equipamentos de Saúde (CNES) para capturar números de leitos de UTI e respiradores, e do Índice Brasileiro de Privação (IBP), que leva em consideração a renda, educação e condições de domicílio.
Foram definidas também variáveis que mais se relacionavam com as desigualdades sociais em saúde na Covid-19 como o percentual de população residente em domicílios com densidade domiciliar maior que 2, percentual de idosos em situação de pobreza, além do percentual de pretos, pardos e indígenas. “A pandemia atingiu as pessoas negras de forma distinta por conta das desigualdades raciais. Era preciso que a gente desse evidência a isso. E o índice tem uma função de dar a gente uma forma de mensuração das desigualdades”, afirma a epidemiologista Emanuelle Góes, pesquisadora associada ao Cidacs e que fez parte da equipe de construção do IDS-COVID-19, explicando como se inseriu o racismo estrutural como categoria de análise no índice.
Região Norte concentrou maior proporção de municípios nas piores situações de desigualdades
“Todas as proibições mexeram diretamente com a atividade de algumas mulheres ribeirinhas, mulheres da floresta ou da região rural porque as atividades foram paralisadas”, explica a pesquisadora em Ciências Farmacêuticas Terezinha de Jesus, que integra o Instituto de Mulheres Negras do Amapá e participou de reuniões com a equipe de pesquisadores do IDS-COVID-19 para compartilhar suas experiências.
Segundo ela, além das condições socioeconômicas e sociodemográficas, uma série de outras ocorrências foram marcantes para que o estado do Amapá e a própria Região Norte tenham tido impactos profundos por conta da pandemia. “As pessoas foram para casa de parentes no interior e levaram o vírus para lá, inclusive muitas pessoas morreram”, relembra Terezinha. Ela ainda destacou a grande circulação de desinformação, a espera por até uma semana para a chegada dos resultados dos testes de Covid-19 analisados em Belém (PA) e a situação de fome na região onde mora.
Após a primeira onda da pandemia de Covid-19, somente 3% dos municípios da Região Norte conseguiram reduzir as condições de desigualdades em saúde, segundo dados do IDS-COVID-19. Em uma comparação com municípios da Região Sul, por exemplo, 8% deles apresentaram redução das desigualdades.
Os dados do índice também mostram que nos quatro momentos medidos mais de 90% dos municípios da Região Norte ficaram na pior classificação quanto ao nível de desigualdades sociais em saúde.
“Todo mundo viu a onda se formando, o tsunami vindo e ninguém fez nada”
Na Região Nordeste, a realidade medida pelo IDS-COVID-19 não foi diferente. Em fevereiro de 2020, quase todos os municípios, 99%, estavam nos dois piores grupos com relação à situação de desigualdades sociais em saúde. Ao longo da pandemia, a região apresentou uma ligeira redução nessa condição com 95% em julho de 2020, 93% em março de 2021 e 92% em janeiro de 2022.
Para quem viveu na pele os efeitos da pandemia no dia a dia, não faltam relatos de dificuldades e soluções que poderiam ter sido implementadas para que menos pessoas morressem ou se contaminassem com o novo coronavírus sobrecarregando os serviços de saúde. “Para mim, a água naquele momento tinha que ser distribuída para todo mundo ter acesso, assim como álcool gel. Não é que a gente foi pego desprevenido na pandemia. Todo mundo viu a onda se formando, o tsunami chegando e ninguém fez nada” afirma Ivana Braga, mestre em Políticas Públicas e integrante o Grupo de Mulheres Negras Mãe Andresa no Maranhão, que também participou do projeto de construção do IDS-COVID-19.
Para Durvalina Rodrigues, doutoranda em Antropologia e integrante da Rede Mulheres Negras do Nordeste e Abayomi – Coletiva de Mulheres Negras na Paraíba, um grupo em especial tem sido mais afetado pela pandemia. “Como as mulheres negras são a base da pirâmide social, essas mulheres foram as mais atingidas não só pelas iniquidades sociais, mas pelas desumanidades que aconteceram no nosso país, através dos nossos governantes. Foi trágico”, reflete.
“A maioria das mulheres negras chefiam suas casas e cuidam dos seus filhos. Você ter uma situação em que você tinha mulheres chefes de família em situação de adoecimento, de cuidar sem ter esse cuidado, e com filhos em situação de risco” reflete Lúcia Gato, integrante do Grupo de Mulheres Negras Mãe Andresa.
O Maranhão, estado onde Lucia vive, apresenta uma situação ainda mais intensa com relação às desigualdades sociais em saúde medidas pelo IDS-COVID-19 que é o fato de 214 dos 217 municípios analisados terem estado na posição de maior desigualdade no início da pandemia. Nos momentos seguintes medidos pelo índice, esse número se manteve quase o mesmo, com 208 municípios nesta situação desigual na comparação
entre fevereiro de 2020 e janeiro de 2022. Os municípios de São Luís e Imperatriz foram os que apresentaram a maior redução desde quando a pandemia começou.
Municípios da Região Centro-Oeste apresentam diferentes níveis de desigualdade
Uma das características dos municípios da Região Centro-Oeste é a distribuição deles em diferentes níveis de desigualdade, segundo os cálculos do IDS-COVID-19. No entanto, ainda há um maior volume de locais classificados nos dois piores grupos com relação à situação de desigualdades sociais em saúde.
Em uma escala de 1 a 5, com 1 para menos desigual e 5 para mais desigual, a Região tinha 134 municípios no grupo 3, 270 municípios no grupo 4 e 51 no grupo 5 antes do início da pandemia. Dos municípios que estavam nos grupos 4 e 5, 76% deles mantiveram a situação de desigualdade social em saúde na comparação entre fevereiro de 2020 e janeiro de 2022. O destaque vai para as capitais do Centro-Oeste, além de Brasília, que mantiveram suas respectivas situações de menor nível de desigualdade desde o início da pandemia até o último momento analisado, em janeiro de 2022.
“A pandemia piorou a situação das desigualdades e dos direitos humanos”
“O que me chamou mais atenção nesse processo foi a total dificuldade ou negação do acesso a serviços. Você tinha CRAS [Centro de Referência da Assistência Social] e creches fechadas, escolas e hospitais fechadas – só as grandes unidades abertas” elenca Lúcia Xavier, que coordena o Observatório de Direitos Humanos Crise e Covid-19 e a ONG Criola. Ela ainda destaca a violência policial no Rio de Janeiro, cidade onde vive, o isolamento dos sistemas prisionais, a fome e a elevada quantidade de mortes no período.
De acordo com dados do IDS-COVID-19, a distribuição de municípios quanto à classificação pela situação de desigualdade social em saúde esteve mais concentrada entre os níveis intermediários no Sudeste. Em Minas Gerais, no início da pandemia, 50% dos municípios foram classificados nos dois últimos grupos, com pior situação de desigualdade, e 33% em uma posição intermediária. Por outro lado, em São Paulo 41% dos municípios estavam nos agrupamentos com menor nível de desigualdade e 11,3% nas duas piores posições.
No Rio de Janeiro, dos 92 municípios que compõem o estado, 39 iniciaram a pandemia nas piores situações relativas às desigualdades, segundo o índice, e 28 deles mantiveram o lugar ao longo dos períodos analisados pelos pesquisadores.
No município do Rio de Janeiro, uma das principais reclamações da população era a falta de dados sobre os números de casos e óbitos por Covid-19. “Havia casos e relatos de muitos óbitos acontecendo em municípios de favela e não percebíamos esses dados na grande mídia. Sabíamos que a situação era grave e o apoio não chegava de maneira adequada”, explica Renata Gracie, pesquisadora da Fiocruz e participante do Painel Unificador Covid-19 nas Favelas do Rio de Janeiro. A iniciativa resultou na criação de um painel com dados levantados localmente pelos próprios moradores de territórios de favela e, que depois também passou a ser alimentado também por outras bases de dados, que foram mapeadas pelos CEPs.
Região Sul tem melhora na situação desigualdades sociais em saúde
Enquanto a situação de desigualdades sociais em saúde se manteve praticamente inalterada em municípios do Norte e Nordeste, que já viviam condições inferiores, no Sul, o IDS-COVID-19 mostra uma ligeira redução das desigualdades. A Região não teve nenhum dos 1188 municípios classificados (3 deles não foram incluídos na pesquisa) no pior agrupamento antes da pandemia (fevereiro de 2020). Além disso, do último momento analisado (janeiro de 2022) para o período antes da pandemia, 196 municípios reduziram as desigualdades, de acordo com o índice.
Por outro lado, entre os 84 municípios que estiveram classificados na lista dos mais desiguais da Região Sul no início da pandemia, 65 permanecem nessa condição. Para Débora Olímpio, da Rede Mulheres Negras para Soberania e Segurança Alimentar Nutricional no Paraná, a fome foi uma das maiores dificuldades visualizadas neste período. “A gente vinha de um processo de insegurança alimentar no Brasil e ela se agrava com a pandemia” reflete Débora, que relembra que a organização que integra teve que novamente fazer um trabalho de busca de financiamento e distribuição de cestas básicas. “Voltamos para um momento de precarização mesmo. Olha a que ponto estamos?!”, questiona.
Participação de gestores e membros da sociedade civil marcam construção do IDS-COVID-19
Um dos pilares do projeto de pesquisa responsável pela construção do IDS-COVID-19 foi o envolvimento dos públicos durante o processo de investigação. O objetivo principal deste esforço de estabelecer uma relação mais estreita entre os diversos participantes é, ao ouvir suas experiências cotidianas durante a pandemia, ser mais assertivo nos resultados da pesquisa e permitir a aplicabilidade do índice.
A experiência dos convidados relacionadas às desigualdades sociais e a pandemia foram bastante importantes para o andamento da pesquisa. “A ideia é que o índice tenha utilidade no dia-a-dia das pessoas e, para isto, precisamos ouvi-las durante o processo de andamento da pesquisa”, defende Maria Yury Ichihara, coordenadora do projeto e vice-coordenadora do Cidacs.
Foram convidadas cerca de 40 pessoas entre representantes da área de gestão pública, representantes de entidades e associações de comunidades, pesquisadores e jornalistas. Cada um destes grupos participou de algumas atividades que permitiram o encontro e diálogo com os pesquisadores. Durante os grupos de discussão, as reuniões técnicas e webinários, os públicos eram consultados sobre os caminhos adotados na construção do IDS-COVID-19.
Débora Olímpio afirma que aceitou colaborar com o projeto para compreender como está a situação da população negra neste momento, pois este indicador, dentro deste processo, pode indicar a vulnerabilidade desta população. “Existe um potencial e um olhar nosso de ver que quem está nesse processo de maior desigualdade da pandemia é a população negra, mas precisamos disso materializado, em formato de estudo, de forma palpável para cobrar da gestão pública e para buscarmos financiamento junto a outras instituições”, defende.
Sobre o IDS-COVID-19
O projeto “Avaliando os efeitos das desigualdades sociais durante a pandemia de Covid-19”, tem por objetivo avaliar a relação entre um Índice de Desigualdades Sociais para Covid-19, a ocorrência de casos e óbitos em agrupamentos de municípios. O projeto faz parte do Grand Challenges ICODA pilot initiative, promovido pelo Health Data Research UK e financiada pela Fundação Bill & Melinda Gates e Fundação Minderoo.
Por Adalton dos Anjos – Cidacs/Fiocruz Bahia
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