O uso das evidências científicas aumenta a efetividade das políticas públicas, mas requer reorientação nas agendas de pesquisa

Aberto Pellegrini Filho

Porque usar evidências científicas nas políticas sociais de combate às iniquidades?

A utilização de evidências científicas é fundamental para assegurar que a alocação de recursos públicos seja feita de maneira a garantir a efetividade de políticas e programas. O uso da “evidência” para a tomada de decisão em saúde vem sendo proposto pela medicina clínica desde os anos 70, consagrando a expressão “medicina baseada em evidências” (MBE). Entretanto, a adoção plena da MBE ainda enfrenta sérias dificuldades, as quais são muito maiores quando se busca adotar um enfoque similar para implantar políticas sociais baseadas em evidências com o objetivo de promover a equidade em saúde.

Quais são as principais dificuldades na utilização de evidências científicas?

São de várias naturezas, sendo a primeira delas relativa a metodologias para a geração de evidências em políticas públicas de base populacional. No caso da MBE, há um “gold standard” para inferir a efetividade de uma dada intervenção médica que são os Randomized Controlled Trials (RCT). Entretanto, a adoção dos RCT para a avaliação de intervenções a nível comunitário apresenta uma série de problemas. Entre eles vale citar: a dificuldade de documentar os efeitos dos DSS e das intervenções sobre eles na saúde das populações, particularmente quando se trata dos chamados determinantes distais que podem tardar décadas para se manifestar. Os RCTs em geral envolvem amostras relativamente pequenas de populações e não apresentam informação adequada sobre o contexto, o que é crucial para julgar se a intervenção submetida à avaliação pode ser efetivamente implementada em outras populações ou lugares. A implementação de uma intervenção social a nível comunitário requer a mobilização da vontade política e suas ações afetam diversos grupos de interesse, fazendo com que a distribuição ao azar de quem receberá ou não a intervenção seja frequentemente impraticável. Além disso, é quase impossível evitar a exposição pelo grupo-controle como no caso, por exemplo, de campanhas publicitárias para promover hábitos saudáveis. Por estas e outras razões os RCT nem sempre são éticos, factíveis ou desejáveis no caso das intervenções a nível populacional e não podem ser adotados como o “gold standard” para sua avaliação, o que implica na necessidade de adoção de um leque mais amplo e diversificado de fontes e métodos igualmente rigorosos.

Além dessas dificuldades metodológicas para a geração de evidências, sua aplicação para a definição de políticas e intervenções sobre os DSS enfrenta também dificuldades de outra ordem, como, por exemplo, o número relativamente menor de estudos que avaliam o impacto de intervenções sobre determinantes sociais para promoção da equidade em saúde em comparação com a abundante massa crítica de estudos sobre avaliação de procedimentos clínicos. Além disso, os temas de pesquisa sobre políticas públicas relacionadas aos DSS costumam ser definidos pelo pesquisador, com pouca ou nenhuma participação dos atores envolvidos no processo de tomada de decisão dessas políticas; o “locus” de produção do conhecimento e o “locus” de sua utilização são distantes e diferenciados, o que se soma a outras barreiras institucionais, de linguagem, de cultura e de valores entre os que atuam nesse diferentes “loci” e a complexidade do processo decisório que no caso de políticas públicas envolve a participação de diferentes atores com diferentes interesses, usando diferentes critérios para embasar suas decisões.

Como superar essas dificuldades?

Para superar essas dificuldades as estratégias de promoção do uso de evidências em políticas públicas relacionadas aos DSS devem ser bastante variadas e entre elas deve-se incluir a definição de um conjunto básico de indicadores que permitam monitorar as tendências das iniquidades em saúde e avaliar o impacto de políticas e programas para combatê-las. A operação deste conjunto de indicadores e análise de suas tendências deve estar a cargo de instâncias que se situam na interface entre as instituições que produzem informações e as que se responsabilizam pelo processo decisório, como é o caso dos chamados Observatórios. Deve-se também promover um aumento da massa crítica, aprimoramento da metodologia e descentralização de estudos de avaliação de intervenções, assim como uma mudança na maneira como se estabelecem as agendas e prioridades de pesquisa, que devem ser definidas em função da solução de problemas, com a participação tanto de pesquisadores como de usuários do conhecimento.

Como proceder para aumentar a massa crítica de estudos e reorientar as agendas de pesquisas?

Deve-se promover a criação de redes colaborativas entre instituições de diversas naturezas que envolvam pesquisadores, gestores, tomadores de decisão e outros profissionais para definição de agendas, desenvolvimento do processo de pesquisa e análise de implicações para políticas de seus resultados. Finalmente deve haver uma diversificação dos modos de disseminação do conhecimento para que não se limitem às revistas científicas e possam alcançar os diversos atores envolvidos no processo de tomada de decisões em políticas públicas.

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1 Comentário

  1. Excelente entrevista do Mestre Pellegrini que tem o saudável hábito de estar sempre enxergando bem adiante as necessidades de evolução científica para enfrentar os enormes desafios da saúde coletiva. É verdade que existem barreiras metodológicas e políticas nos processos de utilização de evidências científicas para fortalecer políticas públicas que promovam a equidade em saúde. No entanto, a Organização Mundial de Saúde promove desde 2005 com o programa EVIPNet (acronímio em inglês da Rede de políticas informadas por evidência), com países de média e baixa renda, para apoiar o desenvolvimento de novas metodologias, mecanismos e práticas que favoreçam um processo de utilização de resultados de pesquisa, desenvolvimento e inovação em que o produto são políticas públicas que tem como base a promoção de equidade. EVIPNet foi em grande parte inspirada nas propostas de Pellegrini Filho quando coordenava a área de pesquisa da OPAS. As equipes EVIPNet nos países, inclusive no Brasil, buscam sempre a interação dos gestores e tomadores de decisão, representantes da sociedade civil e pesquisadores no desenvolvimento destas políticas. Mais informações podem ser obtidas no site da OMS https://www.who.int/evidence/en/

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