Pandemia da desigualdades

“O Brasil precisa escolher quais serão os legados da pandemia de Covid-19 para o país”. A recomendação é do epidemiologista Rômulo Paes de Sousa, pesquisador da Fiocruz Minas e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), que nesta entrevista comenta o relatório “A desigualdade mata”, publicado pela Oxfam em janeiro. Autor do “Brevíssimo inventário dos fracassos no enfrentamento da Covid-19 no Brasil”, publicado na Revista Brasileira de Estudos de População no ano passado, Paes de Sousa discute o desempenho nacional no enfrentamento da emergência sanitária provocada pelo novo coronavírus. “Ao mesmo tempo em que revela a iniquidade em saúde em todo o mundo, a pandemia produz, ela própria, mais desigualdades. Então, é preciso que a pandemia de Covid-19 produza um legado à altura de seus impactos sobre as várias gerações que convivem com ela. Se o Brasil não fizer isso imediatamente, chegará atrasado para produzir uma resposta tão fundamental como esse momento histórico nos cobra”, afirma.

O relatório da Oxfam aponta que a desigualdade contribui para a morte de pelo menos uma pessoa a cada quatro segundos, em todo o mundo. Podemos dizer que a desigualdade é um problema de saúde?

A relação entre a  saúde e os seus determinantes sociais é conhecida há muito tempo. Na Idade Antiga, Hipócrates já chamava atenção para o impacto de precárias condições de trabalho nas vidas das pessoas e, hoje, temos uma compreensão mais nítida desse processo. Além das condições de trabalho, é preciso avaliar a qualidade de vida como um todo, considerando situação habitacional e acesso a bens e serviços públicos, como saúde, educação, água. Há, ainda, desigualdades no acesso às tecnologias de saúde – vacinas, por exemplo – e ao conhecimento sobre direitos, como o nosso direito ao sistema de saúde. Então, sim, ser pobre, menos escolarizado, viver em um ambiente insalubre, trabalhar em condições precárias: tudo isso tem como resultado uma saúde mais frágil e, portanto, a maior probabilidade de adoecer e morrer mais precocemente. Especialmente em relação à Covid-19, há desigualdades em relação ao conhecimento e à possibilidade de cumprir as medidas preventivas. Portanto, ao mesmo tempo em revela a iniquidade em saúde em todo o mundo, a pandemia produz, ela própria, mais desigualdades. Trabalhar em casa, o home office, é uma possibilidade muito diferenciada. As casas, em geral, não estão preparadas para a atividade de trabalho. Algumas casas são pequenas demais, há meios tecnológicos de menos e há uma disputa por esses meios entre os vários habitantes do domicílio. Então quem pode trabalhar em casa em boas condições tem uma enorme vantagem em relação às condições de trabalho nesse momento. Muitas pessoas ficaram mais expostas ao vírus por necessidade de desenvolverem  suas atividades em contato com outras pessoas. Então, essa possibilidade de trabalhar em casa não foi permitida a muitos. Além disso, o acesso a bens e serviços de saúde também é desigual.

Como essa desigualdade se expressa globalmente, no contexto da pandemia de Covid-19?

Vejamos a situação das vacinas: mais de 10 bilhões de doses já foram aplicadas em todo o mundo e menos de 10% das pessoas que vivem em países de baixa renda receberam, ao menos, uma dose da vacina. Em países do Leste Europeu, da  África subsaariana e do Sudeste Asiático a cobertura vacinal ainda não chegou a um patamar mínimo para garantir a segurança da população, de acordo com o recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). É preciso prover a esses países vacinas e/ou meios de vacinação. Em muitos deles, não são apenas as vacinas que são escassas. Há, também, ausência de uma rede fria, de tecnologias e até mesmo de meios de transporte seguros para essas vacinas. Esses países necessitam mais do que vacinas. Já assistimos à devolução de lotes de vacina contra a Covid-19 com data de vencimento próxima, porque não seria possível distribuí-las. Mas a baixa cobertura vacinal ocorre no mundo por duas razões: uma é esta ausência de vacinas e de tecnologias de distribuição de vacinas. A outra está ligada ao negacionismo, às pessoas incorporarem as teses negacionistas e se negarem a vacinar. São situações diferentes. Temos países que querem desesperadamente as vacinas e não conseguem; e países que dispõem das vacinas, mas enfrentam um movimento contrário à vacinação muito forte, que impacta decisivamente na determinação das pessoas se vacinarem. As vacinas estão disponíveis para a população, mas há esta recusa. Essa tendência é forte no Leste Europeu. Bulgária, Geórgia, Armênia têm registrado recusa da maioria de suas populações e têm até perdido vacinas por causa disso. A Bulgária perdeu estoques de vacina porque houve uma gigantesca recusa da população em se vacinar. Alguns lotes foram doados, mas outros foram perdidos. Até o presente, somente 16% das pessoas estão vacinadas com duas doses ou dose única. Na Armênia, menos de 30% da população está imunizada. Outro caso importante é o da Sérvia, onde há a presença massiva  de médicos na televisão, falando contra as vacinas disponíveis, disseminando informações incorretas sobre sua relevância no combate à doença. Isso também ocorre em países muito próximos ao Brasil, como os Estados Unidos, onde existe uma parcela muito militante da população contrária às vacinas que dificulta o processo de imunização. No Canadá tem havido manifestações até violentas contra as vacinas. No Brasil, o acesso de adultos à vacina não tem sido um problema. Mas suspeitamos que o movimento antivacina, que até então sempre foi fraco em nosso país, ganhou força. Por isso, temos que observar o cenário com cuidado. Existem municípios na região Norte em que a cobertura vacinal de adultos não chega a 20%. Em todo o país, muitas pessoas ainda não tomaram a segunda dose. E a vacinação na faixa etária de 5 a 11 anos está com uma performance muito ruim, muito lenta, num ritmo muito menor do que precisamos e muito abaixo do que podemos fazer com uma rede de saúde tão extensa e capilarizada. O fato de termos triunfado, num primeiro momento, na vacinação de adultos não deve ser motivo para relaxar nessa missão de imunizar a população brasileira.

A Oxfam sugere um imposto único, de 99%, para os dez homens mais ricos do mundo, que tiveram lucros decorrentes da Covid-19 Esta é uma alternativa viável?

Essa proposta de tributação é uma provocação, uma estratégia para fazer uma grande denúncia política sobre como a desigualdade foi  acentuada durante a pandemia. Para uma instituição do porte da Oxfam, é uma proposta muito interessante, porque suscita uma ótima discussão sobre tributação, justiça social, responsabilidade social; sobre como o financiamento de temas essenciais, como a distribuição de bens e serviços de saúde pelo mundo ou a mitigação das mudanças climáticas, pode ser simplificado. O que o relatório quer mostrar é que, dessa forma, seria possível financiar vacinas e meios de vacinação para todos os países, financiar medidas de mitigação das mudanças climáticas, promover a saúde universal e a proteção social e combater a violência de gênero em mais de 80 países. Os dez homens mais ricos do mundo acumularam US$ 8 bilhões durante pandemia. Esse exercício coloca em cena os diversos aspectos que envolvem a discussão sobre desigualdades no acesso à renda. Primeiro: os ricos pagam pouco imposto. A desigualdade na tributação é muito grande, no mundo inteiro. E essa proposta visa justamente denunciar essa desigualdade na tribulação. Relativamente, quanto mais pobre se é, mais imposto se paga. Uma segunda questão é a necessidade de termos uma tributação compatível com o estágio de desenvolvimento econômico em que nos encontramos. Hoje a  atividade econômica é transnacional. Esses dez homens mais ricos do mundo possuem negócios no mundo inteiro. Portanto, precisamos de um modelo de tributação que dê conta dessas transações internacionais, que muitas vezes escapam dos sistemas tributários vigentes. E, por fim, denuncia o enriquecimento de uma parcela ínfima da população mundial, que já era muito rica, e ficou ainda mais rica aproveitando as oportunidades que a pandemia gerou, com baixíssimo retorno para o mundo, diante de tantos desafios.

Como essa discussão está situada no contexto da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável?

A desigualdade socioeconômica e a questão climática estão na base das propostas da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que tem como lema “não deixar ninguém para trás”. Portanto, o enfrentamento das desigualdades é transversal a todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Esse compromisso foi estabelecido em 2012, com forte presença brasileira, visando construir globalmente uma agenda ampla, multidimensional, que pudesse dar conta das complexidades do mundo contemporâneo quando pensamos em desenvolvimento. É uma agenda de 15 anos, que engloba muitos ciclos políticos. Em 2012 ainda estávamos fortemente marcados pela crise econômica de 2008 e 2009, mas ainda assim havia uma convergência política entre grandes lideranças do mundo em favor da sustentabilidade. Depois, perdemos isso, com a vitória de lideranças populistas de direita em diferentes países. Talvez, agora, possamos estar às vésperas de um novo momento, de uma certa mudança em termos de tendência global, inclusive no Brasil. Dessa forma vemos a possibilidade de recuperar o entendimento planetário em relação a essas agendas que são decisivas para nós: a redução das desigualdades, a preservação da biodiversidade, a questão climática.

Quais as principais conclusões de seu “Brevíssimo inventário dos fracassos no enfrentamento da Covid-19 no Brasil”?

Principalmente em 2020 enfrentamos grande fracasso no manejo da pandemia. No Brasil, perdemos quatro grandes oportunidades: a incapacidade de unir o país para o enfrentamento da pandemia; o não aproveitamento dos repasses realizados para o setor Saúde para enfrentamento dos déficits estruturais do Sistema Único de Saúde (SUS); o grande investimento social e econômico de forma descolada das iniciativas de prevenção da doença; e a falta de uma estratégia abrangente e pragmática de aquisição de vacinas. Mesmo assim, houve um investimento tecnológico decisivo. Isso aconteceu inclusive no Brasil, com a construção de alternativas pela Fiocruz e o Instituto Butantan, com a má vontade do Governo Federal. O fato é que isso ocorreu e nos colocou numa situação um pouco mais favorável no segundo ano da pandemia. Entretanto, esse foi sempre um processo muito complexo e traumático. Faltou-nos inicialmente uma coesão política mínima para enfrentar uma emergência sanitária dessa magnitude. Muito desentendimento entre os poderes nos vários níveis e entre os vários poderes em um mesmo nível. Muita informação não só desconexa, mas de sabotagem mesmo, contra ações sanitárias necessárias no momento. Isso não aconteceu em todos os lugares. Israel, que é um país muito marcado por divergências políticas, com um espectro partidário tão amplo quanto o brasileiro, construiu uma coalizão política para enfrentar a pandemia e obteve ótimos resultados, tornando-se exemplo de sucesso na vacinação em todo o mundo. A terceira  oportunidade perdida envolve a interligação entre proteção social e saúde. Iniciativas como o auxílio emergencial, depois convertido em Auxílio Brasil, não foram integradas com a prevenção à doença. Ao contrário: foram apresentadas na narrativa do Governo Federal em contraposição às medidas sanitárias, com a mensagem de que o benefício estava sendo concedido para que as pessoas não aderissem às medidas quarentenárias. Isso em 2020, quando não dispúnhamos de vacinas e todas as estratégias de prevenção eram não farmacológicas.

Quais os cenários para os próximos 20 anos?

O legado dessa pandemia será muito importante para todo o mundo. A pandemia é singular na história da humanidade não apenas pela velocidade e relevância, em termos de consequências sanitárias, sociais, econômicas, ambientais, mas também pelo tipo de resposta produzida. Em 2020, o mundo inteiro investiu US$ 16 trilhões para enfrentar a pandemia. E também tomou decisões importantes em relação a lockdown, com impacto gigantesco em atividades produtivas. Então a pandemia é surpreendente não só porque é um fenômeno sanitário, em si, muito importante, mas também pela magnitude das respostas organizadas. O mundo decidiu que nós não deveríamos tolerar a quantidade de doentes e mortos por conta da Covid-19. Nesse sentido, é uma resposta muito singular e muito positiva. Nós já vivemos outras pandemias, elas foram muito importantes, mas nunca tivemos uma resposta dessa proporção num espaço tão curto de tempo. Isso nos deixará legados. E o Brasil será impactado por esses legados, seja por acordos internacionais ou por imitação em relação ao que outros países estão fazendo. Agora, o Brasil precisa escolher os seus legados. O que o país entende, soberanamente, voluntariamente, que precisa ser refeito após essa experiência. É lamentável que isso ainda não esteja em discussão. O Brasil direcionou R$ 524 bilhões para enfrentar a pandemia em 2020. É um investimento excepcional. Mas não usamos esses recursos para enfrentar os déficits estruturais de nosso sistema de saúde. A opção feita foi focar em demandas imediatas. Agora, corremos o risco muito grave de sair da pandemia sem um legado de melhor governança, de maior infraestrutura de saúde, de competência maior na atenção à saúde. É claro que vamos ter melhorias em relação à nossa capacidade de produção de vacinas ou mesmo de monitoramento, mas continuamos devendo muito em termos de testagem, distribuição de serviços de saúde e de recursos essenciais, como leitos de UTI. A gripe espanhola, que aconteceu há pouco mais de 100 anos, deixou um legado fundamental. Onze anos depois, passamos a contar com  um Ministério da Saúde para coordenar as ações de Saúde Pública no Brasil inteiro – o que, até então, era feito por um departamento do Ministério do Interior. Então, é preciso que a pandemia de Covid-19 produza um legado à altura de seus impactos sobre as várias gerações que têm convivido com ela. Se o Brasil não fizer isso imediatamente, chegará atrasado para produzir uma resposta à altura do que esse momento histórico nos cobra.

 

Por Bel Levy – Saúde Amanhã . 15/02/2022

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