Segundo relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2019, cerca de 2,2 bilhões de pessoas em todo o mundo não têm serviços de água tratada, 4,2 bilhões não contam com serviço de saneamento adequado e 3 bilhões não possuem instalações básicas para a higienização das mãos. Isso significa que uma em cada três pessoas no mundo não tem acesso a água potável e que mais da metade da população é afetada pelas desigualdades no acesso à água, saneamento e higiene. Para a Organização das Nações Unidas (ONU) existem dois tipos de escassez hídrica. A escassez física, na qual 75% da água doce disponível é utilizada pela agricultura, indústria e uso doméstico; e a escassez econômica, quando apesar da abundância de água em relação à demanda da população, fatores sociais e econômicos limitam o acesso.
Em estudo realizado no Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), iniciado em 2018, a pesquisadora Suyá Quintslr revela as desigualdades no acesso à água entre o centro e a periferia da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ). O estudo originou o livro “Da crise hídrica à ecologia política da água – Megaprojetos de abastecimento e injustiça ambiental no Rio de Janeiro”, apoiado pelo programa Apoio à Editoração da FAPERJ. O lançamento no Rio de Janeiro será no próximo dia 26 dejunho, às 19h, na Blooks Livraria, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Anteriormente, em maio, a obra foi apresentada durante o XX Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Enanpur), em Belém. Suyá recebeu apoio da FAPERJ para a realização de sua pesquisa por meio do programa Jovem Cientista do Nosso Estado.
Em seu estudo, Suyá – cujo nome homenageia a tribo indígena homônima do Alto Xingu, norte do Mato Grosso – focou na Estação de Tratamento de Água (ETA) do Guandu, localizada em Nova Iguaçu. Responsável por 80% do abastecimento de água potável da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o sistema possui vazão de 43 mil litros por segundo, suficiente para atender mais de 9 milhões de pessoas. De acordo com o levantamento feito pela equipe responsável pelo trabalho, o sistema prioriza a população da capital fluminense em detrimento dos municípios de Nova Iguaçu, Duque de Caxias, São João de Meriti, Belford Roxo, Nilópolis e Itaguaí.
Segundo a pesquisadora, dentre os fatores que consolidaram essa discrepância está a própria gestão pública, que discrimina os usuários em relação a suas características étnico-raciais e socioeconômicas. “A desigualdade de acesso entre os usuários atendidos pelo Sistema Guandu é espacial e socialmente diferenciada entre os municípios da Baixada Fluminense e o Rio de Janeiro”, afirma Suyá. De acordo com ela, é também consequência do processo de formação urbana da Baixada Fluminense (cuja ocupação era agrícola), desde o final do século 19, quando famílias se estabeleceram em locais sem infraestrutura que, apesar de apresentarem crescimento populacional maior do que o da capital já no início do século XX, não foram objeto de políticas de abastecimento de água. Raízes contidas, também, no histórico de formação, na combinação de processos de metropolização e segregação urbana e no padrão desigual dos investimentos, cujas raízes estão no Plano Nacional de Saneamento (Planasa), elaborado na década de 1970.
A pesquisa qualitativa e quantitativa (multimetodológica) incluiu entrevistas com lideranças sociais e agentes envolvidos na questão do saneamento; análise documental de depoimentos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da “crise hídrica”; estatísticas sobre acesso à água do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010 e do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS); observação direta, além de 18 entrevistas com gestores públicos e lideranças da Baixada Fluminense. A análise envolveu a triangulação de dados primários e secundários e cruzou variáveis como saneamento adequado, renda, cor, sexo e escolaridade. O resultado mostrou que os que menos têm acesso a água potável são os de renda familiar até um salário mínimo, pretos e com escolaridade baixa.
Um dos capítulos do livro é dedicado ao resgate histórico dos movimentos sociais dos anos de 1980, exigindo melhorias no abastecimento de água e saneamento, esvaziados ao longo dos anos em decorrência da violência urbana, pela ação intimidante das milícias, e até pela solução arriscada de furto de água para fins industriais e não tratada dos dutos da Refinaria Duque de Caxias (Reduc).
Em meio ao estudo, a pesquisadora se deparou com a crise hídrica decorrente da seca dos anos 2014-2015, que, segundo ela, no caso da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), foi muito
mais uma decorrência de conflitos de interesse do que propriamente ameaça de escassez. Suyá garante que a vazão de 43 mil litros por segundo do sistema Guandu é garantida pela transposição do Rio Paraíba do Sul (que também serve os estados de São Paulo e Minas Gerais), contribuindo com a adição de 180 metros cúbicos de água por segundo ao sistema Guandu. “De fato, a crise hídrica não provocaria escassez de água no município do Rio de Janeiro, ao contrário de São Paulo, que precisou racionar água”, esclarece Suyá. Ela explica que a ameaça era, na verdade, fruto de conflito de interesse das indústrias que captavam água no Canal de São Francisco e passaram a reivindicar água do Sistema Guandu devido à salinidade da água do canal, que se comunica com a Baía de Sepetiba e recebeu mais água do mar em decorrência da seca.
“A imprensa teve um papel fundamental para a desinformação durante a crise hídrica, falando em volume morto do Paraíba do Sul, em água de qualidade duvidosa, mas, na verdade, o objetivo era desqualificar a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), cuja privatização já era certa. Mais tarde, em 2020, seria a geosmina a vilã que afetaria a imagem da Cedae. Não que a empresa não apresentasse problemas, claro que sim, mas as campanhas para desvalorizá-la foram visíveis”, explica a bióloga. Segundo ela, o foco da crise também capturou o debate para valorizar as obras do Novo Guandu. O assunto mobilizou tanto a sociedade que a pesquisadora decidiu estudar todos os depoimentos contidos na CPI da Crise Hídrica instaurada na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).
Dentre as propostas de políticas públicas que buscam solucionar o problema de abastecimento de água na Baixada Fluminense, o estudo identificou três principais projetos. A ampliação do Sistema Guandu (Guandu 2), proposta pelo governo do Estado; a utilização da alternativa da adutora de Ribeirão das Lajes, localizado no município de Piraí, defendida pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas de Saneamento e Meio Ambiente do Rio de Janeiro (Sintsama), e o uso de mananciais locais para o suprimento de água independente de Duque de Caxias, proposta do Poder Executivo municipal, logo descartada.
Para a ecóloga, doutora em Planejamento Urbano e Regional e mestre em Ciência Ambiental, como de costume, venceu a escolha técnica, que envolvia grandes obras de infraestrutura. Integrante do Laboratório de Estudos de Águas Urbanas da UFRJ (Leau) e associada ao Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), Suyá chama atenção para os riscos do fato de o Rio de Janeiro depender de uma única fonte de água potável e não possuir nenhuma alternativa para o abastecimento. “Sistema que só existe devido à transposição do Paraíba do Sul, que possui apenas o caminho da transposição em Santa Cecília, aumentando ainda mais a vulnerabilidade do sistema Guandu”, conclui a pesquisadora, que conta com apoio da FAPERJ desde 2019, por ocasião de seu “Doutorado Sanduíche” na França, e que pretende dar continuidade à sua pesquisa analisando os documentos da concessão da Cedae.
Por Paula Guatimosim – FAPERJ – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro . 22/06/2023.
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