Quanto vale o amor materno? Apenas abraços e beijos?

Trabalho não pago de afazeres domésticos e cuidados nas famílias, se contabilizado, acrescentaria 13% ao PIB brasileiro. Nesse trabalho, 65% realizado por mulheres, há variações regionais, com diferentes níveis de discriminação.

  1. Introdução

Este estudo, que faz parte de um esforço de 20 anos de mensuração dos trabalhos da reprodução da vida e da discriminação das mulheres, procurou atualizar os resultados de trabalho anterior realizado por Melo, Considera e Di Sabbato (2010)[1]. Buscou-se aplicar a mesma metodologia para os anos mais recentes, 2016-2022. Assim, como no artigo supracitado, esta atualização tem o objetivo de dar maior visibilidade aos afazeres domésticos e aos cuidados que são essenciais para a vida na sociedade, mas que, por não serem remunerados, são considerados como “feitos por amor”, sem que a sociedade confira valor a esse trabalho.

  1. Metodologia

Como no artigo mencionado, utilizou-se o rendimento médio das trabalhadoras domésticas como uma proxy para valorar o trabalho de cuidados e afazeres domésticos realizados no interior das famílias. As horas dedicadas a essas tarefas são coletadas pela PNADC/IBGE na 5ª Visita. Nela, é perguntado –“quanto tempo os moradores do domicílio (homens e mulheres) dedicaram a afazeres domésticos e a cuidados de menos capacitados, naquela semana de referência”. Essa informação foi coletada pela PNADC para os anos de 2016 a 2019 e 2022, os únicos anos que têm esses dados.

Para se obter o valor monetário desses afazeres – não remunerados – multiplicou-se a quantidade de horas dedicadas a esses trabalhos em cada Unidade da Federação pelo valor médio da hora trabalhada pelas empregadas domésticas de cada Unidade da Federação.

Cabe destacar que, nos anos anteriores a 2011, a pergunta se referia somente ao trabalho de afazeres domésticos (que abrangia os trabalhos de cuidados com as pessoas). A partir da difusão na literatura socioeconômica latino-americana do termo “cuidados” na segunda década deste século, o novo questionário da PNADC, a partir de 2016, separou os afazeres em geral, dos cuidados, geralmente com bebês ou idosos ou doentes. Outra ressalva a ser feita é que a PNAD considerava pessoas acima de 10 anos e a PNADC de 2022 considera pessoas acima de 14 anos.

  1. Resultados

Aplicando-se essa metodologia e ignorando-se a segunda ressalva, tem-se como resultado o quanto esse trabalho não-remunerado acrescentaria ao PIB ao longo desses anos. O Gráfico 1 abaixo apresenta a evolução desse acréscimo desde 2001. Inicia-se com média de 11,4% até 2011 e chega-se a uma média superior a 13% após 2016, valor equivalente ao PIB do estado do Rio de Janeiro. Pela pesquisa domiciliar, as mulheres contribuiriam com mais de 65% desse acréscimo. Um dos principais motivos para esse aumento foi a valorização do salário das empregadas domésticas ao longo dos anos, essencialmente devido a PEC das domésticas em 2013.[2]

Fonte: Elaboração dos autores, a partir dos dados da PNADC e SCN (2016-2022).

A Tabela 1 mostra esse acréscimo aos seus PIBs por região. Todas as regiões tiveram aumentadas suas contribuições de afazeres domésticos ao seus PIBs. O Nordeste é a região com maior contribuição do trabalho não-remunerado ao seu PIB. A região Centro-Oeste tem a menor contribuição, provavelmente devido à sua menor urbanização.

É possível observar na Tabela 2, a partir da PNADC (2016-2022), que as mulheres dedicam quase o dobro de horas (1,94 vez) às tarefas de afazeres domésticos e cuidados do que os homens. Nesse sentido, são elas as mais prejudicadas pela invisibilidade desse trabalho pela sociedade. Observa-se que, na região Nordeste, o tempo dedicado aos afazeres domésticos pelas mulheres é mais do que o dobro (2,04 vezes) do que o dos homens e que, na região Sul, essa diferença é bem menor (1,76 vez).

Essa enorme diferença entre eles e elas é resultado de uma construção social histórica que destina as mulheres ao lar e os homens aos espaços públicos. Com o passar do tempo as mulheres foram ganhando espaço no mercado de trabalho, mas os encargos do lar continuam quase que exclusivamente delas. As consequências da sobrecarga, resultante da dupla jornada de trabalho, se mostram cada vez mais evidentes atualmente e transbordam para diferentes aspectos da vida da mulher.

Um exemplo é que o excesso de trabalho no lar acaba as impedindo de alcançar melhores posições no mercado de trabalho, visto que essas posições geralmente demandam disponibilidade integral, o que não é a realidade da maioria das mulheres. Por outro lado, os homens conseguem se ajustar a essas posições justamente porque têm uma mulher em casa que vai arcar com esse trabalho imprescindível, mas não remunerado. Nesse sentido, são elas as mais prejudicadas pela invisibilidade e não reconhecimento desse trabalho pela sociedade.

Cabe destacar que, apesar de o tempo médio dedicado aos afazeres domésticos e cuidados por homens e mulheres ter se mantido relativamente estável nos últimos 20, foi possível observar um pequeno salto dessa contribuição a partir de 2011 (Gráfico 1). Um dos principais motivos para o aumento dessa contribuição foi a valorização do salário das empregadas domésticas ao longo dos anos, e especialmente devido à PEC das domésticas em 2013.[4] No entanto, cabe destacar que essa categoria vem vivenciando constantes perdas salariais reais, devido a praticamente uma estagnação do valor de sua hora trabalhada ao longo dos anos. Essa situação se mostra ainda mais dramática no caso das trabalhadoras domésticas do Nordeste, cujo valor da hora trabalhada se reduziu entre 2016 e 2022, como pode ser observado pela Tabela 3.

  1. A Discriminação dos rendimentos e da educação entre homens e mulheres

Cabe notar também que não só a categoria de trabalhadoras domésticas vem perdendo poder de compra na região Nordeste. Quando analisados os rendimentos médios mensais de todos os ocupados nessa região, também foi possível verificar perda no poder de compra entre 2016 e 2022, tanto para homens como para mulheres (Tabelas 4 e 5). Nas Tabelas 4 e 5, nota-se que o rendimento médio pós-pandemia não retornou a seu valor de antes da Covid-19, à exceção das regiões Norte e Centro-Oeste.

Somado a isso, além de apresentarem menor valor por hora trabalhada na posição de trabalhadoras domésticas, as mulheres na região Nordeste também apresentam o pior salário da economia. Em todos os cinco anos apresentados na Tabela 4, seus rendimentos médios são inferiores ao rendimento médio das demais regiões. Essa dinâmica, que conjuga baixos salários com elevada carga de tempo dedicada às tarefas do lar, se mostra especialmente prejudicial às mulheres nordestinas, visto que são as que dedicam mais tempo e recebem os menores salários.

Essa discriminação tem uma lógica perversa. As mulheres são destinadas a realizarem os afazeres domésticos e isso implica não estarem totalmente disponíveis para o trabalho fora de casa, com a mesma possibilidade dos homens, e, por isso, elas recebem menores rendimentos pecuniários. Na tabela 6 abaixo, usando as tabelas 4 e 5 acima, vê-se que, de forma geral, os rendimentos dos homens é 28,4% superior ao das mulheres. Nas três regiões mais ricas – Sudeste, Sul e Centro-Oeste –, em média, é cerca de 34% superior no período de 2016 a 2022. Nas duas regiões mais pobres do país, Norte e Nordeste essa diferença é cerca de 15%, menos d a metade da diferença nas regiões mais ricas.

Algumas hipóteses a respeito dessa diferença entre as regiões podem ser mencionadas. A primeira é que as regiões Norte e Nordeste, por terem salários rebaixados tanto para homens como para mulheres, apresentam uma baixa base de comparação entre eles e elas, de modo que a diferença salarial entre ambos é menor nessas regiões. No entanto, é importante destacar que, apesar de o gap salarial ser reduzido, isso não implica que há maior igualdade de gênero nessas regiões, mas sim que ambos os gêneros apresentam deterioração em seus rendimentos em comparação à média brasileira.

Outra hipótese que pode ser levada em consideração, e reforça a explicação anterior, é o nível de formalidade e informalidade nas regiões. De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais publicados pelo IBGE[5] para o ano de 2022, as regiões Norte e Nordeste continuam a se destacar na proporção de informais em suas economias, respectivamente de 58,6% e 55,9%. Na região Norte, os homens correspondem a 60% dos informais e as mulheres, a 56,3%; enquanto na região Nordeste, eles representam 56,7% dos informais, e elas, 54,7%.

Adicionalmente, esse estudo aponta que a relação entre o nível de instrução e de participação em ocupações informais é inversa, de modo que, quanto maior a instrução da população, maior sua participação em ocupações formais. As Tabelas 7 e 8 abaixo mostram que justamente as regiões Norte e Nordeste possuem menores níveis de instrução, tanto para homens como para mulheres, em comparação com a média brasileira.

Outro ponto que merece destaque é a relação entre o nível de instrução e o número de horas dedicadas aos afazeres domésticos e cuidados por região. Como já foi observado na tabela 2, são as mulheres da região Nordeste que mais dedicam tempo ao trabalho não remunerado. A partir da Tabela 8, é possível perceber que, não só na região Nordeste, mas em todas as regiões brasileiras, à medida que aumenta o nível de instrução (comparando as duas pontas – sem instrução com superior completo), menos tempo as mulheres dedicam as tarefas do lar e de cuidados. Uma hipótese é que o aumento no nível de instrução também leva a um aumento nos salários, que permite a essas mulheres terceirizar para empregadas domésticas uma parte dessas tarefas.

Por fim, cabe ressaltar a invariabilidade apresentada na Tabela 7 quanto ao tempo de dedicação ao trabalho não remunerado com relação ao nível de instrução para os homens. A tabela mostra que o grau de instrução dos homens pouco explica a quantidade de horas dedicadas por eles nessas tarefas, mantendo uma média geral de 11 horas, que independe de região ou escolaridade. Esses dados reforçam a hipótese de que pode haver uma superestimação no tempo atribuído aos homens de dedicação a essas tarefas, visto que o tempo dedicado ao trabalho não remunerado permanece em média igual ao longo dos anos, e não se altera mesmo conjugado com as mais diversas variáveis.

  1. Conclusão

Esse trabalho verificou que os afazeres domésticos e cuidados, caso fossem valorados, contribuiriam, entre 2001 e 2022, para um aumento do PIB de em média 12%. Somado a isso, esse estudo também demonstrou as enormes diferenças regionais no país, tanto por montante de rendimentos como por graus de instrução, além das diferenças no tempo dedicado ao trabalho não remunerado. Foi observado, para o período de 2016-2022, que as mulheres dedicaram em média 21,3 horas por semana a esses trabalhos, enquanto eles dedicaram somente 11,1. Esses resultados reforçam que a entrada das mulheres no mercado de trabalho ao longo dos últimos anos não foi acompanhada por maior inserção dos homens nas tarefas do lar, levando-as a acumularem cada vez mais sobrecarga de trabalho.

O trabalho de afazeres domésticos e cuidados é essencial para que a sociedade consiga funcionar nos moldes atuais. Pois só é possível que o homem esteja totalmente disponível para o mercado de trabalho porque há quem cuide da sua casa e sua família. Para famílias com maior poder aquisitivo, esse trabalho pode ser terceirizado para empregadas domésticas que realizam essas tarefas. Por outro lado, para maioria da população, essas tarefas são realizadas majoritariamente pelas mulheres, de forma gratuita, que, por sua vez, sofrem as consequências desse destino: se encontram em ocupações mais flexíveis que lhes permitam conciliar o trabalho remunerado e não remunerado, que por sua vez têm menores remunerações; são vistas como trabalhadoras de segunda categoria em comparação aos homens por entenderem que seus salários não são o principal sustento da família, sendo comumente as primeiras a serem demitidas em crises; possuem dificuldade em permanecer no mercado de trabalho por longos períodos de tempo devido à alta carga de afazeres domésticos e cuidados que tem que realizar em seus lares; em consequência disso são menos escolhidas para ocupações que demandem longos treinamentos que, usualmente ofertam maiores remunerações; entre outras desvantagens.

[1]“Os 10 anos dos afazeres domésticos” , texto para discussão, FEA/UFF, que foi precedido do artigo “ Os afazeres domésticos contam!” Publicado na Revista Economia e Sociedade, V.16, no,3 (31), pp 435-454, dez/2007.

[3] Os valores correntes das regiões foram estimados utilizando o Índice de Atividade Econômica Regional, divulgado mensalmente pelo Banco Central, e o IPCA.

 

Por Isabela Duarte Kelly, Claudio Considera, Hildete Pereira de Melo – BLOG DO IBRE . 04/10/2023

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