Racismo e iniquidade racial na autoavaliação de saúde ruim: o papel da mobilidade social intergeracional

Foto da home: Senado Federal

Pretos e pardos apresentam grandes desvantagens de saúde, possuem menores chances de ascensão na hierarquia social no curso de vida e menores níveis socioeconômicos do que brancos como resultado do racismo estrutural. Entretanto, pouco se sabe sobre o papel mediador da mobilidade intergeracional na associação entre racismo e saúde. Um estudo, com participação da ENSP, investigou a associação entre racismo e a autoavaliação de saúde, e verificou em que medida essa mobilidade media essa associação. Dados de 14.386 participantes do Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (ELSA-Brasil) serviram para a pesquisa. A prevalência de autoavaliação de saúde ruim foi de 15%, 24% e 28% entre brancos, pardos e pretos, respectivamente.

O artigo referido é Racismo e iniquidade racial na autoavaliação de saúde ruim: o papel da mobilidade social intergeracional no Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (ELSA-Brasil), de Dóra Chor, da ENSP/Fiocruz; Lidyane V. Camelo,  Carolina Gomes Coelho, Luana Giatti e Sandhi Maria Barreto , da UFMG;  e Rosane Harter Griep, Maria da Conceição Chagas de Almeida, também da Fiocruz.

Elas afirmam que as desigualdades raciais em saúde no Brasil são profundas e diversos estudos apontam que pretos e pardos apresentam grandes desvantagens em relação aos brancos em diferentes desfechos relacionados à saúde como mortalidade infantil, razão de mortalidade materna, doenças infecciosas, doenças crônicas e comportamentos de risco à saúde. Dessa forma, pretos e pardos no Brasil apresentam maior mortalidade por praticamente todas as causas quando comparado aos brancos e, consequentemente, menor expectativa de vida e pior autoavaliação de saúde. Essas desigualdades são absolutamente desnecessárias, evitáveis e injustas e, portanto, devem ser interpretadas como iniquidades.

Para as autoras, a iniquidade racial em saúde pode ser em grande parte explicada pelo racismo estrutural, que se refere à totalidade de maneiras pelas quais as sociedades promovem a manutenção de hierarquias raciais e o domínio dos brancos através das gerações. Essas práticas discriminatórias da sociedade geram, entre outras coisas, grandes iniquidades de oportunidades, diminuindo as chances de pretos e pardos alcançarem os mesmos níveis de escolaridade, de renda, de emprego e moradia observada entre os brancos. Ressalta-se que esse processo acontece ao longo de todo o curso de vida, iniciando antes mesmo do nascimento, e impacta em toda a trajetória social dos indivíduos. Consequentemente, as probabilidades de pardos e pretos ascenderem na hierarquia social são muito menores do que a observada entre os brancos conforme vem sendo repetidamente demonstrado em estudos empíricos, que analisaram a mobilidade social na população brasileira segundo raça/cor da pele.

No contexto brasileiro, vários estudos evidenciaram que trajetórias sociais desfavoráveis entre gerações estão associadas a piores desfechos de saúde como hipertensão arterial, risco cardiovascular , diabetes e aterosclerose subclínica, segundo o artigo. Sabe-se também que a discriminação interpessoal parece interagir com a mobilidade social intergeracional para produzir piores desfechos de saúde, já que estudo prévio encontrou que a associação entre mobilidade social descendente e a hipertensão arterial é maior entre pretos e pardos que relataram discriminação em relação aos que não relataram.

No Brasil, acrescenta o estudo,  além das oportunidades de mobilidade social ascendente entre pretos e pardos serem menores do que as observadas entre brancos, pretos e pardos têm mais dificuldades para manter as posições sociais conquistadas, já que esse grupo tem menos chances de permanecerem no topo da hierarquia de classes e mais chances de mobilidade social descendente.

Entretanto, até o final dos anos 1970, acreditava-se que essas diferenças eram apenas explicadas pela superrepresentação dos brancos em posições socioeconômicas de origem mais altas, e dos pretos e pardos nas mais baixas, de acordo com o artigo. Por isso, diversos autores acreditavam que a iniquidade racial na mobilidade social iria desaparecer à medida que os pretos e pardos fossem conquistando a mesma posição social alcançada pelos brancos. Entretanto, sabemos hoje que pretos e pardos no Brasil, mesmo quando apresentam a mesma posição socioeconômica de origem dos brancos, apresentam mais dificuldade para ascender na hierarquia social. Adicionalmente, existem importantes iniquidades raciais na conversão da educação adquirida em posições da hierarquia ocupacional, já que independentemente do nível educacional atingido por pretos e pardos, esse grupo tende a se concentrar mais nos estratos ocupacionais inferiores do que os brancos de mesmo nível.

Para investigar se a mobilidade social intergeracional explica pelo menos parcialmente as iniquidades raciais em saúde é importante a utilização de um desfecho de saúde abrangente e robusto como a autoavaliação de saúde, dizem as autoras. Esse indicador é uma medida sumária e multidimensional do estado de saúde, capaz de predizer eventos graves como a mortalidade, muitas vezes excedendo o poder preditivo de indicadores objetivos do estado de saúde. Adicionalmente, iniquidades encontradas neste indicador tendem a refletir não apenas diferenciais de saúde – objetivos atuais (p.ex.: diagnósticos médicos, exames clínicos/laboratoriais, funcionalidade, sinais e sintomas de doenças e fatores de risco) –, mas também iniquidades nas experiências passadas de saúde, nas expectativas com relação à saúde futura e na exposição a estressores psicossociais, entre outros.

Dos 14.386 participantes do estudo incluídos na análise descritiva, a maioria era do sexo feminino (55%) e reportou raça/cor da pele branca (54%). Apesar da maioria dos participantes terem mães com nenhuma escolaridade ou com Ensino Fundamental incompleto (57%) e terem chefes de família de classe sócio-ocupacional baixa na idade em que começaram a trabalhar (50%), a maior parte dos participantes apresentou Ensino Superior completo (52,4%) e a classe sócio-ocupacional alta foi a mais frequente (33,1%), indicando mobilidade social intergeracional frequente. A baixa escolaridade materna assim como a baixa classe sócio-ocupacional do chefe de família quando o participante começou a trabalhar foi mais frequente entre pretos e pardos do que entre brancos. Desvantagem semelhante para pardos e pretos com relação aos brancos também pode ser observada com relação à escolaridade e classe sócio-ocupacional atual.

A prevalência de autoavaliação de saúde ruim entre os participantes do ELSA-Brasil foi de 19,7%. Entretanto, essa prevalência variou muito segundo raça/cor da pele e enquanto apenas 15% dos brancos avaliam sua saúde como ruim, entre pardos essa prevalência foi de 24% e entre os pretos de 28%.

Foi possível observar grande iniquidade racial na mobilidade social intergeracional tanto na perspectiva educacional como na sócio-ocupacional. A proporção com imobilidade no topo da hierarquia social foi mais frequente entre os brancos do que entre os pardos e pretos, enquanto a imobilidade na base da hierarquia foi mais frequente entre pretos e pardos do que entre brancos. Observa-se ainda que os pardos apresentaram desvantagens em relação aos brancos e vantagens em relação aos pretos. Na mobilidade educacional, percebemos também que a mobilidade ascendente foi maior entre brancos (24,3%), do que entre pardos (20,2%) e pretos (16,5%) e o inverso foi observado para a mobilidade descendente com maiores frequências entre pretos (15,7%) e pardos (14,3%) do que entre brancos (9,7%). As diferenças raciais na mobilidade sócio-ocupacional descendente e ascendente foram pequenas.

A mobilidade educacional intergeracional mediou 66% da associação entre raça/cor da pele preta e autoavaliação de saúde ruim e 61% da associação entre raça/cor da pele parda e autoavaliação de saúde ruim. Já a mobilidade sócio-ocupacional intergeracional mediou 53% da associação entre a raça/cor da pele e autoavaliação de saúde ruim entre pretos e 51% entre os pardos.

Os resultados do presente estudo sugerem que promover a mobilidade social ascendente entre pretos e pardos pode atenuar as iniquidades raciais em saúde entre pretos e pardos. Entretanto, esse aumento da mobilidade ascendente pode ter um efeito aquém do esperado se não houver uma redução simultânea do racismo estrutural que é profundamente enraizado na sociedade brasileira e que se estende por diversas instituições, além de estar fortemente presente na nossa cultura. Por exemplo, diversos estudos apontam que a mobilidade social ascendente e a alta posição socioeconômica atual entre pretos e outras minorias raciais exercem um efeito menos protetor para a saúde do que o observado entre os brancos. Isso pode ocorrer devido ao estresse gerado pela discriminação racial, pois, como mencionado anteriormente, a frequência de discriminação racial é maior entre pretos de alta posição socioeconômica.

Adicionalmente, continuam as autoras, o racismo estrutural interfere na alocação dos indivíduos no mercado de trabalho, bem como no acesso à moradia, à escolaridade de qualidade e a diversos bens e serviços. Ou seja, mesmo que os indivíduos pardos e pretos alcancem a mesma escolaridade observada em brancos, pretos e pardos ainda tendem a possuir ocupações e cargos de menor prestígio e menores níveis de renda do que brancos. Consequentemente, apesar da escolaridade ser um dos principais impulsionadores da mobilidade social e dos avanços expressivos no acesso de pretos e pardos ao Ensino Superior no Brasil desde 2002, como reflexo das políticas de ação afirmativa na Educação Superior, isso é insuficiente para promover equidade racial, pois brancos são muito mais eficientes em converter a experiência e escolaridade em retornos monetários devido aos privilégios acumulados ao longo da vida.

Dessa forma, de acordo com o artigo, as políticas de ações afirmativas precisam ser acompanhadas por políticas intersetoriais que tenham ação de forma contínua nos diferentes mecanismos em que o racismo opera, permitindo reduções de diversas injustiças econômicas e sociais que levam à marginalização de pretos e pardos para escolas, empregos e locais de moradia de menor qualidade, exposição desproporcional a riscos ocupacionais, salários reduzidos, menores taxas de promoção, encarceramento em massa, violência policial e assistência à saúde desigual, entre outros. O enfrentamento do racismo, portanto, requer uma transformação e desmantelamento das políticas e de diversas instituições que sustentam a hierarquia racial no Brasil. Para isso, é importante aumentar a representação negra em espaços de atuação política, de forma a contribuir para a mudança tão necessária nos valores historicamente construídos na sociedade, que impõe ideias de inferioridade negra e superioridade branca, impactando na vida e na saúde de pretos e pardos entre gerações.

Uma parte importante da iniquidade racial na autoavaliação de saúde ruim no estudo não foi mediada pela mobilidade social intergeracional. Ressalta-se que, pretos e pardos, além de possuí rem menor acesso a recursos educacionais, econômicos, ocupacionais e, consequentemente, menor mobilidade social, também possuem menor acesso a moradia de qualidade, vivem em vizinhanças mais economicamente segregadas, possuem menor capital social e político, menor acesso aos serviços de saúde, são mais expostos a trabalhos desgastantes e são mais expostos ao estresse psicossocial devido à exposição e à discriminação racial. Todas essas exposições restringem as opções de vida e trabalho em ambientes saudáveis, estão associadas à maior adesão a comportamentos de risco e aumentam as adaptações fisiológicas nos sistemas nervoso, endócrino e imunológico, desencadeando inúmeras alterações metabólicas que aumentam o risco de adoecimento e morte.

Este estudo apresenta limitações que precisam ser consideradas. A coorte do ELSA-Brasil é formada por servidores públicos de instituições de ensino e pesquisa brasileiras que possuem renda e escolaridade média superior à encontrada na população brasileira e, por isso, nossas medidas de prevalências não são representativas da população geral. Possivelmente, a não inclusão de indivíduos muito pobres e desempregados na coorte, explica a menor prevalência de autoavaliação de saúde ruim no ELSA-Brasil em comparação a observada na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2013 (19,7% versus 33,9%, respectivamente. Ressalta-se também a população no extremo alto da hierarquia social brasileira também é sub-representada na população do ELSA-Brasil. Ao excluir os indivíduos que ocupam os extremos da hierarquia social, é possível que tenhamos reduzido a heterogeneidade nas variáveis de mobilidade social. Assim, é possível que o efeito mediador da mobilidade social na relação entre a raça/cor da pele e autoavaliação de saúde ruim no Brasil possa ser maior do que a apontada no presente estudo. Entretanto, cabe ressaltar que a iniquidade racial na autoavaliação de saúde no ELSA-Brasil foi maior do que a observada na PNS: enquanto no ELSA-Brasil 15% dos brancos, 24% pardos e 28% dos pretos avaliam sua saúde como ruim, na PNS esses percentuais foram de 30%, 38%, 38% para brancos, pardos e pretos, respectivamente.

Por fim, ressalta o artigo que, apesar do pequeno percentual de dados faltantes para mobilidade educacional (2,3%), essas perdas foram diferenciais com relação à variável explicativa e ao desfecho, sugerindo que as associações encontradas podem ter sido subestimadas. Por outro lado, apesar da perda de informação para mobilidade ocupacional ter sido quase três vezes maior (6,4%), ela não se relacionou à autoavaliação de saúde, sugerindo menor impacto sobre as associações encontradas.

Para acessar o artigo na íntegra, publicado em Cadernos de Saúde Pública, clique aqui.

FonteArtigo CSP

Por Informe ENSP . 13/01/2022

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