A hanseníase é uma Doença Tropical Negligenciada (DTN), cuja eliminação está no horizonte da Organização Mundial da Saúde (OMS) para os próximos 10 anos. No Brasil, no entanto, a doença persiste como problema de saúde pública. Dos cerca de 200 mil novos casos reportados anualmente, em torno de 14% vêm do Brasil, colocando o País atrás apenas da Índia. Causada pelo bacilo Mycobacterium leprae, a doença afeta principalmente nervos periféricos, olhos e pele. Quando não tratada, pode causar danos irreversíveis: a OMS estima que, no mundo, de 3 a 4 milhões de pessoas vivam com incapacidades físicas visíveis devido à hanseníase.
O combate à hanseníase integra o Objetivo 3 de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU), que vincula a promoção de bem estar e vida saudável ao combate, até 2030, de DTNs. Na estratégica global de combate elaborada pela OMS, intitulada “Rumo a zero hanseníase”, um dos aspectos centrais é a detecção ativa e precoce de novos casos, para interrupção da cadeia de transmissão (pelo contato próximo e prolongado com pacientes não tratados), especialmente em locais endêmicos, associados às piores condições socioeconômicas. O diagnóstico precoce também é importante para que o tratamento comece o mais rapidamente possível e, assim, sejam evitados danos permanentes às pessoas acometidas.
No entanto, hoje, o diagnóstico ainda é sobretudo clínico, ou seja, apenas após o aparecimento dos sintomas, o que pode demorar anos desde a infecção, ao longo dos quais a pessoa é um reservatório do bacilo e, assim, agente potencialmente transmissor. Os exames complementares disponíveis – principalmente a biópsia – são caros, invasivos e dependem de instalações e pessoal treinado. O desenvolvimento de testes diagnósticos para uso na comunidade ou no local do primeiro atendimento é, inclusive, um dos grandes desafios elencados entre as prioridades de pesquisa na estratégia de OMS.
Uma parceria entre a UFSCar e a Universidade Federal do Paraná (UFPR) pode mudar essa realidade. As instituições acabam de patentear um teste portátil, barato, pouco invasivo e muito sensível. “Não existe nenhum teste no mercado que permita a identificação sorológica desses pacientes. O que tivemos até hoje foram as pesquisas, e a questão da sensibilidade era o principal desafio”, conta Juliana Ferreira de Moura, docente do Departamento de Patologia Básica da UFPR que, junto com Ronaldo Censi Faria, docente do Departamento de Química da UFSCar, orienta os trabalhos que resultaram no teste patenteado. Além deles, são titulares da patente Cristiane Zocatelli Ribeiro e Sthéfane Valle de Almeida, estudantes de doutorado orientadas, respectivamente, por Moura e Faria.
“Nós precisávamos de um método que permitisse, por exemplo, o mapeamento dos casos em comunidades em que a hanseníase é endêmica, como em alguns estados do Centro-Oeste e do Norte do Brasil. A tecnologia desenvolvida pode ajudar muito, quando consideramos que é uma doença tratável e que, assim que o paciente começa a tomar a medicação, ele para de transmitir o bacilo”, situa Moura. “Quando as pessoas com hanseníase procuram atendimento, é muito comum que o comprometimento já seja grande. Em 2019, por exemplo, 10% dos novos casos no Brasil, cerca de duas mil pessoas, já tinha o chamado comprometimento de grau dois, com perda de acuidade visual e dificuldade, por exemplo, de segurar um copo. Por isso também a relevância do diagnóstico precoce”, complementa a docente da UFPR.
A pesquisadora busca alvos para uso no diagnóstico de diferentes doenças e, há cerca de 10 anos, tinha a hanseníase entre os focos do seu trabalho. A partir de uma proteína específica do M. leprae já bastante conhecida, os estudos identificaram o peptídeo – pequeno pedaço da proteína – contra o qual há formação de anticorpos quando a pessoa entra em contato com o bacilo. “Esse peptídeo pode ser sintetizado e usado como ‘isca’ para os anticorpos. A especificidade da ligação entre essas duas moléculas, peptídeo e anticorpo, permite que o anticorpo seja detectado no soro dos pacientes e, assim, identificado o contato com o bacilo”, explica a docente da UFPR.
Após a identificação do peptídeo, ainda faltava uma plataforma para testes mais sensíveis, capazes, por exemplo, de detectar a infecção já no seu início. “Nós temos contato com o grupo do Instituto Senai de Eletroquímica em Curitiba, formado em grande medida por ex-alunos do Ronaldo, e foi assim que conheci o trabalho que ele desenvolve com os sensores eletroquímicos”, relata Moura.
O teste vem se somar a uma série de outros dispositivos desenvolvidos pelo grupo de Faria no Laboratório de Bioanalítica e Eletroquímica, como os dispositivos para diagnóstico precoce de Alzheimer, alguns tipos de câncer e, mais recentemente, também Covid-19. Essas plataformas, dentre outras características, funcionam justamente a partir desse mecanismo chave-fechadura entre duas moléculas – no caso, peptídeo e anticorpo – que, quando se ligam, emitem sinal eletroquímico que pode ser lido nos dispositivos desenvolvidos. No teste para diagnóstico da hanseníase, quanto mais bacilos presentes no paciente, mais anticorpos ele desenvolve e, quanto mais anticorpos, maior o sinal eletroquímico medido, o que leva a um outro diferencial importante da tecnologia.
Os pacientes com hanseníase são divididos em dois grupos, pauci e multibacilares. Pacientes paucibaciliares têm poucos bacilos, o que é positivo para o tratamento – cujo protocolo é de seis meses de medicação, frente a um ano para multibacilares -, mas dificulta o diagnóstico sorológico, pois também é baixo o número de anticorpos. “O principal diferencial do teste que desenvolvemos é justamente a possibilidade de detecção de anticorpos em pacientes paucibacilares. Além disso, a técnica consegue diferenciar pauci e multibacilares, o que pode ajudar na orientação do tratamento”, registra Almeida. “Além dessas vantagens, junto ao baixo custo e à portabilidade, a técnica empregada exige menos reagentes e, assim, também menos material coletado, no caso, o sangue do paciente para a extração do soro”, complementa Faria.
Agora, falta apenas um passo para que os testes estejam disponíveis e, assim, fazendo a diferença na vida de milhares de pessoas ao redor do mundo. A patente – bem como outras do grupo, inclusive a de Covid-19 – aguarda empresas interessadas na produção em larga escala. O contato pode ser feito com a Agência de Inovação da UFSCar, pelo e-mail inovacao@ufscar.br, ou diretamente com os pesquisadores, pelo e-mail rcfaria@ufscar.br.
Os estudos e esforços de pesquisa que resultaram no teste contaram com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Por Mariana Pezzo – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) . 09/09/2021
Entrevista com:
Seja o primeiro a comentar