Como os médicos ingleses que atuam na clínica médica lidam com a redução das desigualdades sociais em saúde?

A prática da clínica médica deve proporcionar, idealmente, um impacto positivo sobre a redução das desigualdades da saúde. Essa redução deve ocorrer em vários níveis, incluindo cuidados clínicos individuais e o engajamento comunitário. Na Inglaterra, apesar da longa caminhada teórica em prol da redução das iniquidades em saúde, permanece ainda certa “tensão” na prática no que diz respeito ao envolvimento dos médicos generalistas. Isso é particularmente relevante em relação ao tipo de abordagem para lidar com as desigualdades sociais da saúde, tais como a discussão entre a abordagem individual (cuidados em saúde em nível dos indivíduos) versus a abordagem populacional.

Os políticos defendem o envolvimento comunitário para enfrentar os determinantes sociais mais amplos da saúde, mas talvez isso seja algo que a maioria dos clínicos gerais ingleses (General Practioners/GPs) não esteja motivada a fazer ou compreenda a sua potencialidade. Além disso, na Inglaterra, a distribuição de clínicos gerais não segue um padrão que compense as desigualdades sociais, ou seja, áreas onde há maior privação social geralmente dispõem de menos clínicos atuando. Situação que se agrava por conta da pouca utilização de dados demográficos (Ex. distribuição etária e presença de minorias étnicas) e ambientais (Ex. taxa de desemprego, transporte) (disponíveis eletronicamente) relacionados às desigualdades sociais da saúde no planejamento das suas atividades diárias. Consequentemente, a resolução ativa de problemas e/ou oportunidades de solução, condições fundamentais para a boa prática clínica, está nas mãos de um grupo reduzido de clínicos.

Patrick Hutt, professor adjunto do Departamento de Atenção Básica e Saúde da População da University College London (UCL), e Stuart Gilmour, analista de dados, relataram a sua percepção sobre como as desigualdades são combatidas na prática da clínica médica (medicina geral) na Inglaterra em trabalho publicado pela The King’s Fund. Os autores afirmam que mesmo com todos os documentos desenvolvidos por experts em saúde pública e acúmulo de fortes evidências científicas, ainda é possível ver alguma dualidade no sistema de saúde público inglês. Por exemplo, enquanto a ‘revisão Marmot defende que o combate das desigualdades deve ocorrer em todos os níveis sociais, outras propostas de ação feitas por órgãos da Inglaterra têm recomendado intervenções nos grupos de pacientes de maior risco, como nos portadores de doenças cardiovasculares.

Segundo a publicação de Hutt e Gilmour, o documento conhecido como ‘White Paper, sobre equidade e excelência no serviço de saúde trouxe, desde 2010, uma dos maiores mudanças para o sistema de saúde público britânico (National Health Service/NHS), principalmente na prática geral do combate às desigualdades na saúde. No entanto, vê-se que na prática o clínico geral é capaz de identificar e gerenciar de forma eficaz, p.ex., uma criança com asma, mas apesar do correto diagnóstico, não investiga fatores externos ou ambientais, tais como a que grupo social ela pertence, se possui um determinado comportamento em comum a de outras crianças, ou se mora em determinada área ou em que condições vive. Apesar de terem ao seu dispor diversos dados (de qualidade) que poderiam auxiliá-los na caracterização de casos, investigação e vigilância das desigualdades sociais na prática da medicina geral, os clínicos não os utilizam na ‘vida real’. O monitoramento das desigualdades em saúde nesse nível poderia melhorar o destino dos investimentos em saúde (relação custo-efetividade), além da possibilidade de reestruturação e/ou reconfiguração de diferentes serviços (Ex. moradia, transporte) quando necessários.

Outra questão relevante é a forma como os clínicos gerais são remunerados pelo seu trabalho na Inglaterra. Em 2004 houve uma mudança radical no sistema de pagamento, e foi introduzido um Quadro de Qualidade e Resultados (Quality and Outcomes Framework – QOF), que consiste em determinado escore que os clínicos devem atingir em relação aos seus pacientes. Parte de seus rendimentos é proporcional a sua capacidade de atingir certas metas relacionadas com a doença ou de acordo com sua capacidade administrativa e de organização da população cadastrada sob sua responsabilidade. Anteriormente, o pagamento era feito por paciente registrado, com certas recompensas para algum trabalho adicional, mas o pagamento não era tão intimamente relacionado ao trabalho clínico realizado. Parte da filosofia desse novo quadro (QOF) é tentar reduzir as variações da prática clínica, diminuindo assim as desigualdades na prestação de cuidados de saúde.

Após a implementação desse Quadro de Qualidade e Resultados (QOF), as áreas mais afluentes foram mais beneficiadas, seguindo a hipótese de equidade inversa para intervenções de saúde pública, onde novas intervenções em saúde tendem a ser adotadas inicialmente por aqueles que menos necessitam delas (Victora et al 2000). Após os três primeiros anos de implementação do QOF, esta lacuna diminuiu significativamente e o gradiente socioeconômico não ficou tão aparente. De qualquer forma, as práticas de saúde em áreas carentes, onde a carga da doença é maior, devem ser mais trabalhadas para que se consiga um score de QOF semelhante a das áreas com melhores condições socioeconômicas.

Patrick Hutt, que também atua como clínico geral em Somers Town, Camden (distrito de Londres), afirma que concentrar ações unicamente nos mais desfavorecidos não vai reduzir suficientemente as desigualdades sociais da saúde. As ações universais devem ser em escala e intensidade proporcional ao nível de desvantagem, o que é conhecido como “universalismo proporcional”. Conforme já preconizado por Geoffrey Rose em 1992, as ações para redução das desigualdades da saúde devem ocorrer em todo o gradiente social, bem como deve ser considerando as necessidades de saúde dos mais vulneráveis??. No entanto, Hutt afirma que a continuidade dos cuidados tem sido identificada como um componente-chave na qualidade dos sistemas de saúde primários, mostrando-se ser eficaz na redução das desigualdades sociais em saúde.

O Programa de Saúde da Família no Brasil (hoje chamado de estratégia de saúde da família/ESF) tem grande potencial para superar problemas semelhantes aos que ocorrem na Inglaterra, principalmente uma maior inserção da equipe médica na vida comunitária. Apesar de a nossa ESF ainda apresentar diversas tensões, principalmente na conjugação da real medicina comunitária aos cuidados primários em saúde, rever a forma com que o cuidado em saúde é produzido é fundamental. A aquisição de uma dimensão mais global e ecológica da assistência, articulada à atenção integral à saúde, é primordial para redução das iniquidades sociais em saúde.

O papel do clínico na prática da medicina e no combate às desigualdades na saúde é, sem dúvida, algo desafiador. Além de ser um trabalho que deve ser desempenhado em parceria com as autoridades locais, requer que o profissional cumpra uma agenda que exige adaptação, capacitação e uma combinação de competências apropriadas. Sejam na Inglaterra ou no Brasil, as desigualdades sociais da saúde devem continuar a ser uma prioridade-chave para a prática geral da medicina, complementando a abordagem intersetorial do governo para o problema.

*Imagem: Fotolia (banco de imagens).

Referências Bibliográficas

Hutt P, Gilmour S. Tackling inequalities in general practice. An Inquiry into the Quality of General Practice in England. The King’s Fund; 2010. [acesso em 15 maio 2014]. Disponível em: http://www.kingsfund.org.uk/sites/files/kf/field/field_document/health-inequalities-general-practice-gp-inquiry-research-paper-mar11.pdf

Victora CG, Vaughan JP, Barros FC, Silva AC, Tomasi E. Explaining trends in inequities: evidence from Brazilian child health studies. Lancet. 2000; 356(9235):1093–8.

Rose G. Rose’s Strategy of Preventive Medicine. Oxford University Press. 1992.

Capewell S, Graham H (2010). Will Cardiovascular Disease Prevention Widen Health Inequalities? PLoS Med 7(8): e1000320.

Entrevista com:

2 Comentário

  1. Fiquei empolgadíssima com a leitura. Pensei que essa coleta de dados orientados para os DSS podem estar nas anamneses medicas e dos demais profissionais.

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