A atenção à saúde voltada para indivíduos de alto risco pode aumentar as desigualdades sociais em saúde?

O debate não é novo, mas como ainda existe certa dualidade quanto à abordagem de prevenção de doenças, especialmente as cardiovasculares (DCV), o nosso Observatório não poderia deixar de apresentar os prós e os contras de duas abordagens no cuidado à saúde: a individual, voltada para pacientes de alto risco, e a de base populacional, direcionada para um maior número de indivíduos da população que inclui aqueles de médio e baixo risco. Para isso, utilizamos como apoio o trabalho de Simon Capewell, professor do Departamento de Saúde Pública da Universidade de Liverpool (GB), e Hilary Graham, do Departamento de Ciências da Saúde da Universidade de York (GB), onde os autores apresentaram as experiências do Reino Unido e de outros países na redução das DCV a partir de diferentes abordagens na atenção à saúde.

Além aumentar a compreensão sobre as duas abordagens de prevenção, a nossa intenção com esse texto é discutir se a triagem e o tratamento de indivíduos de alto risco para DCV podem aumentar as desigualdades sociais em saúde. Estamos falando principalmente da “Lei do cuidado inverso“, citada por Tudor Hart em 1971, onde as opções de prevenção e  o acesso ao tratamento médico tendem a ocorrer de maneira inversa a necessidade da população atendida. Ou seja, as intervenções efetivas e de melhor custo-benefício são mais acessíveis para os grupos populacionais sociais mais favorecidos (de baixo risco para doenças) do que para os grupos menos favorecidos (alto risco para doenças), gerando um aumento nas iniquidades sociais em saúde.

A prevenção primária da doença cardiovascular depende da redução dos principais fatores de risco, principalmente através da redução do tabagismo e adoção de uma dieta saudável. No entanto, o maior desafio se encontra na expressiva morbidade e mortalidade por DCV em grupos desfavorecidos. O gradiente social é um dos principais fatores de risco para doença cardiovascular e explica aproximadamente três quartos dessa carga, apesar  do hábito de fumar explicar mais do que metade da ocorrência.

Para Capewell e Graham, existem estratégias de prevenção que dependem exclusivamente da mudança e manutenção de comportamentos dos indivíduos. Contudo, as evidências atuais sugerem que o combate aos fatores de risco para DCV através de abordagens populacionais, ou seja, por meio de mudanças no ambiente social mais amplo, são as que mais reduzem as desigualdades sociais em saúde. Em contrapartida, tem-se demostrado que a triagem e tratamento de pacientes de alto risco requerem uma mobilização maior de recursos do indivíduo, seja material ou psicológica, e isso geralmente favorece as pessoas com mais recursos, podendo aumentar as desigualdades sociais em saúde. Trocando em miúdos, isso significa que as pessoas mais pobres têm um benefício líquido para a saúde bem menor com esse tipo de intervenção do que as mais ricas.

Há duas décadas Geoffrey Rose sugeriu que uma pequena redução do risco em um grande número de pessoas pode impedir muitos mais casos novos de uma doença do que o tratamento em um pequeno número de doentes sob maior risco. Pensando dessa maneira, a melhor estratégia, então, seria implementação de políticas populacionais que atuam diretamente nas causas subjacentes da doença. Sendo assim, políticas nacionais e legislação fiscal podem ser eficazes, como as que aconteceram na Dinamarca, onde houve a proibição do uso de gorduras trans na indústria alimentícia, ou na Finlândia, onde houve uma redução do sal pela metade em alimentos processados, ou também as que existem na Escócia, Irlanda e Itália, com espaços públicos livres de fumo.

Capewell e Graham citam que pequenas reduções nas concentrações de colesterol, na pressão arterial, ou do hábito de fumar da população como um todo, se traduzem em reduções substanciais nos eventos cardiovasculares e mortes. Essa evidência sugere que as políticas populacionais podem ser mais eficazes na redução de fatores de risco e melhorar a saúde do que uma abordagem individual de alto risco. Como os grupos desfavorecidos experimentam uma carga maior de doença cardiovascular, são mais propensos a terem um benefício extra se um fator de risco é reduzido uniformemente por toda a população, com a consequente redução das desigualdades.

Dentre as críticas que a abordagem individual recebe, os autores citam a baixa efetividade, o alto custo, a medicalização dos indivíduos previamente saudáveis e o pequeno impacto na população, além da não resolução das causas mais profundas do problema e ampliação das desigualdades sociais em saúde. Além disso, a abordagem individual possui uma série de barreiras que interferem no sucesso da intervenção, como crenças pessoais sobre saúde e doença, o real comportamento em saúde, a própria avaliação de risco feita pelo médico, a participação e a adesão ao programa de prevenção.

Como já relatamos em outra notícia aqui do nosso Portal, apesar de não existirem evidências suficientes para suportar que intervenções possam reduzir ou aumentar as desigualdades em saúde, alguns pesquisadores relatam que as intervenções mais proximais, que incidem sobre as mudanças de comportamento individuais são pouco eficazes e mais susceptíveis a aumentar as desigualdades do que as intervenções mais distais.

A título de exemplificar intervenções mais distais para redução de DCV, podemos citar as políticas regulatórias, especialmente as que incluem o aumento do imposto no preço do cigarro, pois estão associadas com quedas no consumo em uma magnitude semelhante em todos os grupos socioeconômicos. O mesmo acontece em relação à dieta. Políticas de erradicação da gordura trans nos alimentos, ou a redução para metade do teor de sal do pão, beneficia a todos, mas o maior beneficiado é o grupo mais desfavorecido, pois as famílias de baixa renda consomem mais gordura saturada e menos frutas e legumes do que as famílias mais ricas.

Desde 2009, o Reino Unido tem anunciado programas de grande escala a fim de reduzir o risco de doenças cardiovasculares. Isso foi impulsionado, principalmente, pelas políticas de redução de desigualdades em saúde dos países desenvolvidos. No entanto, ainda é feita uma abordagem de alto risco. Todos os adultos com idades entre 40-74 anos são convidados a fazerem o rastreamento para o risco de DCV. Os indivíduos que excedam um risco de 20% serão tratados nos próximos 10 anos com uma combinação de aconselhamento de mudança de estilo de vida e prescrição de medicação para reduzir o colesterol no sangue e a pressão arterial.

Com relação às terapias anti-hipertensivas, existem disparidades sociais e étnicas na detecção e tratamento da hipertensão no Reino Unido. Segundo Capewell e Graham, apesar dos grandes investimentos na melhoria da qualidade do acompanhamento médico, incluindo o pagamento por desempenho, a adesão em longo prazo ao tratamento com medicamentos de prevenção primária não chega a 50%, sendo muitas vezes pior nos grupos mais desfavorecidos.

Abordagem coordenada: Um programa de saúde sueco (Norsjo Community Intervention Program) combina as intervenções de base populacional às de alto risco, coordenando ações com a colaboração dos prestadores de saúde, supermercados, escolas e autoridades municipais. Na atenção primária, os médicos fazem a triagem dos pacientes com risco elevado para doença cardiovascular, que recebem aconselhamento. No entanto, intervenções comunitárias são realizadas, como mudanças no rótulo dos alimentos, facilitando a adesão às recomendações dietéticas. O risco de mortalidade por DCV foi reduzido em 36% na área de intervenção em comparação com 1% em uma comunidade de controle. Além disso, os grupos socioeconomicamente menos favorecidos se beneficiaram mais do programa.

Seja de base populacional ou dirigida a indivíduos com alto risco para DCV, o que devemos evitar são os efeitos diferenciais, em que grupos favorecidos se beneficiem mais do que os grupos mais pobres. A combinação de abordagens parece ser o ideal, pois são complementares. No entanto, sabemos que nenhuma abordagem de prevenção é capaz de eliminar totalmente as desigualdades, mas todas as estratégias futuras que visem melhorar a saúde da população devem passar por uma rigorosa avaliação em relação ao seu impacto sobre as desigualdades sociais em saúde.

*Imagem: Fotolia (banco de imagens).

Referências Bibliográficas

Capewell S, Graham H. Will Cardiovascular Disease Prevention Widen Health Inequalities? PLoS Med [periódico na internet]. 2010 [acesso em 15 abr 2014];7(8):e1000320.  Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2927551/

Hart JT. The inverse care law. Lancet. 1971 Feb 27;1(7696):405-12. Disponível em: http://www.sochealth.co.uk/public-health-and-wellbeing/poverty-and-inequality/the-inverse-care-law/

Lamarca G, Vettore M. Lei de prevenção inversa: é possível que as intervenções em saúde pública aumentem as desigualdades sociais? [Internet]. Rio de Janeiro: DSS Brasil; 2013 Abr 11 [acesso em 15 abr 2014]. Disponível em: https://dssbr.ensp.fiocruz.br/?post_type=opinioes&p=11222&preview=true

Lorenc T, Petticrew M, Welch V, Tugwell P. What types of interventions generate inequalities? Evidence from systematic reviews. J Epidemiol Community Health [periódico na internet]. 2013 [acesso em 15 abr 2014];67(2):190-3. doi: 10.1136/jech-2012-201257. Epub 2012 Aug 8.

Rose G . The strategy of preventive medicine. Oxford: Oxford University Press; 1992.

Weinehall L, Hellsten G, Boman K, Hallmans G, Asplund K, Wall S. Can a sustainable community intervention reduce the health gap?–10-year evaluation of a Swedish community intervention program for the prevention of cardiovascular disease. Scand J Public Health Suppl. 2001;56:59-68.

Entrevista com:

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*