A vida urbana e a mobilidade: implicações atuais e futuras em tempos de pandemia

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Em anos recentes, o deslocamento urbano já vinha experimentando diversas modificações devido a inovações como o uso de novos aplicativos de deslocamento, compartilhamento de veículos, mais opções de micromobilidade e novas concepções e ideias sobre o próprio planejamento urbano. Atualmente, com o advento da pandemia de covid-19, a mobilidade urbana volta a estar no centro das discussões sobre o meio ambiente urbano, na medida em que as principais recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para evitar o contágio e achatar a curva das contaminações passam necessariamente pela prática do isolamento social e de se evitar aglomerações.

A mobilidade urbana é uma questão multidimensional, pois mede não só o acesso a bens e serviços, mas as conexões entre as pessoas e sua relação com a cidade, que desdobra diariamente nas áreas de circulação urbana, motivada por diversos conflitos de interesse. Além disso, não se pode prescindir da associação com a questão ambiental, sendo os veículos automotivos a principal fonte de poluentes do ar danosos à saúde nas grandes cidades. A chegada de severas restrições ao deslocamento urbano devido à pandemia impõe uma camada adicional de complexidade a essa questão e nos coloca algumas questões fundamentais: quais os impactos do isolamento social no deslocamento dos variados grupos populacionais? Quais as consequências sociais e ambientais da restrição dessas atividades? Quais modelos de mobilidade urbana podem ser pensados para a nova realidade das cidades no contexto do pós-pandemia?

Efeitos decorrentes

A partir da segunda quinzena de março de 2020 as principais cidades do País começaram a adotar medidas de isolamento social em função do aumento das taxas de infecção por Sars-Cov-2. Isto levou à diminuição abrupta da mobilidade nas grandes áreas metropolitanas (figura 1).

Os impactos na mobilidade urbana têm fortes consequências socioeconômicas, logísticas e ambientais, principalmente no transporte público coletivo. Os segmentos mais vulneráveis da população vivem em áreas periféricas percorrendo maiores distâncias para ter acesso à saúde pública, educação, trabalho e lazer. Cerca de 228 mil pessoas acima de 50 anos de idade e de baixa renda, habitantes das 20 maiores cidades do Brasil, estão a mais de 30 minutos de caminhada até uma unidade de saúde, onde podem realizar o processo de triagem e encaminhamento dos casos suspeitos de covid-19. Considerando este mesmo grupo populacional, 1,6 milhão de pessoas moram a mais de cinco quilômetros de carro até hospitais com estrutura para a internação de pacientes (dados de 2020 do Ipea). Embora seja indicado que a população procure diretamente unidades de triagem em casos suspeitos, há um histórico de procura direta pela população a hospitais de referência.

A configuração das cidades não reflete uma homogeneidade necessária para garantir o acesso aos espaços e serviços urbanos igualmente para todo os setores populacionais. A população de baixa renda, além de normalmente residir em regiões periféricas e mais distantes dos serviços (como a saúde), depende mais do transporte público em comparação à população de maior renda. Diversos estudos mostram que os usuários de ônibus estão mais expostos a viagens mais longas e, portanto, também à poluição do ar. A exposição crônica à poluição do ar é um fator de risco para muitas das doenças crônicas (como doenças respiratórias, cardíacas, asma, diabetes) amplamente relatadas na literatura científica. Além disso, altas concentrações de poluentes atmosféricos afetam as defesas naturais do corpo contra vírus transmitidos pelo ar, tornando as pessoas mais propensas a contrair doenças virais.

Por estes motivos é possível postular que a população urbana exposta a altas concentrações de poluentes possui maiores riscos de mortalidade associados à covid-19. Um estudo da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de Harvard demonstra que o incremento de 1 µg/m3 de MP2,5 está associado a um aumento de 8% na taxa de mortalidade por covid-19. Além disso, no Brasil, carros particulares ocupam cerca de 60% do total dos espaços viários, mas transportam apenas 20% da população. Esta desproporção entre uso dos espaços urbanos, eficiência no transporte e emissão per capita de poluentes, entre outras, é um forte sinal de injustiça ambiental nos grandes centros urbanos. De acordo com a Figura 1, as viagens por carros particulares foram as que menos apresentaram queda devido aos efeitos do isolamento social em comparação aos outros modais – o que é facilmente compreensível devido à maior facilidade para se manter o isolamento nas viagens por este modal. Uma vez que, durante a pandemia, a população de renda mais alta é justamente a que consegue se deslocar de forma mais segura – sem a necessidade de se aglomerar no transporte público -, isto demonstra uma exacerbação da injustiça ambiental nas questões de mobilidade urbana devido aos impactos da pandemia.

Por outro lado, um efeito colateral positivo decorrente do isolamento social em diversas regiões mundiais foi a diminuição das concentrações de poluentes atmosféricos, como o dióxido de nitrogênio (NO2), material particulado (MP) e monóxido de carbono (CO) com base em dados espaciais de alta resolução. Na cidade de Wuhan, epicentro inicial do surto, as taxas de NO2 caíram 22,8 µg/m³ e as de MP2,5 diminuíram em 1,44 µ/m³. Outras 367 cidades chinesas registraram, em média, uma redução de 18,9 µg/m³ de MP2,5. Na Europa ocorreu no mês de abril de 2020 uma redução média de 40% nas emissões por dióxido de nitrogênio (NO2) e de 10% nos valores médios de material particulado. Além disso, estima-se que as emissões de CO2 caíram cerca de 17% ao redor do mundo.

A cidade de São Paulo, que possui a maior frota veicular circulante no País, registrou após as primeiras semanas do isolamento social reduções drásticas de NO (até -77,3%), NO2 (até -54,3%) e CO (até -64,8%) comparados com anos anteriores. O estudo realizado por Nakada e Urban (2020) indica que as reduções observadas de poluentes na cidade de São Paulo não foram altamente determinadas por mudanças nas condições de dispersão – o que poderia explicar, em parte, a diminuição desses poluentes. Em contraste, muitas regiões no planeta registraram aumento das concentrações de ozônio (O3), devido à sua complexa química atmosférica, o que também já foi observado em outros períodos e situações com diminuição da emissão de poluentes.

De acordo com um estudo publicado pelo The Lancet, realizado com dados de 272 cidades chinesas, a paralisação das atividades na China e a decorrente redução na poluição atmosférica evitaram 8.911 mortes associadas ao NO2, e 3.214 mortes associadas ao material particulado. Estes números, baseados em estudos epidemiológicos internacionais, são mais altos do que a quantidade de mortes registradas por covid-19 no mesmo período (4.633), durante os 34 de quarentena (Chen et al, 2020). Outro efeito positivo decorrente das alterações de mobilidade nos centros urbanos foi a diminuição no número de acidentes fatais veiculares, com queda de 28% no número de acidentes e de 7% de mortes entre março e abril no país todo. O Estado de São Paulo registrou em abril o menor número de fatalidades associadas ao tráfego veicular desde o início da sua série histórica, em 2015.

Reflexões para mobilidade urbana durante e pós-covid-19

A circulação do vírus após o período de isolamento social, provavelmente, ainda ocorrerá até o desenvolvimento de uma vacina. Haverá o retorno da circulação normal de pessoas utilizando modos de transporte coletivo (ônibus, trens e metrô são responsáveis por 50% das viagens motorizadas no País), portanto, urge considerar quais políticas públicas referentes à mobilidade podem ser adotadas para que se evite uma nova onda da doença nos centros urbanos.

O estímulo e a promoção de alternativas ao transporte coletivo motorizado podem mitigar os riscos de aglomerações. Neste âmbito, o transporte ativo como o ciclismo e caminhadas para percursos curtos deve ser priorizado. A cidade de Bogotá implementou, como medida de mitigação da covid-19, 76 quilômetros de ciclofaixas temporárias na cidade na tentativa de reduzir a lotação do transporte público. Além de se evitar aglomerações, a substituição de viagens motorizadas pelo ciclismo é uma estratégia fundamental para ajudar a lidar com a carga global de doenças não transmissíveis (DNTs) devido aos muitos efeitos positivos da atividade física na saúde, além de promover inúmeros cobenefícios ambientais.

Na cidade de São Paulo, o uso da bicicleta como meio de locomoção cresceu 24% de 2007 para 2017, passando de 304 para 377 mil viagens/dia. Como estímulo ao uso, os serviços de empréstimo de bicicletas poderiam oferecer períodos de uso gratuito, maior quantidade de bicicletas e cobrindo áreas de atendimento mais amplas que as atuais. Em contraponto, esta solução não atende à população mais vulnerável que reside em zonas periféricas distantes e que realiza viagens longas ao trabalho. É estimado que o tempo médio de viagens, em modo coletivo, seja de 60-61 minutos em rendas familiares de até R$ 3.816. Portanto, para estas populações, é necessário se pensar alternativas mais realistas.

Neste ponto, a diminuição das distâncias entre trabalho e moradia adquire importância fundamental, pois cerca de 45% das viagens totais são motivadas por trabalho (Pesquisa Origem-Destino, 2017). Uma vez que a maior distância percorrida leva a deslocamentos mais longos, elas também correspondem a maior exposição à agentes ambientais e a maiores emissões de poluentes. Distribuir melhor as oportunidades de trabalho, reduzindo a necessidade de longos deslocamentos, nos abre a oportunidades de cobenefícios muito promissoras. Entre elas, podemos citar o menor tempo de exposição à covid-19 e à poluição do ar, ganhos em qualidade de vida e saúde mental, e o encorajamento do uso de transportes não motorizados, que são menos poluentes e garantem maior isolamento social e promovem a saúde (uma vez que deslocamentos mais curtos estão fortemente associados ao transporte por bicicleta e caminhadas). Fundamentalmente, elas adquirem um caráter de promoção de maior justiça social e ambiental nos centros urbanos, principalmente num contexto pós-pandemia. Ações complementares, como o fomento a modos motorizados de micromobilidade, como patinetes eletrônicos e scooters, podem operar em sinergia com a diminuição das distâncias.

O trabalho via remoto, imposto pelo isolamento social, tem se mostrado como uma forma efetiva de se evitar o deslocamento desnecessário, contribuindo com a diminuição de pessoas nos transportes coletivos. Em contraponto, os segmentos da população que dependem totalmente do modal público coletivo possuem atualmente maior risco de exposição ao vírus Sars-Cov-2, fato que evidencia claramente a injustiça ambiental nas questões de mobilidade urbana nas grandes cidades brasileiras. Nesse sentido, a governança municipal é fundamental, pois isso depende da articulação entre os setores produtivos e o poder público para a implementação de políticas de desenvolvimento urbano policêntrico.

Em relação aos sistemas de transporte coletivos, estes inevitavelmente são ambientes de alto risco associados ao contato e transmissão do vírus em função do alto número de pessoas confinadas em espaços com circulação de ar limitada. Como diminuir os riscos de proliferação e contaminação?

  • Deve-se garantir a execução contínua de um ciclo de sanitização com substâncias que eliminem o vírus do ambiente interno (ex. pulverização de solução de peróxido de hidrogênio) como assentos, barras, alças, filtros e dutos de ar. Devem ser preconizados procedimentos de higienização que garantam a proteção e segurança dos funcionários responsáveis pelos procedimentos de limpeza, com o fornecimento de EPIs adequados. Na China, estão sendo utilizadas luzes ultravioleta como forma de eliminação do vírus (99,9% de eliminação).
  • Deve ser promovido o estímulo ao uso de horários alternativos (deslocamentos fora dos horários de pico).
  • Disponibilização de álcool em gel e máscaras de proteção facial para os usuários.
  • Checagem de temperatura (termômetros infravermelhos, como exemplo ao que está sendo feito na China e em outros países).
  • Restrição ao uso de papel moeda nas estações de ônibus, trens e metrôs e adoção de cartões individuais (carregamento em aplicativos e caixas de bancos) como vem sido feito na Alemanha, Nova Zelândia, Espanha e Indonésia.

 

Por Luis Fernando Amato Lourenço e Julio Barboza Chiquetto – Jornal da USP . 01/10/2020

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