Na varanda da casa de poucos cômodos, o pernambucano Moisés Nascimento ouve as recomendações da equipe de saúde. Vez por outra responde com a voz abafada pela máscara protetora para evitar a contaminação do Bacilo de Koch, bactéria da tuberculose que se desenvolveu em seus pulmões.
Tempos atrás, a doença primeiro levou seu avô, depois seu pai. A mãe Solange e a avó Clarice acompanharam de perto o sofrimento e não querem ver a história se repetir. Para não morrer da mesma forma, Moisés tem consciência do único caminho a percorrer: fazer o tratamento gratuito prescrito pelo SUS até o final, e seguir as orientações dos profissionais da Unidade de Saúde da Família (USF) Sítio das Palmeiras, que fica no bairro dos Torrões, onde mora no Recife.
Moisés é papeleiro e, antes da doença, sobrevivia fazendo pequenos biscates. No final de 2015, com tosse recorrente, cansaço e perda de peso, confirmou o diagnóstico. Seguindo o protocolo padrão, o tratamento indicado duraria seis meses. Mas, como tantos doentes em condição de extrema vulnerabilidade, ele começou a se sentir bem e parou de tomar os comprimidos de antibióticos que matam a bactéria em seu estágio inicial. Como não estava curado, a doença voltou mais forte e o retratamento será de no mínimo um ano e meio.
Aumentar a adesão ao tratamento é um desafio para os serviços de saúde em geral, já que o abandono deixa a bactéria mais resistente aos antibióticos, dificultando a cura. Para Moisés, além dos comprimidos, agora há também injeções que são fornecidas pelo Hospital Otávio de Freitas, referência estadual para atendimento de pacientes com tuberculose. O tratamento é forte, provoca reações adversas, e por isso é importante que o doente se sinta amparado. “A família apoia, e isso é importante. A gente está aqui também como família deles. Temos que ter um papel bem ativo e próximo”, recomenda a enfermeira Fabiana Alheiros, que integra a equipe da USF Sítio das Palmeiras.
Situação vulnerável
A tuberculose é uma doença infecciosa, transmitida por uma bactéria que afeta principalmente o pulmão e pode atingir também laringe, ossos, pleura, pele e sistema nervoso, entre outros. A forma pulmonar é a que mais preocupa a saúde pública, já que o contágio ocorre quando o doente espirra, tosse ou fala. Fortemente associada à pobreza, a doença tem suas chances de propagação entre aqueles que vivem em situação de vulnerabilidade, como pessoas em situação de rua ou vivendo com o HIV, além de indígenas e presidiários.
Moisés se enquadra nos padrões de vulnerabilidade. O bairro dos Torrões, onde ele mora, é uma zona empobrecida, com alto déficit de saneamento e com muitos moradores vivendo em condições precárias. Felizmente, a casa de Moisés tem janelas e recebe a luz do sol, como a reportagem da Radis pode verificar, quando acompanhou a visita da equipe de saúde, em novembro de 2017. Vilma Guedes, enfermeira de família e então coordenadora Distrital de Tuberculose, disse que esse é um ponto positivo no caminho de cuidado e cura de Moisés, já que o bacilo se desenvolve melhor em locais úmidos, pouco iluminados e ventilados naturalmente, e também em ambientes superlotados.
Agente comunitária de saúde, Mitiam Alcenir acompanhou de perto a história de perdas protagonizada por Moisés e sua família, na luta contra a tuberculose. “Olha, eu não queria perder mais um”, desabafou, informando que ele já é considerado multidrogaresistente [TB-MDR]. “É um paciente que vai todo dia à unidade e vem sendo acompanhado clinicamente”, contou, sem perder a esperança na possibilidade de cura. “Estamos fazendo de tudo para que ele se recupere. E ele vai se recuperar”.
Em Pernambuco, desde 2011, existe o Programa Sanar, da Secretaria Estadual de Saúde (SES-PE), cujo objetivo é controlar e reduzir os índices da doença. O foco do programa é o enfrentamento de doenças negligenciadas, com atenção direcionada. Além da tuberculose, engloba a hanseníase, esquistossomose, geo-helmintíase, filariose, leishmaniose visceral, doença de Chagas e tracoma. Para a SES-PE, o estado inova com o Sanar, já que a política prevê enfrentamento das doenças de forma integrada. “Pernambuco tem índices inaceitáveis dessas doenças e precisamos mudar esse cenário. Na tuberculose e hanseníase, o Sanar é uma ação complementar aos programas, e atua no processo de trabalho de municípios considerados prioritários, com mais de 50 mil habitantes”, explica Alexandre Menezes, então coordenador do programa.
Ele informou à Radis que o Sanar integra ações de vigilância epidemiológica, controle vetorial, apoio laboratorial, assistência aos pacientes e educação e comunicação em saúde de diversos setores das secretarias estadual e municipais, além das gerências regionais de saúde. “Normalmente, as gestões estaduais são muito próximas dos coordenadores dos programas. O Sanar vai muito além disso”, observou, explicando que a equipe do projeto trabalha diretamente na unidade de saúde verificando se há condições para ela exercer o seu papel, no que diz respeito a fazer buscas de doentes, tratar casos até o final e evitar ou diminuir o abandono no tratamento — seja de tuberculose ou de hanseníase. Isso, segundo ele, amplia o que é feito pelas demais políticas estaduais.
Além das ações de rotina executadas pelos programas específicos, o Sanar faz atividades de prevenção, diagnóstico e tratamento dos casos, e de capacitação dos profissionais. Segundo Alexandre, a metodologia permite que a equipe técnica dialogue com os profissionais que estão em campo, verifique como está o processo de trabalho e realize o treinamento sobre a vigilância dessas doenças. “Nós falamos sobre quais são os procedimentos de cada doença, que protocolos devem ser seguidos, verificamos se há ou não condições de o diagnóstico ser feito na unidade”, exemplifica. Ele avalia que o resultado do trabalho traz ganhos para todos. “É muito bom para o município e para a coordenação estadual de tuberculose saberem o que acontece nas unidades. Isso faz com que as pessoas sejam melhor acompanhadas pelos profissionais que atuam ali”, justifica.
Radis também acompanhou uma visita técnica da equipe do Sanar à Unidade de Saúde Caetés I B, no município de Abreu e Lima, situado na região metropolitana do Recife. Durante uma manhã, a enfermeira Marília Barros Gomes conversou com integrantes de uma equipe de saúde da família para fazer o assessoramento técnico, e aplicou um longo questionário para investigar, entre outras questões, se houve aumento de casos novos e como estava o tratamento dos pacientes registrados nas UBS. Ela estimulou a busca ativa de contatos de pacientes com tuberculose e reforçou a necessidade da atenção integral às pessoas. “Nós precisamos saber o que o paciente encontra na unidade, quais são as condições, se a equipe está preparada para recebê-lo, se é possível realizar exames e como é o encaminhamento”, relatou Marília.
As informações colhidas nas unidades geram um relatório em cada um dos municípios, contendo recomendações para a melhoria dos programas. A enfermeira explicou que uma segunda visita é feita três a quatro meses depois do primeiro contato, quando a equipe do Sanar verifica se as demandas e problemas apontados foram solucionadas. “Esse monitoramento é importante para a gente observar se as demandas apresentadas anteriormente foram resolvidas. Percebemos que esse é o tempo que o município precisa para se organizar. As questões laboratoriais geralmente têm muitos entraves”, exemplifica. “Depois, a gente sai do município, mas a ideia é que eles continuem com os protocolos”, disse.
Números altos
Dos 141 municípios pernambucanos prioritários selecionados pelo programa (76% do total), 15 recebem as ações para tuberculose e hanseníase. Onze ficam na região metropolitana e registram a maioria dos casos. Entre 2015 e 2017, 373 unidades básicas de saúde foram alcançadas pelo Sanar. A Secretaria Estadual de Saúde divulga que investiu R$ 8 milhões na iniciativa e repassou mais de R$ 4 milhões diretamente para os municípios, totalizando R$ 12 milhões em recursos.
Somente as unidades básicas que têm casos da doença e alguma pessoa em tratamento é que recebem a atenção do Sanar. “Nosso questionário é aplicado para profissionais que sabem o que é o acompanhamento de pacientes de tuberculose. Uma unidade sem caso desconhece possíveis problemas e as dificuldades que o paciente pode enfrentar durante o tratamento”, observa Marília. A enfermeira salienta também que uma “unidade silenciosa”, onde não há registro de casos, é muito preocupante, devido aos indicadores altos da doença no estado. “No contexto epidemiológico local, é estranho que exista uma unidade sem casos. Se a equipe for para o território e buscar uma pessoa com tuberculose, acredito que vá encontrar”, assegura.
Marília contou que as equipes são motivadas a atuar em conjunto. “O médico também tem a função de registrar livro, fazer acompanhamento. Não é só o enfermeiro. E o agente comunitário de saúde é muito importante na busca no território. Precisamos que todo mundo esteja junto”, afirma. A agente Maria José Batista dos Santos participou da reunião em Abreu e Lima, quando relatou o acompanhamento de um caso em sua área de cobertura. “É de uma pessoa que veio de outro bairro e quando se mudou chegou à unidade. Eu monitoro a medicação, vejo se está tomando direitinho, faço os exames de acompanhamento e observo se o tratamento está evoluindo. É um tratamento cansativo”, classificou. Maria José disse recomendar que as equipes de saúde fiquem atentas. “Quando percebo um paciente com sintomas de tosse, febre, questão respiratória, oriento para que vá à unidade. E depois acompanho”.
Ranking nacional
Informações do Ministério da Saúde, de 2016, mostram que Pernambuco ocupa o segundo lugar no ranking nacional em número de mortes causadas por tuberculose (4,5 mortes para 100 mil habitantes), o terceiro lugar em casos novos (49,6/100 mil habitantes) e o sexto em abandono. Entre as capitais, o Recife foi o município que apresentou o maior risco de morte pela doença (7,7/100 mil). A cidade também contabiliza a maior mortalidade entre os municípios do estado, com quase 95 casos para cada 100 mil habitantes. Sozinha, a capital concentra 35% dos casos em todo o estado. Por conta destes números, a secretaria municipal de Saúde implantou a metodologia de trabalho do Sanar no Recife, mas com foco em quatro doenças: tuberculose, hanseníase, filariose e geo-helmintíases. Coordenadora do programa municipal, a enfermeira sanitarista Ariane Bezerra reforça que o objetivo do programa é o trabalho com profissionais de saúde que cuidam dessas doenças. “É chegar e conversar. Explicar o que é a tuberculose, o que tem de ser feito, como é o acompanhamento. Além disso, apoiamos as políticas que trabalham com esses agravos. Estamos juntos nas campanhas, nas atividades de promoção, prevenção, vigilância, monitoramos os indicadores epidemiológicos. E um contexto de ações para enfrentamento desses agravos de forma prioritária”, acrescenta.
Para Ariane, é preciso que os profissionais da atenção básica percebam que a tuberculose faz parte do seu contexto de trabalho. “A tuberculose era tratada de forma centralizada por especialistas em centros especializados. Era da alçada da referência. Agora não mais”, comenta. Segundo ela, a estratégia de aproximação das unidades, apoio técnico e assessoramento é realizada há quatro anos e, em sua avaliação, “é cedo para medir o impacto em curto prazo”.
Contudo, Jair Brandão, coordenador da ONG Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero, discorda. Para ele, os indicadores mostram que a tuberculose ainda continua negligenciada. “Na visão da sociedade civil, apesar de a tuberculose estar em um programa de doenças negligenciadas, isso não elevou seu lugar na saúde. Recife é uma das capitais com maior índice da doença e Pernambuco está com indicadores altos no coeficiente, na mortalidade e na incidência. Não acho que isso seja levado em conta”, afirmou, em conversa com a Radis. Para ele, é preciso que as UBS funcionem em localidades mais necessitadas. “Eu acho que tem muita gente capacitada, mas na ponta não conseguimos ver esse resultado. A capacitação é feita, mas o problema é ter ambientes de saúde favoráveis para que isso aconteça. É fazer com que a população tenha acesso ao serviço e informação disponível na sua linguagem”, opinou.
Ariane reconhece que o trabalho com a tuberculose é muito complexo. “Ele não envolve apenas o acesso a unidade de saúde da família ou à unidade terciária, pois é a condição de vulnerabilidade do usuário que faz com que ele abandone o tratamento. Infelizmente, ainda não conseguimos quebrar a cadeia de transmissão da doença”, diz. Mas a coordenadora observa que já é possível identificar impactos no processo de trabalho. “Quando implantamos o Sanar Recife, havia unidades sem nenhum trabalho de prevenção e promoção da tuberculose. Agora, seus profissionais vão ao território para fazer educação em saúde, busca ativa e mutirão de atendimento. Há, sim, uma mudança em curso. Por isso é que precisamos assessorar esse profissional e monitorar os casos junto às unidades”.
*Foto da home: Eduardo Oliveira
Fonte: Morosini L. Atenção total. Radis [periódico na internet]. 2018 [acesso em 20 abr 2018];187: 28-31. Disponível em: http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/187/reportagens/atencao-total
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