Diabetes tipo 2: um cenário preocupante

O nome “diabetes mellitus”, ou simplesmente “diabetes”, tem um significado amplo que recobre um grupo de doenças metabólicas caracterizadas por uma hiperglicemia, resultante de defeitos da secreção ou ação da insulina, ou dos dois combinados. Esta hiperglicemia (elevação da taxa sanguínea de glicose) participa, num grau variado e por mecanismos mal conhecidos, na ocorrência a longo prazo de complicações que atingem os olhos, os rins, os nervos, o coração e as artérias. Atualmente são as complicações que carregam o essencial da gravidade da doença e representam o maior peso para a Saúde Pública.

Considera-se que cerca de 90% dos casos de diabetes diagnosticados são de “diabetes tipo 2” e dizem respeito a uma doença pouco sintomática ou assintomática que ocorre tipicamente em pessoas de mais de 50 anos, com obesidade, sobrepeso, e/ou histórico familiar de diabetes. Isto o diferencia do outro tipo de diabetes (“diabetes tipo 1”), doença com sintomas bem definidos que ataca mais crianças ou jovens e requer insulina como único tratamento.

As características do diabetes tipo 2 fazem com que sua importância no perfil epidemiológico fosse particularmente impactada, nas últimas décadas, pelos processos de transição, demográfica, epidemiológica e nutricional que vêm ocorrendo no Brasil. Em relação à última, observa-se que a uniformização dos modos de vida, sob pressão da “globalização”, segue um modelo que favorece o aumento da obesidade e do sedentarismo, ambos fatores de risco de muitas doenças crônicas, entre essas, de maneira notável, justamente o diabetes tipo 2. Atualmente, a obesidade que antes era um indicador de riqueza e status em diferentes sociedades, torna-se cada vez mais uma marca de “pobreza”, atingindo as parcelas mais carentes da população, tanto nos países desenvolvidos, quanto nos países emergentes, como o Brasil. Isso significa que o diabetes e suas complicações estão se constituindo numa ameaça crescente à Saúde Pública do século XXI.

O Brasil já dispõe de alguns resultados de estudos epidemiológicos que permitem demarcar a situação atual do diabetes no país e tentar prever sua evolução. Desde a primeira estimativa de 7,6%, fornecida por um estudo de porte nacional conduzido em 1987 , várias outras foram obtidas e, em geral, confirmam prevalências entre 5% e 12%. Os inquéritos VIGITEL (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico), do Ministério da Saúde, permitem acompanhar anualmente a prevalência do diabetes auto-referido: cresceu significativamente entre 2006 e 2010 (p<0,01), de 4,4% para 5,4%, nos homens, e de 5,9% para 7,0%, em mulheres.

Diante desse quadro, é imprescindível investir na prevenção deste agravo. Esta, no âmbito da Saúde Pública, apoia-se em modificações na dieta e na atividade física, visando controlar os principais fatores de risco do diabetes. Vários ensaios randomizados, em populações com pré-diabetes, tiveram resultados encorajadores, mostrando que em torno da metade dos casos foram evitados nos grupos com intervenção no estilo de vida. Estes resultados indicam a necessidade de implementar políticas voltadas para modificações no estilo de vida, buscando um peso corporal adequado e atividades físicas regulares que, aliás, trazem benefícios à saúde que vão além da prevenção do diabetes. Mais esforços pessoais devem ser apoiados por esforços públicos e políticos, visando enfrentar a extensão de um “ambiente obesogênico”, pois está cada vez mais aparente que as escolhas de cada um para sua alimentação e seu lazer estão influenciadas e até reduzidas a opções pouco saudáveis, em prol do lucro de empresas , em particular as do setor agroalimentar.

A prevenção não se limita ao diabetes per se, mas também à prevenção de suas complicações, às quais são associados, em grande parte, a morbidade e o risco aumentado de mortalidade entre diabéticos. Elas são evitáveis com o controle da glicemia e da pressão arterial para níveis os mais “normais” possíveis, como demonstrou o UK-Prospective Diabetes Study. Ademais, um bom controle de todos os fatores de risco cardiovascular, incluindo abandono do tabagismo, dieta equilibrada e atividade física, permite reduzir a incidência das complicações mais frequentes e letais, ou seja, as complicações cardiovasculares (infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral, arteriopatia periférica, amputações). Algumas complicações podem ser controladas se detectadas em estado precoce, por medidas específicas, como tratamento por laser, em caso de retinopatia, ou vigilância reforçada e/ou uso de solas ortopédicas, em caso de “pé em risco”.

Apesar dessas medidas de prevenção das complicações do diabetes parecerem simples em teoria, a prática revela que, mesmo em países com sólidos serviços de saúde, poucos diabéticos de fato se beneficiam delas. É que a maioria dos sistemas de saúde, inclusive nos países desenvolvidos, foram concebidos para responder aos desafios agudos das doenças infecciosas, que podem ser curadas por intervenções pontuais. Poucos são realmente adequados para acompanhar doentes crônicos, com vistas à prevenção de complicações e não cura definitiva. Estas medidas demandam um acompanhamento sistemático, com objetivo de estabelecer um programa de tratamento, regularmente reavaliado, e identificar lesões precoces nos órgãos-alvos. Elas também pedem uma melhor cooperação entre os diversos profissionais de saúde envolvidos no cuidado aos diabéticos, sejam clínicos gerais, especialistas, nutricionistas, podólogos, etc., e, não, por último, o próprio paciente, cujo conhecimento da doença é capital para o êxito do tratamento preventivo, seus familiares, e até toda a comunidade ao seu redor.

Esse tipo de atenção foi primeiro teorizado nos Estados Unidos sob o nome de Chronic Care Model. Esse modelo identifica os elementos essenciais de um sistema de saúde, para incentivar a alta qualidade do cuidado em direção aos portadores de agravo crônico: a comunidade, a organização do sistema de saúde; o apoio ao autocuidado; o desenho da linha de cuidado para a gestão integrada ; o apoio à decisão clínica e o sistema de informação clínica. A adaptação brasileira, o Modelo de Atenção às Condições Crônicas, foi desenvolvido com base no modelo da Determinação Social da Saúde, nas relações que se estabelecem entre as equipes de saúde e as pessoas usuárias dos serviços de saúde e em função da singularidade do SUS.

Não há dúvida que, nesse momento de aumento acelerado da incidência do diabetes tipo 2, na maioria dos países do mundo, com o Brasil incluído, as consequências sociais, financeiras e humanas desta “epidemia” dependerão da adaptação dos recursos e da organização dos sistemas de saúde para prevenir e enfrentar as complicações da doença. Ao mesmo tempo, a prevenção do diabetes, através da luta contra a obesidade e o sedentarismo, tem um papel essencial para preservar o futuro. É importante ressaltar que esta prevenção não pode se restringir a iniciativas por parte dos indivíduos, com apelos para “perder peso”, “comer melhor”, ou “se mexer”, apesar da necessidade indiscutível de promovê-las. Outras ações, de nível coletivo, implicando médicos, sanitaristas, funcionários do poder público, indústrias (dos grandes grupos agroalimentários à indústria do lazer), políticos, etc., fazem-se absolutamente necessárias para conseguir, com alguma esperança de sucesso, frear o desenvolvimento ameaçador das doenças ligadas à nutrição, entre elas, o diabetes tipo 2.

Referências Bibliográficas

 

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1 Comentário

  1. Prezada Dra Annick Fontbonne,
    É um prazer ler as informações postadas, pois é de grande valia para nós vinculados à Saúde Pública deste imenso Brasil.
    Gostaria de saber como colaborar com as minhas investigações no estado do Maranhão, na região da Pré Amazônia, visto que temos carência de informações, como também de publicações neste assunto.
    Atenciosamente
    Dra Geovania Maria Braga
    UEMA

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