Em matéria anterior, mencionamos que o atual movimento sobre os Determinantes Sociais da Saúde se caracteriza por enfatizar que as políticas de combate às iniquidades em saúde devem estar firmemente apoiadas em três pilares:
– coordenação intersetorial para articular os esforços dos diversos setores relacionados com os DSS;
– ampla participação social que garanta o apoio político para a redistribuição de poder e recursos e;
– evidências científicas que, ao desvendar os mecanismos através dos quais as causas básicas produzem as iniquidades em saúde, nos indicam onde e como devemos intervir para reduzir essas iniquidades;
O ex-diretor geral da OMS, Dr. Lee Jong Wook, ao propor a criação da Comissão sobre Determinantes Sociais da Saúde, disse que o objetivo da Comissão era transformar o conhecimento em ação, ou seja, utilizar a evidência científica como uma alavanca para a mudança de políticas.
É sobre este último pilar, o da evidência científica, que queremos fazer algumas considerações. Em primeiro lugar me parece que o termo evidência científica é um oximoro. De fato, segundo o dicionário Aurélio, “evidente” é o “que se conhece ou compreende por seu caráter de certeza; claro, manifesto, visível, irrefutável: fato evidente” e “evidência” é o “caráter do que é evidente, manifesto”. Está claro que não se pode considerar científico algo que é irrefutável, já que a possibilidade de ser refutado é uma característica essencial do fato científico e é na permanente busca de refutar o que se dá por verdade científica em um dado momento histórico que a ciência avança. Quanto ao fato de evidente ser o que é manifesto e visível, a Ciência justamente se dedica a descobrir o que está escondido pelas aparências do manifesto e visível. É assim que, mesmo correndo risco de vida, cientistas se dedicaram a refutar o fato evidente do sol caminhar pelo céu em volta da Terra. Entretanto o termo “evidência científica” é consagrado pelo uso e o adotaremos daqui por diante já com as devidas ressalvas.
O termo “evidência” para a tomada de decisão em saúde tradicionalmente é empregado para a medicina clínica, “evidence based medicine”, movimento que adquiriu particular relevo com o trabalho seminal de Cochrane (1). Segundo Sackett e outros (2), medicina baseada em evidências é entendida como o uso consciente, explicito e judicioso das melhores evidências para tomar decisões sobre o cuidado de pacientes individuais. A prática da medicina baseada em evidências consiste na integração da experiência clínica individual com a melhor evidência clínica externa disponível produzida pela pesquisa científica. A experiência clínica individual se refere à competência e capacidade de discernimento que os clínicos adquirem através de sua experiência e prática clinica. A melhor evidência clínica externa disponível se refere à pesquisa clinicamente relevante, tanto de ciências médicas básicas, como especialmente da pesquisa clinica centrada no paciente, a respeito da sensibilidade e especificidade de testes diagnósticos e a eficácia e segurança de procedimentos terapêuticos, preventivos e de reabilitação. A evidência clinica externa permite tanto invalidar testes diagnósticos e tratamentos previamente aceitos, como substituí-los por novos comprovadamente mais poderosos, eficazes e seguros. A evidência clínica externa é obtida através de revisões sistemáticas da literatura promovidas por uma rede internacional denominada Colaboração Cochrane (http://www.cochrane.org/), estabelecida em 1993.
Não obstante a racionalidade da medicina baseada em evidências, o que faria supor sua ampla adoção, não é assim tão fácil convencer os profissionais de saúde a abandonar práticas que, embora consagradas pelo uso, se mostram pouco efetivas ou danosas à luz das evidências científicas coletadas através de revisões sistemáticas da literatura. Tampouco é fácil convencê-los a adotar novas práticas cuja eficácia e efetividade é plenamente comprovada por reiterados estudos. Estas dificuldades são muito maiores quando se busca adotar um enfoque similar para implantar políticas sociais baseadas em evidências com o objetivo de promover a equidade em saúde.
A seguir procuramos ilustrar algumas diferenças entre a prática clinica (PC) e as políticas de promoção da equidade em saúde (PPES) no que se refere à adoção de evidências científicas para a tomada de decisões. Desde já ressaltamos que o recurso a tipologias polares frequentemente esconde nuances e situações específicas, mas ajuda a ilustrar didaticamente tendências mais gerais.
1. Quanto à produção científica:
No caso da PC, há abundante e rápido crescimento da massa crítica de estudos sobre avaliação de práticas, medicamentos, tecnologias e outras intervenções. No caso das PPES o número de estudos sobre impacto de intervenções sobre determinantes sociais para promoção da equidade em saúde é acentuadamente menor.
2. Quanto à definição dos temas de pesquisa:
No caso da PC os temas de pesquisa são definidos em estreita colaboração entre o pesquisador e o profissional de saúde que frequentemente se confundem na mesma pessoa. No caso das PPES os temas em geral são definidos pelo pesquisador, com pouca ou nenhuma participação dos atores envolvidos no processo de tomada de decisão
3. Quanto às relações entre produção e utilização do conhecimento:
No caso da PC há uma estreita relação entre “locus” de produção do conhecimento e o “locus” de utilização que frequentemente são os mesmos, assim como seus atores. Já no caso das PPES há um maior distanciamento entre esses espaços, assim como barreiras institucionais, de linguagem, de cultura e valores entre seus diferentes atores.
4. Quanto às características dos resultados e suas implicações para aplicação:
No caso da PC os resultados de pesquisa tem um caráter prescritivo, indicando intervenções específicas “evidence based” para sua aplicação. No caso das PPES os resultados em geral indicam um leque possível de intervenções cuja seleção é feita com a participação de critérios e mecanismos de natureza política.
5. Quanto à transferência de experiências para contextos diferentes:
No caso da PC, dada a similaridade do quadro clínico em contextos diferentes e o impacto relativamente semelhante das intervenções, a transferência de experiências é facilitada. No caso das PPES, dada a diversidade de situações locais específicas, há uma maior dependência do contexto para avaliação do impacto das intervenções, o que dificulta a transferência de experiências.
6. Quanto ao processo de tomada de decisão e seus atores:
No caso da PC, o protagonismo fica a cargo do profissional de saúde, o qual possui relativa autonomia para tomar decisões sobre o cuidado do paciente. As dificuldades de adoção da medicina baseada em evidências em grande parte das vezes ocorre por um eventual conflito entre a experiência clínica individual vs. resultados de revisões sistemáticas. No caso da PPES, o processo decisório é bem mais complexo, muitas vezes envolvendo redistribuição de poder e recursos e a participação de diferentes atores com diferentes interesses, usando diferentes critérios para embasar suas decisões.
Com base no anterior, as estratégias de promoção de práticas baseadas em evidência para a PC e as PPES são bastante diferentes. Quando se trata da PC os esforços devem estar concentrados na realização cada vez maior e descentralizada de revisões sistemáticas da literatura científica mundial e local, associada à educação contínua de profissionais de saúde com base nessas revisões.
No caso das PPES as estratégias são mais variadas. Há que promover um aumento de massa crítica e descentralização de estudos de avaliação de intervenções. Há que promover a constituição de redes de colaboração entre pesquisadores, gestores, tomadores de decisão e outros profissionais para a identificação, analise, e divulgação de experiências, assim como para promover o aprimoramento de metodologias de avaliação de intervenções. Deve haver um aumento das revisões sistemáticas da literatura sobre intervenções e políticas sociais de promoção da equidade como as promovidas pela Colaboração Campbell, iniciativa similar à Colaboração Cochrane, que realiza revisões sistemáticas sobre os efeitos de intervenções sociais em áreas como educação, justiça, políticas e serviços sociais (http://www.campbellcollaboration.org/). Finalmente há que apoiar a participação de diferentes atores no processo decisório, fazendo-lhes chegar informação pertinentes e em formato adequado.
Entrevista com:
Políticas de combate às iniquidades e disparidades em saúde baseadas em evidências científicas exigem outros referenciais metodológicos (pesquisa ação, por ex), assim como uma forte inciativa do Estado no sentido de orientar a produção científica para a resolução dos problemas identificados a partir do monitoramento dos determinantes sociais da saúde.
Uma agenda científica de Estado (vide o relatório da Conferência de C&T em Saúde) conta com a contribuição das representações dos grupos componentes da sociedade. Por exemplo, uma vez que o racismo é um determinante social da doença(ou da saúde), o movimento negro conseguiu incluir na agenda científica do estado a temática Saúde da População Negra. Óbvio que isto é pouco, quase nada. Não é mesmo capaz de conseguir que os órgãos fomentadores de pesquisa cumpram a agenda aprovada! Menos sucesso obtém também com os Núcleos de Pesquisa. mas é um começo. Muito mais deverá ser feito (e pesquisado) sobre a transferência do conhecimento para uma ação específica. Por exemplo, sabemos que mais mulheres negras morrem de parto. Todavia, ainda não conquistamos uma meta de redução da mortalidade materna que seja etnicamente sensível! Gestão em saúde baseada em evidência e com o ser humano no centro da atenção (segurança do paciente). Isto é científico.