Pandemia reforça função do sistema tributário no combate à desigualdade e à pobreza, apontam especialistas em webinar

Imagem da home: FGV IBRE

O aumento da pobreza e da concentração de renda durante a pandemia tem levado diversos países a repensar o papel do sistema tributário como canal de ajuste contra essa expansão. Mesmo economias como os Estados Unidos, com alta capacidade de endividamento, discutem hoje o aumento de tributação dos mais ricos. Nesse caso, não tanto pela necessidade de recursos para financiar seus programas de proteção social, mas por reconhecer a importância de uma maior progressividade da política fiscal no combate à desigualdade, seja pelo lado dos gastos como da arrecadação, aponta Laura Carvalho, professora da USP, membro do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made) da mesma universidade. A busca por economias menos desiguais e ambientalmente sustentáveis, reforça Laura, são elementos centrais nas estratégias globais de construção do normal pós-pandêmico.

Nesta quinta-feira (24/8), Laura participou do webinar Crescimento e desigualdade: quais são os caminhos do desenvolvimento inclusivo?, promovido pelo Observatório de Política Fiscal do FGV IBRE, moderado pela repórter do Valor Econômico Marta Watanabe. No evento, a economista defendeu que, no Brasil, esse papel da tributação ganha ainda mais relevância, dada a estrutura tributária ainda muito regressiva no país, que taxa mais o consumo que a renda, e no qual a renda da camada mais rica é pouco ou nada taxada. “Os fundamentos básicos desses planos que vemos nas economias centrais são possíveis de implementação no Brasil, levando em conta os desafios até maiores de superação da pobreza e da desigualdade que temos”, afirmou.

Débora Freire, do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), defendeu no evento que o foco de uma reforma tributária no Brasil deveria ser a de um desenho fiscalmente neutro que fosse compatível com uma estratégia de recuperação econômica inclusiva. “O projeto inicial do governo de reforma do Imposto de Renda (IR) apontava nessa direção, ao implementar a taxação de lucros e dividendos, ainda que demandando ajustes”, diz Débora. Em conversa anterior com o Blog da Conjuntura Econômica, Manoel Pires, pesquisador associado do FGV IBRE, coordenador do Observatório de Política Fiscal, ilustrou o impacto dessa medida, apontando que a não-taxação de lucros e dividendos no Brasil hoje permite que o 0,01% mais rico do país tenha mais da metade de sua renda (58%) livre do IR.  “Depois de passar pela relatoria, entretanto, o projeto deixou de ter questões apenas de calibragem para ter problemas de princípio”, afirmou Débora, apontando o fim da possibilidade de um sistema mais progressivo. “Agora estamos discutindo uma reforma que desonera renda do capital e incentiva a pejotização. Pioramos a assimetria entre renda do capital e do trabalho, e isso é concentrador. Mais uma vez, estamos na contramão do mundo”, diz. “Não somos tão diferentes para tomar essa direção. Temos que retomar discussão reforma tributária sobre consumo – para melhorar o ambiente de negócios e incentivar o crescimento econômico –, e retomar o projeto de reforma do imposto de renda, debatê-lo de forma não apressada, a partir de uma proposta efetivamente progressiva”, defende.

A economista da UFMG diz que um desenvolvimento inclusivo no Brasil, com melhora nos indicadores de redistribuição de renda, passa necessariamente pelo aprofundamento da rede de proteção social. Para Débora, o fato de a recuperação do PIB brasileiro ter avançado sem a mesma resposta do mercado de trabalho é indicativo das características concentradoras de renda presentes no crescimento brasileiro. “Setores como o exportador de commodities são intensivos em capital e não geram tanta renda do trabalho. Portanto, para discutir desenvolvimento inclusivo, não basta pensar em acelerar o crescimento pelas forças usuais. Precisamos, concomitantemente ao crescimento, aprofundar a proteção social”, afirma. E, para financiá-la, Débora defende que seja usada parte da arrecadação gerada com uma reforma progressiva do IR. Estudo do Cedeplar do qual é coautora aponta que um aumento da tributação das faixas com maior nível de renda – a partir de 20 salários mínimos, com alta mais expressiva na faixa acima dos 30 salários mínimos –, incluindo a taxação de lucros e dividendos, poderia custear um programa de transferência não-contributiva equivalente a 1% do PIB, quase o dobro do que hoje se investe no Bolsa Família, gerando impactos positivos também para o crescimento econômico. “Política redistributiva no Brasil não deve ser vista só pela racionalidade social, mas também pela econômica. Existe uma capacidade de consumo enorme na base da distribuição que é comprometida pela deterioração e a volatilidade da renda da camada mais pobre”, diz. Débora defende que, para que uma mudança como essa aconteça, é preciso assumir que programas permanentes demandam fontes de receita permanentes para se financiar. “Hoje vemos que o governo joga uma série de propostas temporárias para bancar um programa substituto do Bolsa Família – projeto que corre o risco de esvaziamento de proteção em valor e número de beneficiários, já que cria uma série de elementos acessórios meritórios, mas sem gastos definidos –, e acabamos batendo cabeça com reformas que não são estruturais”, diz.

Retomada inclusiva, e verde

No evento, Laura destacou que, além da tributação progressiva, também é necessário se avançar na discussão de tributos de caráter ambiental, taxando as atividades mais emissoras de gases do efeito estufa, que poderiam se transformar em um dos braços de financiamento de uma estratégia de desenvolvimento para a região amazônica. “Em boa parte das economias desenvolvidas o debate sobre mudanças climáticas e economia de baixo carbono está associado à transição energética, que é o setor onde se concentram as emissões de gases poluentes. No caso do Brasil, entretanto, a principal fonte de emissão tem a ver com mudanças do uso da terra, particularmente o desmatamento, responsáveis por 44% do total”, afirma, defendendo que planos de transição para a economia verde, no caso brasileiro, passam necessariamente por um projeto para os estados da Amazônia, ligado às populações urbanas, florestais e rurais. “A centralidade da Amazônia ainda é considerada tema de quem busca proteger floresta, quando na verdade deve estar conectada com a agenda econômica do país”, defende.

Laura colabora com desenho do Plano de Recuperação Verde da Amazônia Legal, liderado pelo consórcio de governadores dos nove estados que fazem parte dessa região. “É um projeto inspirado nos planos de recuperação verde debatidos mundo afora pensando no pós-pandemia. E está voltado a uma região que em todos os indicadores que pegarmos – mercado de trabalho, pobreza, desigualdade, carência de infraestrutura e de serviços básicos – se encontra em nível menor do que qualquer outra região do país”, diz. Laura lembra que estudos acadêmicos evidenciam a dinâmica socialmente exclusiva do desmatamento: degradação ambiental também se origina da exclusão social, e ambas tendem a se retroalimentar, gerando um círculo vicioso. “É preciso entender que a necessidade de transição para uma economia verde não passa apenas por aumento da fiscalização contra o desmatamento ilegal, mas pela oferta de uma alternativa econômica para a população”, diz. O plano desenvolvido pelo consórcio parte de quatro eixos: o de infraestrutura básica, que inclui do saneamento à cobertura de internet; freio ao desmatamento; desenvolvimento produtivo sustentável, visando inclusive à exportação; e capacitação de mão de obra e desenvolvimento tecnológico. “O plano está sendo desenvolvido no plano dos estados, mas compõe uma política pensada para o país. Afinal, se a Amazônia é central para o planeta, por que não seria para o Brasil?”, questiona.

Laura ressalta que, a tributação sobre o carbono é muitas vezes regressiva, e por isso demandaria uma estratégia de execução. “Tributar combustível fóssil pode penalizar a camada de renda mais baixa, mas é fundamental para transição verde. Por isso, há desenhos em que essa arrecadação é destinada a complementar a proteção social e neutralizar o efeito regressivo do imposto. Ao mesmo tempo em que geram incentivos corretos para uma transição ecológica”, diz.

Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal, lembra que o país se fechou por muito tempo para discussões tributárias, e ressalta o aspecto positivo da ampliação desse debate e da conquista de alguns consensos em torno do mesmo. “Teremos que ampliar gasto público. Uma parte importante do financiamento pode vir de reformas do sistema tributário”, diz. “Poderia antes se pensar em uma reforma neutra de realocar a carga, mas ainda assim temos fontes importantes de aumento de arrecadação, em que o lucro e dividendo é um exemplo, bem como o uso de instrumentos que permitem que empresas façam seu planejamento tributário e reduzam a alíquota efetiva do imposto”, cita, ressaltando a importância desse debate para o planejamento do desenvolvimento socioeconômico de longo prazo.

No evento, Pires ressaltou que a pandemia reforçou a necessidade de atuação do setor público em três frentes: via investimento, para estimular a geração de emprego; pela transferência de renda, para amenizar o impacto aumento da pobreza entre pessoas sem condições trabalhar; e, mais no longo prazo, em ações mitigadoras dos efeitos da pandemia na educação. “Tudo isso é extensivo em gasto público, e temos alguns vetores de arrecadação que podem tornar a sociedade mais justa e permitem a ampliação de gastos meritórios”, reforça. “Isso não quer dizer que a gente não possa eventualmente tornar o gasto público que já existe mais eficiente. Mas a demanda por esse gasto é maior que nossa velocidade de realocação, e muito maior do que a economia que isso pode gerar”, conclui.

Reveja o webinar Crescimento e desigualdade: quais são os caminhos do desenvolvimento inclusivo?

 

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro – FGV IBRE . 25/08/2021

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