Em entrevista ao Portal DSS Brasil, Maria do Carmo Leal, coordenadora do estudo “Nascer no Brasil”, fala sobre: a preparação da equipe de pesquisadores para sua realização, o que foi revelado por ele, a interferência dos Determinantes Sociais da Saúde no cenário encontrado e do que precisa ser feito para a melhora da realidade registrada.
Como foi planejado o estudo?
O estudo foi financiado pelo CNPq, mas com metade dos recursos oriundos da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde. Foi aberto um edital público para uma chamada dos pesquisadores que se interessassem em apresentar projetos. O título do edital era: Inquérito Nacional sobre Cesáreas Desnecessárias, mas nós terminamos por trocar o nome para Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento, porque representava melhor os reais objetivos do estudo que desenhamos para o edital.
Para realizar o estudo precisamos de montar uma equipe científica, formada tanto pelos coordenadores nacionais e regionais que o projeto dispunha desde a sua proposição para o CNPq, como precisamos montar uma equipe em cada estado da federação, com a liderança de um pesquisador da área da Saúde da Mulher e da Criança, para conduzir o trabalho nos Estados. Foram 27 coordenadores estaduais, 60 supervisores e quase 600 entrevistadores. O processo de treinamento e qualificação de todo esse grupo foi um grande desafio para nós. A equipe técnica que organizamos no Rio de Janeiro foi de fundamental importância para dar conta da logística do trabalho de campo que entrevistou quase 24.000 puérperas, visitou 266 hospitais em 191 diferentes municípios da Capital e do interior de todos os estados do país.
2. Quais as carências identificadas na atenção prestada às gestantes que participaram da pesquisa que a senhora destacaria?
No Brasil a assistência pré-natal e hospitalar ao parto estão universalizadas e apenas 1% dos partos ocorrem em domicílios. Mas, identificamos carências no atendimento pré-natal, com uma adequação mediana do número de consultas e dos exames laboratoriais recomendados pelo Ministério da Saúde, com iniquidades em relação ao nível de escolaridade materna.
Em relação à atenção ao parto, verificamos que o atendimento prestado tanto no sistema público quanto no privado de saúde está longe do recomendado pelas evidências científicas atuais: baixa presença das boas práticas obstétricas que facilitam a evolução do trabalho de parto e excessivas intervenções durante o trabalho de parto e parto. A maioria das mulheres de baixo risco obstétrico ficou em jejum, deitadas no leito, sem se movimentar durante o trabalho de parto. Foi também baixa a frequência do uso de métodos não farmacológicos para diminuir a dor e do uso do partograma.
Durante o trabalho de parto foi frequente o uso de cateter venoso para viabilizar o gotejamento de ocitocina e foi excessiva a prática de aminiotomia para aumentar as contrações e aceleração do trabalho de parto. Quase todas as mulheres pariram deitadas, sendo a recomendação que o façam em posição verticalizada, da sua escolha. Também foram muito elevados os índices de episiotomia e de cesarianas, ambas, acima de 50% dos partos. Em resumo, a atenção ao parto não promoveu a fisiologia do processo e foi muito doloroso e intervencionista.
Para os recém-nascidos um panorama parecido com esse foi também ofertado: baixo uso das práticas benéficas de contato pele a pele e aleitamento materno após o nascimento, bem como uso de enfermaria, separando a mãe do seu filho. Intervenções como aspiração das vias aéreas e gástrica em recém-nascidos saudáveis também estiveram muito presentes.
3. Quais são as principais diferenças na atenção prestada às gestantes se comparados os setores público e privado?
São algumas, as principais são o excessivo número de cesarianas e a grande presença de familiares como acompanhantes para as usuárias do setor privado. No setor público houve mais parto normal, menor presença de acompanhante, mas maior contato da mãe com o bebê após o nascimento. Também foi mais referido maus tratos psicológicos e verbais, principalmente pelas mulheres de mais baixa escolaridade e de pele escura.
4. A senhora observou a interferências dos Determinantes Sociais da Saúde ao analisar os dados coletados no estudo? Quais são elas?
Alguns aspectos foram comentados nas questões anteriores, mas há, de fato, iniquidades no acesso durante a atenção pré-natal, na peregrinação em busca de uma maternidade para parir, na presença de acompanhante contínuo, no trato dos profissionais de saúde com as usuárias e na disponibilidade de analgesia obstétrica. Há muitas iniquidades sociais nesses aspectos, mas há uma iniquidade inversa para as mulheres de nível socioeconômico mais elevado que fazem cesariana e sofrem consequências danosas não somente para elas, como para os seus recém-nascidos.
5. O estudo cita que uma média de 70% das gestantes desejaria ter o parto natural, certo? Por que isto não está acontecendo?
Em geral, a maioria das mulheres, mesmo no setor privado de saúde começa a gestação querendo um parto normal e é durante o pré-natal que muda e aumenta a opção pela cesariana. Há também um conjunto de mulheres (29%, no nosso estudo) que já inicia a gestação querendo uma cesariana, a maioria delas é multípara, mais de 20% já teve uma cesariana anterior e um terço delas querem cesariana para fazerem ligadura de trompas.
Há um aspecto da conveniência médica colaborando de forma importante para os altos índices de cesariana. Para os médicos é mais confortável ter os partos agendados previamente porque não interfere no dia a dia deles, não precisam ficar à disposição das pacientes nos finais de semana, à noite, feriados, etc. e no Brasil, como em outros países, as mulheres confiam nos seus médicos. Se eles dizem que a cesariana é muito segura, que não implica em riscos para ela e seu bebê, a mulher acredita.
E assim, a cesariana se incorporou no imaginário da sociedade brasileira como uma forma segura de parir, muito embora a maioria das mulheres desejem um parto normal ao início da gravidez e esse desejo vai mudando durante a gestação, para as que frequentam os serviços de saúde privados, como já falado antes.
Precisa se chamar a atenção também para o grande movimento de mulheres em todos os estados do Brasil clamando contra isso e pelo direito de ter o parto que desejam. Isso tem saído muito na imprensa, inclusive mulheres de classe média alto indo parir em maternidades públicas que oferecem outro tipo de opção para elas.
6. Muitas mulheres passam por cirurgias, sendo que poderiam ter o parto normal. Quais medidas podem ser adotadas para mudar este quadro?
Existem vários movimentos em curso no Brasil para reduzir cesarianas e principalmente para melhorar a qualidade da atenção ao parto normal, tanto no setor público, onde é majoritário, quanto no setor privado, nesse último, com poucas experiências. Várias maternidades públicas estão investindo na mudança da ambiência física e relacional entre usuárias e profissionais de saúde, com resultados animadores. Existe um programa do governo federal chamado Rede Cegonha que vem estimulando essas mudanças e oferecendo inclusive compensações financeiras aos serviços que aderirem a esse novo modelo. Sabemos que o medo do parto normal ruim como o que se oferta hoje para as mulheres alimenta as taxas de cesariana, conforme foi verificado no nosso estudo. Assim, melhorar o parto normal é em si uma estratégia para reduzir cesarianas.
Mudanças na formação dos profissionais de saúde enfatizando o reaprendizado da atenção ao parto normal e a priorização da enfermeira obstetra/obstetriz na atenção ao parto de baixo risco, num trabalho colaborativo com a equipe médica é outro aspecto a ser perseguido.
Fazer campanhas de esclarecimento às mulheres e às famílias é um outro foco que pode ajudar a mudar o atual estado dos indicadores de cesariana. Mulheres esclarecidas sobre os riscos da cesariana para ela e seus bebês poderão ter outra atitude em relação à escolha da via de parto. E os seus companheiros são também muito importantes para o sucesso dessa estratégia.
Outro aspecto interessante são os movimentos sociais das mulheres que apareceram em todas as partes do Brasil, estão presentes em todos os estados do país, brigando pelo direito de parir como elas querem, de acordo com os seus planos de parto.
Não é fácil mudar práticas clínicas arraigadas ao cotidiano da atenção dos profissionais de saúde, mas ocorre, já temos algumas experiências bem sucedidas no Brasil, como no caso da substituição da hidratação venosa pela oral, dentre outras. Com tantos movimentos em curso, tenho esperança que já estejamos dentro de um processo de mudança.
*Foto da home: Virginia Damas/ENSP/Em: http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/117/reportagens/parto-e-nascimento-com-cidadania
Entrevista com:
Bom dia Maria Do Carmo; parabéns pela entrevista e excelente trabalho!
Gostaria de seu contato.
Lizanka Marinheiro.
Endocrinologista
IFF-Fiocruz
Prof. Pós- Graduação em Saúde da Mulher e da Criança e
Pesquisa Clínica Aplicada à Saúde da Criança