Tá lá o corpo estendido no chão…”: um panorama da epidemia de violência no Brasil

A violência é um importante problema de saúde pública no Brasil. Ocupa o terceiro lugar como causa de mortalidade, é a origem de grande proporção da morbidade, ocupa a sexta posição como principal causa de internações, e apresenta elevada prevalência no quesito violência doméstica. Essa afirmação, endossada por Reichenheim e colaboradores, foi publicada na série especial Lancet Brasil, onde os autores apresentam o estado da arte da violência em geral e da violência relacionada ao trânsito no cenário brasileiro. Os autores consideram a violência como uma exposição que afeta de maneira relevante a saúde dos brasileiros, representando um ônus de grande intensidade para o setor saúde e que resulta em altos custos individuais e coletivos. Além disso, apontam para determinantes bem definidos e com preferências, segundo os diferentes tipos de violência, por estratos sócio-econômicos, raça, faixa etária, gênero e nível de escolaridade, rotulando tanto aqueles que cometem quanto aqueles que sofrem a violência.

Devido a sua relevância, o tema violência já foi noticiado anteriormente no site da CMDSS, relatando sobre programas específicos de combate e ações estratégicas que interferem positivamente na sociedade e na redução da criminalidade. Porém, antes mesmo de colocarmos em prática programas e ações específicas bem-sucedidas, é fundamental conhecer a “cara” da violência em nosso contexto, e foi o que realizou Michael Reichenheim e os demais autores para o periódico Lancet, ao descreverem a epidemia de violência no Brasil. Inicialmente os autores citam que os nossos padrões de violência diferem de outros países, pois a maior parte dos óbitos é causada por homicídios ou está relacionada ao trânsito, além de terem origens históricas no processo de desenvolvimento do país. Comentam, também, que a insegurança sentida por muitos brasileiros não é sem fundamentos, se origina de uma combinação de altas taxas de criminalidade, particularmente violência interpessoal, associada à impunidade generalizada, ao abuso de álcool e drogas ilícitas, e à ampla disponibilidade de armas de fogo.

Do ponto de vista de uma epidemia, todos são afetados por uma fonte comum: uma estrutura social desigual e injusta. Homens jovens (de 20 a 29 anos), negros e pardos, com baixo grau de instrução (4-7 anos de escolaridade), e pobres, são as principais vítimas e perpetradores de violência comunitária, enquanto mulheres negras e pobres são as principais vítimas de violência doméstica. No Brasil, os homens correm dez vezes mais risco de morrer por homicídio que as mulheres e as diferenças por faixa etária são igualmente marcantes. Geograficamente, também existem desigualdades na ocorrência violência. O Nordeste apresenta altos índices de vitimização, e Alagoas apresenta uma taxa de vítimas negras 11 vezes maior do que brancas, o mesmo ocorrendo na Paraíba, Amapá, Amazonas e Pernambuco (Waiselfisz, 2011).

Concordamos com Minayo & Souza (1993) quando dizem que os diversos tipos de violência constituem uma rede intrincada e complexa, que percorre questões desde o crescimento da desigualdade sócio-econômica até a perda do poder aquisitivo diante de uma sociedade consumista, discriminadora e sem políticas públicas intersetoriais adequadas à população. Além disso, Michael Reichenheim e colaboradores comentam que fatores como o crescimento desordenado das cidades, com migração da população para as periferias das cidades de pequeno e médio porte, onde a infra-estrutura não é adequada, associados às altas taxas de desemprego, principalmente em indivíduos com baixo nível de educação formal, e redução no cumprimento da lei, são considerados incentivadores dos altos níveis de violência atual.

Outro grande problema, citado no artigo da série especial Lancet Brasil, são os maus tratos a crianças e adolescentes por parte dos pais, a violência entre parceiros íntimos e a violência doméstica contra pessoas idosas. As estatísticas de mortalidade sugerem que uma mulher é morta a cada duas horas no Brasil. A prevalência geral de agressões psicológicas nos casais foi de 78,3%; os denominados abusos físicos menores apresentaram 21,5%; e os abusos físicos graves representaram 12,9%. Apesar da relevância, ainda temos poucos dados sobre a violência em idosos no Brasil, somente dois estudos de base populacional mostram uma prevalência de aproximadamente 10% no caso de abuso físico perpetrado por algum membro da família ou cuidadores.

Reichenheim e os demais autores indicam a existência de uma gradiente regional em relação à forma de abuso físico grave, além da influência do grau de escolaridade e da idade, covariáveis associadas à violência doméstica. Citam que muitos estudos brasileiros identificaram fatores de risco socioculturais para a violência doméstica, como a desigualdade entre os gêneros, a permissividade em relação à violência na educação durante a infância, desvalorização das pessoas idosas, condições socioeconômicas precárias, fraca rede de apoio e isolamento social. Embora, a história de violência familiar e o uso de álcool e drogas ilícitas também desempenhem papéis importantes.

Quanto à violência no trânsito, representam quase 30% de todos os óbitos por causas externas no Brasil e envolvem especialmente homens (81,2% dos óbitos em 2007). Apesar da redução dos óbitos a partir de 2007, em parte atribuído ao novo Código Nacional de Trânsito, as taxas no Nordeste, por exemplo, permaneceram estáveis (28 óbitos por 1000.000), e o pior problema hoje está concentrado nos motociclistas. Reichenheim e colaboradores sugerem que além da mortalidade elevada, as sequelas físicas e psicológicas são significativas, principalmente em vítimas jovens. Além disso, a internação hospitalar decorrente de lesões relacionadas ao trânsito é muito dispendiosa do que às causadas por outros motivos.

Embora os autores critiquem as políticas de segurança, que operam muito mais em termos de confrontação e repressão do que em termos de serviços de inteligência compartilhados e prevenção, citam o Programa Primeiro Emprego, o Programa Bolsa Família, e o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, como exemplos de medidas macroestruturais implementadas pelo governo brasileiro visando a prevenção à violência. Bem como a Lei Maria da Penha, o Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, e o Estatuto do Idoso de 2003, que visam proteger casos suspeitos ou confirmados de violência.

Apesar de nos últimos 15 anos ter havido mudanças em nível macro, envolvendo melhoria da qualidade de vida, redução da pobreza e desigualdade social, redução do desemprego, aumento do acesso à educação, mobilidade social e promoção da inclusão social, ainda há muito a ser corrigido, desenvolvido e aplicado. O brasileiro presencia, com certa frequência, “corpos estendidos no chão”*, e é testemunha ocular ou por meio da mídia de homicídios, de violência doméstica e de acidentes no trânsito. Isso gera, por vezes, uma sensação de banalização da situação e, até mesmo, impotência dos indivíduos, principalmente em algumas cidades brasileiras. Mas apesar dessa aparência, o Governo e alguns segmentos da sociedade parecem não estar de braços cruzados, e têm como principal desafio avaliar os avanços conquistados até o presente momento, a fim de identificar, ampliar, integrar e dar continuidade aos bem-sucedidos. Reichenheim e colaboradores pontuam a existência de um compromisso renovado, principalmente nos últimos anos, entre a sociedade civil e os órgãos públicos para construir uma consciência nacional sobre a violência e as lesões, além do grande avanço em termos de legislação e planos de ação. Reforçam, ainda, que para reduzir a violência, o Brasil precisa buscar o fortalecimento e organização do Estado, oferecendo educação para todos e promovendo o diálogo entre os organismos de cumprimento da lei e os segmentos menos favorecidos da sociedade.

De acordo com Minayo e Souza, “os jovens pobres são as malhas frágeis desta rede de violência”. É o grupo que anseia por uma sociedade mais igualitária que os ofereçam melhores chances, contrapondo-se a alternativa do crime, que é a forma mais imediata de conquistar seus anseios de consumo. Arriscamo-nos a complementar que além de jovens e pobres, os negros e aqueles com pouca escolaridade são o elo friável da sociedade brasileira, devem ser a população-alvo de ações e estratégias que visem à prevenção do crime, considerando a integração inter e intra-setorial como uma necessidade urgente e experiências que respeitem e promovam os direitos humanos e diminuam as iniquidades sociais.

*Citou-se:“ Tá lá o corpo estendido no chão…” em alusão à música “De Frente pro Crime” de João Bosco e Aldir Blanc, lançada em 1975 no LP “Caça à Raposa”.

Referências Bibliográficas

Minayo MCS, Souza ER. Violência para todos. Cad Saúde Pública. 1993 Jan-Mar;9(1):65-78.

Reichenheim ME, Souza ER, Moraes CL, Jorge MHPM, Silva CMFP, Minayo MCS. Violência e lesões no Brasil: efeitos, avanços alcançados e desafios futuros. Health in Brazil. The Lancet [periódico na internet]. 2011 Maio 9 [acesso em 09 set 2011]:75-89. Disponível em: download.thelancet.com/flatcontentassets/pdfs/brazil/brazilpor5.pdf

Vettore MV, Lamarca G. Projeto Fica Vivo: ações estratégicas, mobilização e participação social interferem positivamente na sociedade. Rio de Janeiro: Portal DSS Brasil; 2011.

Waiselfisz JJ. Mapa da Violência 2011: os jovens do Brasil. São Paulo: Instituto Sangari; Brasília (DF): Ministério da Justiça; 2011.

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