A determinação social no processo de adoecimento no contexto das populações negligenciadas

(imagem: Kauan Kaizen: Wiki Common)

A influência da determinação social no processo de adoecimento parte do pressuposto de que a saúde é um fenômeno social e humano, considerando os indivíduos nas dimensões de seus processos sociais e históricos, na expressão de formas específicas de relações entre as pessoas e destas com a natureza, relacionadas com a história e a práxis humana, isto é, com os espaços de liberdade dos indivíduos e da coletividade.

As evidências empíricas nos permitem observar que existe uma relação entre o processo social e o processo saúde-doença. Sem dúvida esta observação, por si mesma, não resolve qual é o caráter desta relação. Isto porque temos, por um lado, o processo social e, por outro, o processo biológico, sem que seja imediatamente visível como um se transforma no outro. Esse é, talvez, o problema mais cáustico para a explicação causal social do processo saúde-doença. Dessa forma, a re?exão sobre o caráter social do processo da saúde-doença abre alguns caminhos a serem explorados.

Um desses caminhos é considerar a natureza complexa, subjetiva e contextual da relação entre saúde-enfermidade e dos processos constituintes das iniquidades sociais, substituindo a clássica abordagem de fatores de risco por modelos de vulnerabilidade, mais sensíveis às especificidades simbólicas e ao caráter interativo da relação entre os sujeitos humanos e seu meio (ambiental, cultural, social e histórico).

Desse modo, podemos aprofundar a compreensão de que qualquer evento ou processo social, para representar uma fonte potencial de risco para a saúde, necessita estar em ressonância com a estrutura epidemiológica dos coletivos humanos. Não se trata exclusivamente da ação externa de um elemento ambiental agressivo, nem da reação internalizada de um hóspede susceptível, mas sim de um sistema complexo (totalizado, interativo, processual) de efeitos patológicos. E no arcabouço da proposta de influência dos determinantes sociais na situação de saúde de indivíduos e populações está a necessidade do combate às iniquidades em saúde por eles geradas.

A iniquidade é uma noção multidimensional, na medida em que afeta indivíduos, grupos e comunidades em planos distintos de seu bem-estar, de diferentes formas e intensidades, sendo a combinação de fatores que possam produzir uma deterioração de seu nível de bem-estar, em consequência de sua exposição a determinados níveis de vulnerabilidades. Neste sentido, as iniquidades correspondem às diferenças sistemáticas e relevantes, que são simultaneamente, desnecessárias, evitáveis e injustas socialmente.

As iniquidades expõem a situação de vulnerabilidade que veda ou bloqueia indivíduos, famílias ou grupos fragilizados socialmente de adquirirem os ativos necessários à sua reprodução objetiva e subjetiva, capazes de dotar seus portadores das condições materiais e sociais que promovem a participação dos indivíduos na sociedade sob bases consideradas socialmente como legítimas.

Em sociedades de classes, as relações que se estabelecem entre as classes determinam diferentes possibilidades e restrições ao desenvolvimento da vida e, consequentemente, diferentes formas ou possibilidades de viver, adoecer e morrer. Nessas sociedades, uma classe terá maior ou menor desgaste no trabalho e maior ou menor possibilidade de acesso aos produtos da produção social, na dependência como se insere na produção de consumo.

Nessa conjuntura, a estratificação da população em classes sociais expressa fortemente o contexto da iniquidade social, as quais são definidas em termos da distribuição do excedente econômico, de acesso ao poder e oportunidades. Esta estratificação social molda a reprodução das iniquidades sociais, que configuram e que contribuem para a distribuição desigual e injusta dos fatores materiais, biológicos, psicossociais e comportamentais, produtores de saúde e bem-estar, e resultam em distintos perfis epidemiológicos e padrões de acesso a bens e serviços.

O Brasil, apesar de ser considerado um dos países emergentes, em função do seu potencial econômico gerador e consumidor de bens, abriga em suas aparentes contradições de processo de desenvolvimento e geradas por ele, o estigma de aberrantes desigualdades sociais. Todavia, causas e efeitos estruturais de nossa condição periférica nas relações econômicas internacionais são expressos, por exemplo, nos discrepantes níveis de desenvolvimento regional, de concentração de renda e de desenvolvimento científico tecnológico industrial.

Para essa compreensão, o subdesenvolvimento explica-se de forma objetiva pelas condições de dependência econômica, que por seu turno é gerada, condicionada e regulada a partir de fora, por vetores conjunturais e estruturais do mercado mundial, nas políticas macrossociais, ou seja, mais influenciada pelos organismos supranacionais do que pelos modelos locais. O regime de classes, numa economia capitalista subdesenvolvida, possui como substrato material uma situação de mercado dependente e como suporte sociocultural os recursos de uma civilização nucleados no exterior.

Não há dúvida de que a capacidade de produzir conhecimentos é um dos fatores determinantes da distribuição do poder econômico, em nível mundial. Os países que têm o melhor índice de produção de conhecimentos se encontram na liderança da economia. Além desse desequilíbrio global do poder, que tem sua origem não mais no uso da força e das armas, mas no domínio do conhecimento, os avanços científico-tecnológicos envolvem outros importantes desafios: a distribuição igualitária desses avanços para o estímulo ao crescimento equânime das diversas sociedades.

A partir da preponderância do capitalismo nas formações sociais, a relação do trabalho para responder as necessidades humanas e o estabelecimento de relações sociais também mais ampliadas e solidárias ficaram sobredeterminados pela nova necessidade social – a produção de excedentes e do lucro, tomados como maior finalidade do trabalho.

Na perspectiva do capitalismo, para as populações marginalizadas, a vida torna-se uma insídia que não vale a pena ser vivida porque é portada por seres que não dão lucro. E não dão lucro não porque não queiram ou não possam, mas simplesmente porque são deserdados do sistema. A sociedade cada vez menos se divide em classes, em partidos, em favoráveis ou desfavoráveis, mas em excluídos ou incluídos, úteis ou supérfluos. A necessidade social no modo de produção capitalista é a expansão do capital, as expensas do desenvolvimento e aprimoramento das necessidades humanas dos indivíduos. A própria vida, como diríamos, torna-se supérflua, inútil. Por detrás disso, está a matriz de tudo, que jamais é mencionado: o lucro.

Inseridas nesse constructo, as políticas de saúde aparecem como reflexo dos interesses do capital, seja como fruto do Estado visto como mero “comitê” destinado a gerir os negócios comuns a toda a burguesia, seja como resultado da ação de um Estado dotado de uma “autonomia relativa”, mas que em “última instância” vela pelos interesses do capital.

Influenciados por esse modelo de reprodução capitalista, resultando em diversos níveis de exclusão social, os diferentes padrões ou características de saúde-doença que se concretizam no corpo biopsíquico dos indivíduos têm sua gênese nas condições materiais da vida cotidiana, ou seja, nos perfis de reprodução social em que se desenvolvem como seres sociais.

Nesse contexto, emergem nos grupos sociais mais frágeis as mais diversas matizes de agravos à saúde que afetam predominantemente as populações mais pobres e vulneráveis, e que contribuem por sua vez para a perpetuação dos ciclos de pobreza, desigualdade e exclusão social, em razão principalmente de seu impacto na saúde infantil, na redução da produtividade da população trabalhadora e na promoção do estigma social.

Esses agravos chamados “doenças da pobreza” ou doenças negligenciadas, afetam bilhões de pessoas que vivem em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. Por sua natureza crônica e incapacitante, mantém as populações mais pobres mergulhadas na pobreza e causam um impacto substancial sobre a saúde em populações dos continentes africano, asiático e americano, e em particular da América Latina.

A cada dia, cerca de três mil pessoas morrem no mundo vítimas de doenças negligenciadas como malária, leishmaniose visceral, doença de Chagas e doença do sono. São mais de um milhão de mortes por ano. Um dos motivos para esse quadro epidemiológico é a falta de ferramentas adequadas para o diagnóstico e tratamento destas doenças, além de investimentos insuficientes em pesquisa.

Apenas 1,3% dos medicamentos disponibilizados entre 1975 e 2004 foi para as doenças negligenciadas, apesar desse grupo de enfermidades representarem 12% da carga global de doenças no mundo. As populações marginalizadas, pobres ou em situação de miséria, que são as mais afetadas por essas doenças, não constituem um mercado lucrativo para as indústrias farmacêuticas.

Os investimentos em pesquisa geralmente não se revertem em desenvolvimento e ampliação de acesso a novos medicamentos, testes diagnósticos, vacinas e outras tecnologias para a prevenção e controle dessas doenças. O problema é particularmente grave em relação à disponibilidade de medicamentos, já que as atividades de pesquisa e de desenvolvimento das indústrias farmacêuticas são principalmente orientadas pelo lucro, e o retorno financeiro exigido dificilmente seria alcançado no caso de doenças que atingem populações marginalizadas, de baixa renda e pouca influência política, localizadas, majoritariamente, nos países em desenvolvimento. Um aspecto adicional que contribui para a manutenção dessa situação diz respeito à baixa prioridade recebida por essas doenças no âmbito das políticas e dos serviços de saúde.

O impacto socioeconômico da ocorrência dessas doenças, resultando em perdas produtivas e gastos em saúde, devido à morbidade e mortalidade que ocasionam, provocam a perda de milhões de dólares a cada ano, com tratamentos ambulatoriais, internações, anos potenciais de vida perdidos, anos vividos com incapacidade e anos de trabalho potencialmente perdidos. São os custos econômicos e sociais que impactam negativamente no bem estar social das populações e nos sistemas de saúde de países pobres, contribuindo para a manutenção do ciclo de subdesenvolvimento.

A rigor, negligenciadas são as populações atingidas e não necessariamente as doenças. A não garantia dos direitos sociais mínimos coloca esses indivíduos em situação de exclusão social, interferindo no usufruto do direito à saúde e outros direitos básicos. Largos extratos da população sofrem não somente a ausência do Estado, mas a omissão ativa, que privilegia parcelas reduzidas e aquinhoadas da sociedade, caracterizando verdadeira violação dos direitos humanos, em franca oposição aos fins legitimadores da razão de constituição e de existência do Estado.

Negligenciar populações é negligenciar processos de trabalho numa perspectiva intersetorial, sem reconhecer as necessidades de saúde das diferentes classes sociais que compõem o território. Negligenciar populações é negligenciar o pressuposto de que o estado deve ser responsável pela garantia dos diversos serviços que promovem o bem-estar social da população, e que sua ausência está intimamente ligada à falta de acesso a direitos universais, representados pelo acesso ao consumo de bens produzidos nos serviços públicos. É negligenciar as necessidades de reprodução social, pois estas constituem a base do processo saúde-doença (as diferentes formas de produzir e de consumir na sociedade); e, por fim, negligenciar populações é negligenciar a necessidade de participação política, pois a distribuição de poderes é a instância que possibilita a discussão e o embate das necessidades e dos interesses das classes e grupos organizados da sociedade civil, colocando em pauta os direitos antes dos interesses.

Essas desigualdades sociais continuam sendo um entrave ao crescimento do Brasil e de outros países emergentes. O enfrentamento dessas desigualdades sociais e as iniquidades em saúde por elas geradas requerem a estratégia de políticas macrossociais, tais como políticas econômicas e sociais que modifiquem a estratificação social; políticas que modifiquem as condições de exposição e vulnerabilidade dos grupos sociais e políticas que atuem sobre as consequências negativas das desigualdades, buscando minimizar o impacto de seus efeitos.

É na saúde que incidem o descaso, a inoperância e a omissão de um conjunto amplo de políticas sociais e econômicas. Por isso, saúde é o principal marcador de qualidade de vida – o mais sensível e que produz maiores evidências. Isso confere um papel de protagonismo das políticas de saúde no conjunto das políticas públicas, imprimindo uma forte marca de intersetorialidade e abolindo a intensa fragmentação das populações-alvo objetos dos diversos programas governamentais.

Em diversos países, sobretudo na América Latina, como resposta à “falência dos experimentos neoliberais anteriores”, têm se testemunhado a emergência de diferentes governos progressistas, com desenvolvimento de políticas sociais amplas, demonstrando significativa sensibilidade a essas demandas. Isso tem proporcionado um processo de integração regional, bem como possibilitado uma inserção mais soberana desses países no cenário internacional.

Convém ressaltar, entretanto, que a ascensão destes atores políticos tem o desafio de instituir políticas macroeconômicas e de mercado de trabalho, de proteção ambiental e de promoção de uma cultura de paz e solidariedade que visem promover um desenvolvimento sustentável, reduzindo as desigualdades sociais e econômicas, a violência, a degradação ambiental e seus efeitos sobre a sociedade. O desafio é garantir políticas que assegurem a melhoria das condições de vida da população, superando abordagens setoriais fragmentadas e promovendo uma ação planejada e integrada dos diversos níveis da administração pública.

Referências Bibliográficas

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Entrevista com:

3 Comentário

  1. Dia Mundial da Saúde: Populações Vulneráveis
    Quinta-feira, 5 de abril de 2018 às 14:00 – 17:00
    EEAAC – Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa, Universidade Federal Fluminense
    Rua Doutor Celestino, 74 – Centro, 24020-091 Niterói
    Neste dia, o lugar da fala será preferencialmente de pessoas pertencentes aos grupos populacionais vulneráveis que são atendidos pelas políticas de equidade do SUS: população negra (incluído povos de terreiros, #PNSIPN), população LGBT+, povos ciganos, população do campo, florestas (quilombolas, por ex) e águas (caiçaras, por ex), bem como população em situação de rua, entre outro grupos socialmente vulneráveis, considerando as identidades de gênero (mulheres negras, por ex) e de geração (juventude negra, idosos, deficientes e crianças).
    https://www.facebook.com/events/1831994097100617/

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