Série: A Saúde na Agenda de Desenvolvimento pós-2015 (2)

O processo de consulta sobre o tema saúde na agenda de desenvolvimento pós-2015, descrito em matéria anterior, contou com uma importante contribuição da Associação Internacional de Epidemiologia (AIE) assinada por Cesar Victora e outros. Neste documento os autores analisam o cumprimento dos objetivos de desenvolvimento do milênio (ODM) e sugerem indicadores de saúde para a agenda pós-2015, os quais, em grande medida, foram adotados pelo relatório que serviu de base para as discussões da reunião de Botswana realizada de 4 a 6 de março de 2013 (Report of the Global Thematic Consultation on Health).

A seguir transcrevemos parte deste documento:

Deve haver um objetivo de saúde?

Três dos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) estiveram relacionados com a saúde (ODM 4 sobre mortalidade infantil, ODM 5 sobre a saúde materna e ODM 6 sobre o HIV / AIDS, a malária e outras doenças infecciosas). Como resultado, tem havido alguma relutância em incluir um objetivo específico de saúde na agenda global pós-2015, como ficou evidenciado pela ausência de saúde no primeiro rascunho do documento da Conferência Rio +20.

No entanto, o progresso no alcance dos ODM de saúde tem sido insatisfatório. Dos 75 países que concentram mais de 95% das mortes maternas e infantis, apenas 23 estão no bom caminho para alcançar o ODM 4 e 9 para o ODM 5. Quanto ao ODM 6, o progresso contra o HIV / AIDS, malária e tuberculose tem sido variável, apesar de substanciais investimentos financeiros. Em particular, poucos países da África Sub-Saariana irão atender a qualquer dos ODM. Acreditamos que a exclusão de um objetivo de saúde seria um erro grave. Não se deve abandonar um objetivo porque tem sido difícil alcança-lo. Há uma clara agenda inacabada sobre a saúde das mães e crianças, e no controle de doenças infecciosas, que deve continuar a ser perseguida. Além disso, a crescente conscientização sobre a carga de doenças não transmissíveis dominante na maioria dos países, independentemente do seu nível de desenvolvimento econômico, indica a necessidade de reforçar objetivos de saúde, em lugar de retirá-los da agenda internacional. “Integração” é uma palavra-chave na atual rodada de discussões. Uma população saudável é um pré-requisito essencial para o desenvolvimento social e econômico inclusivo, e vice-versa. A AIE, portanto, apoia fortemente a inclusão de pelo menos um objetivo explícito de saúde na agenda pós-2015.

Qual deve ser o objetivo de saúde abrangente?

Alcançar a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade” (http://www.who.int/about/definition/en/print.html) pode ser muito ambicioso, bem como de difícil operacionalização. Por outro lado, deve-se evitar a definição de objetivos de alcance muito estreito, o que pode levar à competição entre os encarregados de sua execução e pode ter sido o caso com relação aos ODM. Um objetivo de saúde abrangente, estruturado em termos de expectativa de vida em diferentes idades, vai destacar a necessidade de dar conta simultaneamente das doenças transmissíveis e não transmissíveis, de todos os grupos de idade, de ambos os sexos, e de uma grande variedade de determinantes de morte e doença. Focalizar na expectativa de vida não apenas evita um foco estreito em ações específicas, como também salienta a necessidade de um amplo compromisso e coordenação intersetorial.

Expectativa de vida em diferentes idades são indicadores “duros” que podem ser medidos em todos os países, com suficientes investimentos para desenvolver capacidades em demografia e epidemiologia. Além disso, o significado, o valor e a relevância da expectativa de vida são amplamente compreendidos pelo público em todos os países.

A expectativa de vida é sensível às forças sociais e políticas que moldam o desenvolvimento humano, tanto nos países ricos e como nos mais pobres. Ela é afetada por diversos fatores, como a obesidade nos Estados Unidos, o álcool na Rússia, o HIV / AIDS na África Sub-Saariana, o homicídio na América Latina e a guerra no Afeganistão.

A melhoria contínua da expectativa de vida num período de dois séculos em países ricos mostra que o progresso rápido é alcançável. Esta afirmação é apoiada pelos grandes avanços recentes em países como o Brasil ou a Coreia do Sul.

A investigação epidemiológica mostra que a saúde mental, demência e outras deficiências – embora muitas vezes não afetem a expectativa de vida como tal – representam uma grande fração da carga total de problemas de saúde em uma comunidade. No entanto, há grandes dificuldades para medir expectativa de vida saudável ao nível de país, e antes que seja construída a capacidade para monitorar tal objetivo, seria prematuro adotá-lo como o objetivo primário de saúde.

A AIE recomenda que a expectativa de vida deva ser o indicador primário para o objetivo de saúde e a expectativa de vida saudável um indicador secundário. Ambos indicadores vão requerer investimentos substanciais para a coleta e análise de dados em nível de país, uma questão que abordamos abaixo.

Que indicadores, metas e prazos devem ser definidos?

Muito se aprendeu com a experiência dos ODM, incluindo o fato de que a devida atenção deve ser dada para a mensurabilidade e intervalo de tempo dos indicadores que estão sendo monitorados. Os ODM foram adotados em 2000, mas a linha de base para o estabelecimento das metas foram valores de 1990. Esta decisão peculiar se deve provavelmente à falta de dados para estabelecer a linha de base em 2000. Aos países foram, portanto, dados 25 anos (1990-2015) para alcançar um objetivo, porém, 10 anos já haviam decorrido no momento do em que esse objetivo foi criado. A definição dos valores da linha de base não pode ser feita retroativamente. Esforços de pesquisa devem ser intensificados imediatamente para permitir a medição adequada dos valores da linha de base em 2015.

Alguns indicadores dos ODM foram impossíveis de medir diretamente na maioria dos países. A taxa de mortalidade materna é um excelente exemplo. Na ausência de registros de nascimento e morte funcionais e com alta cobertura, as estimativas da mortalidade materna para os ODM são feitas através de modelos de regressão com base no produto interno bruto, educação feminina, prevalência do HIV, mortalidade feminina e, em alguns casos, a cobertura da atenção ao parto com pessoal qualificado. Estimativas a partir de modelos podem ser melhor do que nada, mas responsabilizar os países pela falta de progresso quando o resultado real é impossível de medir deve ser evitado no futuro. Esta é uma das razões pelas quais a expectativa de vida pode ser preferível à expectativa de vida saudável como o indicador chave para um objetivo de saúde.

Um objetivo requer uma meta. Com exceção de um par de pequenos países muito ricos, a mais alta expectativa de vida ao nascer a nível nacional é de cerca de 84 anos. Os países com as expectativas de vida mais curtas estão perto de 50 anos. Tais diferenças de níveis devem ser consideradas na definição de metas.

Uma meta de expectativa de vida pode ser expressa como um aumento absoluto (por exemplo, aumento da expectativa de vida em X anos em todos os países até 2030) ou um aumento relativo (por exemplo, diminuir em um terço até 2030 a lacuna entre a expectativa de vida observada em um país em 2015 e, digamos, 85 anos). Ambas as formulações têm vantagens e desvantagens que devem ser amplamente discutidas e submetidas a exercícios de simulação com dados reais antes de serem adotadas.

Mais que um indicador para a expectativa de vida deve ser usado. Por exemplo, a expectativa de vida ao nascer é fortemente influenciada pelas mortes de recém-nascidos e crianças em países pobres, e reflete os esforços para controlar estas mortes. Expectativa de vida aos 40 anos, por outro lado, seria um indicador valioso dos esforços para reduzir a mortalidade por doenças não transmissíveis. Ambos os indicadores devem ser monitorados, como parte do objetivo expectativa de vida. Diferença de vida, uma medida da variabilidade das idades de morte dentro de uma população, seria um indicador útil adicional para expressar desigualdades.

Um amplo processo de discussão metodológica será uma grande melhoria em relação às decisões arbitrárias por trás dos ODM originais. As metas devem ser ambiciosas, mas realistas.

O fato de que apenas 9 dos 75 países estão no bom caminho para alcançar os ODM da mortalidade materna (assumindo que as estimativas a partir de modelos refletem as tendências reais) indica que uma discussão mais sutil deveria ter precedido a definição desta meta. Erros custosos poderiam ter sido evitados através de uma ampla consulta com profissionais especialistas em saúde da população.

A comunidade epidemiológica internacional teve pouco ou nenhum envolvimento no desenvolvimento dos ODM originais. Felizmente, esses erros podem ser evitados através da consulta atualmente em curso para os objetivos pós-2015 (www.worldwewant.org /health).

Objetivos de segundo nível também devem ser propostos?

A Organização Mundial de Saúde está pressionando por um único objetivo abrangente de saúde baseado na Cobertura Universal de Saúde. Este objetivo tem dois componentes: a cobertura de serviços de saúde necessários (prevenção, promoção, tratamento e reabilitação) e a cobertura de proteção de risco financeiro, para evitar gastos de saúde catastróficos. A Cobertura Universal de Saúde tem uma dimensão de equidade intrínseca que estava ausente nos ODM de saúde. Apesar de que um grande número de análises de equidade tenha sido realizado no processo de monitorar os ODM de saúde, estes foram originalmente desenhados em termos de medidas para a população em geral, não importando quem possa ter sido deixado para trás. O conceito de atingir cada indivíduo é, portanto, um avanço em relação aos objetivos anteriores e deve ser fortemente apoiado.

O monitoramento estratificado pela equidade é essencial para controlar o progresso do alcance da nova rodada de objetivos. A OMS também defende um objetivo de expectativa de vida, mas argumenta que “é mais bem vista como uma medida abrangente de todos os aspectos de desenvolvimento, incluindo, mas não limitada à saúde”.

Nós discordamos desta visão. Argumentamos que ter um objetivo abrangente de saúde que também reflete outros aspectos do desenvolvimento – lembrando que a saúde é um dos principais motores de desenvolvimento – é altamente desejável, não só para os envolvidos na saúde pública, mas também para a sociedade como um todo.

Ao mesmo tempo em que apoiamos totalmente a Cobertura Universal de Saúde como um objetivo de segundo nível, nos preocupamos com a colocação de cobertura como o objetivo único de saúde por enganosa e inadequada. Embora essencial, a cobertura reflete ações preventivas e curativas prestadas a nível individual. Os ODM e os objetivos pós-2015 dizem respeito a melhorar o desenvolvimento das populações, para o qual a saúde é um componente essencial. Indicadores relevantes necessariamente devem ser capazes de medir desenvolvimento ao nível da população”.

Referência Bibliográfica

Health and the post-2015 development agenda [editorial]. Lancet. 2013 Mar 2;381(9868):699.

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