A dissonância entre o combate ao trabalho infantil e o seu impacto na perda da renda familiar total

Trabalho infantil está ligado à aspectos como a complementação na renda familiar total/ Imagem: Governo Federal

Indicador do Observatório sobre este tema:
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No Brasil, o combate ao trabalho infantil perpassa por questões referentes à garantia de direitos como os defendidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/90), onde é adotada uma doutrina de proteção integral aos mais jovens. Além disso, políticas públicas, como a Política Nacional de Saúde para a Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção do Trabalhador Adolescente, também guiam essa luta, e por meio de Portarias, como a MS/GM n.º 777 de 28 de abril de 2004, garante a elegibilidade de crianças e adolescentes acidentadas no trabalho como evento passível de notificação compulsória. No entanto, além das questões de direito e políticas próprias, existem aspectos econômicos importantes relacionados ao trabalho infantil, como a complementação na renda familiar total.

A miséria e a consequente falta de acesso a bens e serviços essenciais torna a participação infantil na renda familiar fundamental em famílias pobres. Como consequência, há uma exposição ocupacional precoce das crianças a uma série de situações danosas de natureza física e/ou psicológica, que podem resultar em prejuízos irreversíveis no decorrer de suas vidas. Por outro lado, é possível argumentar que a erradicação do trabalho infantil pode elevar os níveis de pobreza no país, principalmente onde não chegam programas sociais que permitam à população adulta substituir de forma compensatória a renda gerada pelas crianças (Muniz & Sobel, 2008). É nesse ponto que reside certa dissonância entre o combate ao trabalho infantil e o seu impacto na perda da renda familiar total.

No ano de 2001, a Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar (PNAD) mostrou que 5,5 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos de idade eram economicamente ativos (IBGE, 2001). Já em 2011, houve uma redução importante, passando para cerca de 3,7 milhões de trabalhadores nessa faixa etária, compreendendo 89 mil crianças de 5 a 9 anos de idade, 615 mil de 10 a 13 anos, e 3,0 milhões entre 14 e 17 anos, em sua maioria meninos. Entre 2009 e 2011 houve um declínio no nível de ocupação das pessoas de 5 a 17 anos em todas as regiões do Brasil, exceto na região Norte, onde houve um aumento de 10,1% em 2009 para 10,8% em 2011. As regiões Norte (10,8%) e Sul (10,6%) tiveram os maiores níveis de trabalho infantil em 2011, e o Sudeste, o menor (6,6%).

A importância da renda gerada pelo trabalho infantil no orçamento familiar parece ser uma forte condição para a inclusão da criança em alguma atividade laborativa, mesmo que esta complementação seja inferior a meio salário mínimo. Segundo o IBGE, em 2011, o rendimento mensal per capita real dos domicílios com trabalhadores de 5 a 17 anos de idade foi de R$ 452,00, enquanto o rendimento dos domicílios que não tinham trabalhadores de 5 a 17 anos foi de R$ 490,00. Essa diferença no rendimento mensal se deve a uma maior concentração de crianças de 5 a 13 anos realizando atividades agrícolas (63,5%), sendo a maioria (74,4%) trabalhadores não remunerados, trabalhadores para o próprio consumo e na construção para o próprio uso.

No nosso Observatório sobre Iniquidades em Saúde é possível avaliar, através do indicador socioeconômico 010210, a taxa de trabalho infantil (10 a 14 anos de idade), por ano (2001-2009), segundo região e faixa de renda domiciliar per capita. Os dados mostram que ao longo dos últimos anos houve uma diminuição gradual do trabalho infantil, que reduziu de 13,7% em 2001 para 9,2% em 2009. Além disso, observa-se um gradiente relacionado à faixa de renda domiciliar per capita, indicando que quanto menor a renda familiar, maior a taxa de trabalho infantil. Essa tendência é revelada em todas as regiões do Brasil e em todos os anos avaliados.

O indicador 010210 mostra que no ano de 2009, as regiões Norte e Nordeste foram as que apresentaram maior proporção de jovens de 10 a 14 anos no mercado de trabalho, seguindo também o mesmo gradiente inverso com a renda familiar. A região Sudeste apresentou o menor gradiente em relação à renda, pois a diferença entre as categorias de renda foi menor que 2%. Nas demais regiões, a diferença entre as categorias mais baixas, de ½ a 1 salário mínimo*, em relação às de até 2 a 2 ou mais salários mínimos, a proporção foi quase o dobro. Ou seja, famílias com maior renda tinham menor proporção de crianças trabalhando.

A redução no trabalho infantil, principalmente após a década de 2000, pode ter ocorrido em função da criação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), cujo principal objetivo foi contribuir para a erradicação de todas as formas de trabalho infantil no país. Mas também, pode ter sido um efeito da Emenda Constitucional (EC) nº 20 de 8 de dezembro de 1998, que alterou para 16 anos a idade mínima para um adolescente poder ingressar no mercado de trabalho, salvo no caso de atividades exercidas na condição de aprendiz, as quais podem ser praticadas a partir de 14 anos de idade. Contudo, o programa de transferência de renda condicionado à frequência escolar (Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à Educação – Bolsa Escola ou Programa Bolsa Escola Federal), implementado em nível federal no ano de 2001, tem sido investigado como um possível fator associado à redução do trabalho na infância.

Em 2010, com base nos dados da PNAD 2004, pesquisadores da Universidade de São Paulo analisaram o impacto do Programa Bolsa Escola sobre o trabalho infantil e a frequência escolar. Vale lembrar que em 2004, através da lei federal 10.836, o Bolsa Escola, assim como o Bolsa Alimentação e outros foram fundidos no Bolsa Família. Cacciamali e colaboradores revelaram que o programa é eficiente em atingir um de seus objetivos fundamentais: elevar o atendimento escolar das crianças. Por outro lado, declararam ser incapaz de reduzir a incidência de trabalho infantil, além de elevar a probabilidade de sua ocorrência entre crianças de famílias pobres. Ou seja, o programa aumenta as chances de as crianças pobres estudarem, mas não reduz as chances de estarem ocupadas. Os autores ressaltaram que apesar do combate ao trabalho infantil não ser uma das metas do programa, algumas ações relacionadas podem atacar, indiretamente, esse fenômeno, como elevar o número de horas de permanência das crianças na escola.

Ainda que o senso comum nos sensibilize contrariamente ao trabalho infantil, existe argumentos favoráveis a essa prática que precisam ser debatidos. Dentre eles, o que parece mais sólido diz respeito a esta ser uma forma estratégica para a garantia da sobrevivência familiar. Outros argumentos incluem o fato de que crianças possuem habilidades específicas, que se adaptam de maneira mais adequada a certos tipos de serviços em comparação com mão-de-obra da população adulta. Alega-se ainda que o trabalho infantil seria uma forma de evitar a ociosidade e a marginalidade encontrada nas ruas. Em contrapartida, o combate ao trabalho infantil é fundamentalmente pautado no seu efeito prejudicial ao processo de aprendizagem das crianças e adolescentes, além de perpetuar a transmissão intergeracional da pobreza. A sua proibição, além de ser uma luta legítima por direitos humanos, visa manter a integridade física e psicológica das crianças, promovendo o desenvolvimento de suas capacidades de forma segura e saudável, melhorando também a qualidade de vida dos indivíduos na fase adulta (Muniz & Sobel, 2008).

Apesar dos argumentos distintos, naturalizar a ideologia da nobreza do trabalho infantil, independentemente das condições em que é realizado, não é justificativa para sua existência (Marques, Neves & Neto, 2002). Atualmente, políticas de transferência de renda condicionais à frequência escolar são importantes, em curto prazo, para a redução do número de crianças do mercado de trabalho (Cacciamali et al., 2010). No entanto, políticas sociais e econômicas que permitam aos adultos responsáveis pelas famílias uma formação profissional e empregos que gerem recursos suficientes devem ser discutidas e implementadas. Somente com investimentos sustentáveis é que o combate ao trabalho infantil poderá ser efetivo e os níveis de pobreza do Brasil não irão se agravar. O combate ao trabalho infantil é uma questão de garantia de direitos e de responsabilidade de toda a sociedade.

* O salário mínimo de 2009 era de R$ 465,00.

Referências Bibliográficas

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Por Gabriela Lamarca e Mario Vettore

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