As iniquidades em saúde na agenda global: artigo publicado no Le Monde Diplomatique

Há poucos dias, de 19 à 21 de outubro de 2011, delegações oficiais, especialistas e membros da sociedade civil de mais de 120 países encontraram-se numa tenda branca montada sobre as rochas do Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro – um dos mais belos cenários do mundo – para participar da Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da Saúde (CMDSS). Discutiram como enfrentar as enormes diferenças na situação de saúde entre países e entre os grupos populacionais no interior dos mesmos. Essas diferenças, por serem injustas e evitáveis, são denominadas iniquidades em saúde e sua origem são as condições sociais nas quais os indivíduos nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem, condições essas chamadas Determinantes Sociais da Saúde (DSS).  No evento se obteve um forte compromisso político sobre o sensível tema do combate ás iniquidades em saúde, que se materializou na Declaração do Rio, e também se estabeleceram estratégias, metodologias e avaliação de experiências de ação sobre os DSS.

O século XX foi marcado por avanços e recuos no que se refere à importância dada aos DSS como forma de explicar e orientar as intervenções para promover melhoria das condições de saúde das populações e promoção da equidade. No contexto do pós-guerra e da construção do sistema das Nações Unidas, em 1948 foi criada a Organização Mundial da Saúde (OMS), em cuja Constituição se define saúde como “um estado de completo bem estar físico, mental e social e não apenas a ausência de enfermidade”, destacando, portanto a importância do social no próprio conceito de saúde. Entretanto, até os anos 70, em parte devido ao extraordinário êxito da campanha da erradicação da varíola iniciada pela OMS em 1959 e com o último caso da doença observado em 1977, predominou a esperança de que campanhas baseadas em tecnologias ou assistência médica sofisticada aos doentes seriam a principal resposta para os problemas de saúde das populações. Em 1977 os Estados-membros da Organização, reunidos na Assembleia Mundial de Saúde (AMS), estabeleceram como principal meta dos governos e da OMS nas décadas seguintes o alcance por parte de todos os povos do mundo de um nível de saúde que lhes permitisse levar uma vida social e economicamente produtiva. Tal meta ficou conhecida como ‘Saúde para Todos’.

A reunião de Alma-Ata no ano seguinte lançou as bases da estratégia de Atenção Primária da Saúde (APS), como chave para que a meta de Saúde para Todos fosse alcançada. A APS reconhecia a importância dos DSS e propunha uma série de estratégias como a coordenação intersetorial, a participação social e a reestruturação dos sistemas de saúde a partir dos serviços básicos para lograr equidade no acesso e qualidade da atenção à saúde. Entretanto, pouco depois, em 1982, foi lançada uma versão da APS que deixava de lado a ação sobre os DSS e expurgava seu conteúdo transformador dos sistemas de saúde para concentrar-se apenas na aplicação de algumas medidas específicas como reidratação oral e suplementação alimentar, entre outras, para populações carentes. Em 1986 o pêndulo oscila novamente em benefício dos DSS com a Carta de Ottawa lançada durante a 1ª. Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde onde se reconhece que “as condições e os recursos fundamentais para a saúde são: paz, habitação, educação, alimentação, renda, ecossistema estável, recursos sustentáveis, justiça social e equidade”.

A década de 90 é marcada por propostas do Banco Mundial para a reforma dos sistemas de saúde baseadas no conceito da saúde como um bem privado passível de ser adquirido e regulado pelas regras do mercado. O “Relatório sobre Desenvolvimento Mundial 1993: Investindo em Saúde” lança as bases desse pensamento.

No momento atual um movimento em torno dos DSS foi desencadeado pela OMS a partir da criação da Comissão sobre Determinantes Sociais da Saúde em 2005. O Relatório desta Comissão, lançado em 2008, além da melhoria das condições de vida dos grupos vulneráveis e de um melhor conhecimento e acompanhamento das tendências das iniquidades em saúde, propõe enfrentar a desigual distribuição de poder, dinheiro e recursos para a atenção à saúde. Ao discutir o informe na Assembleia Mundial da Saúde, em 2008, os Ministros da Saúde dos Estados-membros da OMS recomendaram a necessidade de organizar um evento mundial para compartilhar políticas e experiências, visando estabelecer as estratégias mais efetivas de ação sobre os DSS para o combate às iniquidades em saúde e o Brasil ofereceu-se como sede deste evento, que se materializou na Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da Saúde (CMDSS), realizada neste mês de outubro de 2011.

Este movimento atual sobre os DSS ganha força e se consolida com uma série de outros eventos de alcance global tais como a discussão sobre Doenças Crônicas Não Transmissíveis no âmbito da Assembleia Geral da ONU, realizado no final de setembro, nas Nações Unidas, em Nova York, no qual se definiram metas e estratégias de controle destas enfermidades através da ação sobre os DSS.

Ainda este ano acontece a 10ª. Conferência Internacional de Saúde Urbana, em Belo Horizonte, para debater como as instituições e os governos podem desenvolver e implementar intervenções que melhorem a equidade na saúde no âmbito das cidades. Em junho de 2012 teremos no Rio de Janeiro a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, pois ocorrerá 20 anos após a ECO-92. Espera-se que esta Conferência permita chegar a acordos sobre como tornar a economia mais ‘verde’ e obter energia limpa e compromissos menos retóricos para o desenvolvimento sustentável. A saúde terá, na Rio+20, uma proeminente presença.

O Brasil não pode deixar de aproveitar a oportunidade propiciada por todos estes grandes eventos internacionais para consolidar e fazer avançar sua agenda de políticas públicas para a promoção da equidade em saúde. Além de funcionar como sede dos mesmos, o Brasil vem tendo uma destacada participação na promoção do enfoque dos DSS na agenda global por meio de uma série de atividades no âmbito do conceito de Diplomacia em Saúde.

A cooperação internacional do Brasil que tem a saúde como foco caracteriza-se pelo enfoque da ‘cooperação estruturante’, conceito desenvolvido e posto em prática pela diplomacia brasileira no campo da saúde, sob a liderança do Ministério da Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz e de outras instituições brasileiras.

A UNASUL Saúde e o Plano Estratégico de Cooperação em Saúde da Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa (PECS/CPLP) são dois excelentes exemplos da chamada ‘diplomacia da saúde brasileira’ e tem entre seus denominadores comuns o esforço de superação das iniquidades em saúde, pelo enfrentamento dos determinantes sociais da saúde.

O mundo em crise econômico-financeira é um espaço socialmente muito pouco saudável. Desemprego e desesperança, crise ambiental e alimentar (fome, para dizer sem rodeios) e outras mazelas, sempre presentes nestas crises prolongadas como a que estamos envolvidos, são sempre acompanhadas da piora das taxas de adoecimento e morte. Contudo, se as deliberações dos dirigentes reunidos na Conferência do Rio – resumidas na consigna ‘todos pela equidade’ forem de fato levadas a sério, é possível que se levantem barreiras à barbárie anunciada, e as consequências da crise sobre a saúde e a qualidade de vida sejam mitigadas pela ação concertada dos Estados nacionais, sociedade civil e comunidade internacional.

Referências Bibliográficas

Banco Mundial. Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1993: investindo em saúde. Rio de Janeiro: FGV; 1993.

Buss PM, Ferreira JR. Diplomacia da saúde e cooperação Sul-Sul: As experiências da UNASUL Saúde e do Plano Estratégico de Cooperação em Saúde da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). RECIIS – R Eletr de Com Inf Inov Saúde [periódico na internet]. 2010 Mar [acesso em 10 nov 2011];4(1):106-118. Disponível em: http://www.reciis.cict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/351/519

Buss PM, Ferreira JR. Ensaio crítico sobre a cooperação internacional em saúde. RECIIS – R Eletr de Com Inf Inov Saúde [periódico na internet]. 2010 Mar [acesso em 10 nov 2011];4(1):93-105. Disponível em: http://www.reciis.cict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/350/516

CDSS-Comissão para os Determinantes Sociais da Saúde. Redução das desigualdades no período de uma geração. Igualdade na saúde através da acção sobre os seus determinantes sociais. Relatório Final da Comissão  para os Determinantes Sociais da Saúde. Portugal: Organização Mundial de Saúde; 2010.

Carta de Ottawa. In: 1ª Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde. 1986 Nov; Ottawa, Canadá.

Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO). 1948. [acesso em 11 nov 2011]. Disponível em: http://apps.who.int/gb/bd/PDF/bd47/EN/constitution-en.pdf

Declaração de Alma-Ata. In: Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde. 1978 Set 6-12; Alma Ata, Cazaquistão.

Pellegrini Filho A. As iniquidades em saúde na agenda global. Le Monde Diplomatique Brasil. 2011;52:20.

Resolución 64/265 de la Asamblea General de la ONU sobre la Prevención y el Control de las Enfermedades No Transmisibles.

WHO-World Health Organization. Rio Political Declaration on Social Determinants of Health. Rio de Janeiro: WHO; 2011.

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