Será que a Comissão Mundial de Determinantes Sociais em Saúde (CMDSS) realmente acredita ser possível fechar a lacuna das iniquidades sociais em saúde em uma geração? Essa instigante pergunta foi abordada pelo Prof Michael Marmot no editorial da edição de outubro do Boletim da OMS sobre determinates sociais em saúde. O autor sugere que, tecnicamente, parece ser possível a redução das desigualdades e indica que poderemos ter um grande progresso se melhorarmos as condições nas quais as pessoas nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem; assegurando igualdade para todos desde a infância, ambientes mais saudáveis, emprego justo e trabalho digno, proteção social e cuidados universais em saúde. O autor faz um balanço dos três anos que se seguiram após a publicação do documento “Closing the gap”, perpassando pela atual crise financeira global, má governaça e as mudanças climáticas, além do aumento das desigualdes em saúde em alguns países. E diz que apesar dos percalços encontrados pelo caminho, se mostra otimista diante de algumas conquistas e dos argumentos usados pela OMS para fortalecer as recomendações da CMDSS. O autor finaliza seu editorial clamando pelo reconhecimento da comunidade global sobre a importância da equidade em saúde, sobre as ações focadas nos determinantes sociais, reforçando que isso não é somente vital, mas também gerador de outros benefícios altamentes desejáveis para sociedade.
No segundo editorial da edição, Dr. Rüdiger Krech, diretor do Departamento de Ética, Comércio, Equidade e Direitos Humanos na OMS, fez um apelo aos governos para que enfrentem o grande desafio da redução das desigualdades em saúde. Reforça que o contexto sócio-cultural deve ser a base da saúde pública, e enfatiza que enfrentar os Determinantes Sociais da Saúde é uma questão de justiça social e um fato que não se pode mais adiar. Inclui em seu discurso que já sabemos “o quê e o porquê” dos determinantes sociais em saúde e estamos mais perto de compreender “como fazer”. Sendo assim, cita a Conferência Mundial de Determinantes Sociais, realizada no último mês, como um evento que propiciará maior conhecimento sobre os determinantes sociais da saúde e soluções inovadoras na sua redução, além do alto nível apoio político para a ação.
Na seção de entrevista, o Ministro da Saúde do Brasil menciona as ações nacionais para reduzir as desigualdades na saúde. Para ele, abordar os determinantes sociais da saúde é um imperativo legal do governo brasileiro, e o Brasil acredita firmemente no acesso universal e apoia todas as iniciativas que promovam esse acesso. O ministro enfatiza que o Brasil Sem Miséria tem sido uma abordagem fundamental das ações redutoras das desigualdades sociais, e que apesar de termos ainda grandes desafios intersetoriais, programas sociais como o do Bolsa Família, representam uma dos maiores e mais bem sucedidas políticas de redução da pobreza no Brasil. Dr. Padilha citou que o governo brasileiro se posiciona como um ator internacional ativo capaz de discutir o futuro das políticas globais, inclusive sediando e participando ativamente da Conferência Mundial de DSS, onde foi produzido um pacto político de alto nível capaz de introduzir instrumentos eficazes na luta contra as desigualdades sociais.
Dentre as notícias do Boletim da OMS está o relato sobre a experiência de Glasgow, na Escócia, em enfrentar as desigualdades sociais, no resgate da “alma perdida” de seus habitantes: uma cidade onde 24 anos de diferença na expectativa de vida separam crianças que estão à 12 km de distância entre si. Apesar de servir como exemplo gritante de extrema desigualdade social em saúde, Dr. Harry Burns (Scotland’s chief medical officer) afirma que as desigualdades na saúde em Glasgow não podem ser somente atribuídas à privação social e econômica, ou pela segmentação convencional de comportamentos de risco isoladamente. As respostas estão na reparação de uma sociedade fragmentada, onde muitas pessoas sentem que não têm controle de suas vidas, onde é preciso construir capital social e os indivíduos possam usufruir de amizade e apoio mútuos. “Fundamentalmente não devemos nos concentrar nos déficits, mas sobre os ativos, competências e capacidades”, explica Dr. Burns.
A experiência na Índia na persistência das desigualdades em saúde em meio a uma economia em expansão é apresentada por Patralekha Chatterjee. O autor relata que ainda existem milhares de mulheres que morrem a cada ano no parto ou imediatamente após, e isso ocorre porque vivem muito longe de uma unidade de saúde para receber cuidados pré-natais ou porque não podem arcar com o transporte e outros custos ligados à hospitalização. Apesar de algumas iniciativas do governo indiano, e da consequente redução da mortalidade materna, os serviços de saúde disponíveis à todos ainda não é suficiente e há iniquidades no acesso. Certamente são necessários esforços adicionais direcionados por uma abordagem mais holística de melhoria da saúde da população, visando o alcance das famílias que ficam de fora do programa do governo.
Outra experiência citada foi a do Chile, que em 1990, após 17 anos de ditadura, começou a reconstruir o seu sistema político, com foco na melhoria das condições sociais e saúde. Na notícia de Irene Helmke, alguns resultados positivos obtidos nos últimos 10 anos são relatados, principalmente após 2005, quando foi estabecido um sistema de cobertura de saúde universal. Para o ex-presidente chileno Ricardo Escobar isso foi um enorme passo, pois o sucesso reside em estabelecer um atendimento de saúde primário efetivo. Apesar das melhorias comprovadas através de vários indicadores de saúde, principalmente na mortalidade infantil, ainda existem desigualdades marcantes entre regiões, que variam de 2 a 45 mortes por 1000 nascidos vivos. Ele aponta que essas discrepâncias não existem devido ao sistema de saúde chileno vigente, mas devido as diferenças socioeconômicas. Em outras palavras: pobreza e doença andam de mãos dadas. A mudança no sistema de saúde do Chile tem se fundamentado principalmente no trabalho da CDSS, enfatizando as ações intersetoriais e implementação de políticas sociais mais equitativas.
Matthew Heath destaca os desafios de saúde pública na Austrália. Lawrie-Smith (diretora-executiva da Divisão de Saúde Aborígene da Austrália do Sul) enfatiza que os departamentos de saúde não podem atuar sozinhos e que saúde não se resume a disponibilidade de médicos e enfermeiros. Diz respeito a disponibilidade de água encanada, um bom sistema de transporte, boa habitação, estradas seguras e disponibilidade de alimentos frescos. A expectativa de vida dos aborígenes é 12 anos menor em comparação com a população australiana. Assim, o ambiente onde ele nasce e vive afeta a sua saúde. Mas a desigualdade não se resume aos povos aborígenes, crianças que vivem em grupos socioeconômicos mais baixos apresentam mais desfechos negativos em saúde. O governo australiano ainda encontra dificuldades em conciliar as agendas políticas dos ministérios. Para superar essa barreira estimula que os responsáveis ??políticos de cada departamento desenvolvam estratégias que além de atender aos seus objetivos devem favorecer a saúde. Esse conceito é conhecido como “Saúde em Todas as Políticas”, e tem como expectativa de resultado a redução das iniquidades em saúde.
Dr. Kumanan Rasanathana e Dr. Rüdiger Krecha finalizam a edição do Boletim apresentando uma perspectiva da ação sobre os determinantes sociais da saúde no combate das doenças não-transmissíveis. Os autores explicam que a abordagem de identificação de fatores de riscos e a tentativa de mudança de comportamento são abordagens inadequadas e obsoletas. Reforçam que o enfoque nas desigualdades sociais e nas condições de vida, juntamente com a questão de que os sistemas de saúde funcionam melhor para alguns grupos da população do que para outros, são imprescindíveis no controle de epidemias de doenças transmissíveis. Os autores relatam que a prevenção de doenças não-transmissíveis requer a colaboração intersetorial e a construção de governança capacitada.
Essa edição do Boletim da OMS mostra que a colaboração intersetorial e a coerência política em prol da equidade em saúde são possíveis. Aponta no sentido de um alinhamento de esforços das agências em apoiar os países na concretização das múltiplas prioridades através da abordagem dos DSS, além de demonstrar um olhar otimista em direção às mudanças e progressos apresentados pelo Chile, Índia, Escócia, Austrália e Brasil. Essencialmente as ações deverão ter uma estrutura que transcende o tipo de doença, transmissíveis ou não-transmissíveis, mas que priorizam as causas das causas e objetivam a implementação de políticas sociais, gerando benefícios para sociedade como um todo e reduzindo as desigualdades em saúde.
Referência Bibliográfica
Bulletin of the World Health Organization. Geneva: World Health Organization; 2011;89(10).
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