A capacidade de compreender a natureza complexa das desigualdades sociais dentro de um país e os impactos que têm sobre a saúde dos cidadãos pode literalmente significar a diferença entre ter uma vida curta ou longa. Na verdade, os fatores que podem prejudicar a saúde são muito semelhantes aos fatores que levam à vulnerabilidade social, como é o caso do nível de escolaridade e do status socioeconômico, que estão intimamente correlacionados com a saúde.
Em todos os países da União Europeia, bem como no Brasil, há uma correlação sistemática entre o nível de saúde e a condição socioeconômica. Observa-se um gradiente entre a diminuição da posição social e o pior estado de saúde. Essa correlação existe em crianças e jovens, bem como em adultos. Esses gradientes sociais em saúde são tão prejudiciais como injustos, especialmente quando se trata dos mais jovens, uma vez que as adversidades nos primeiros anos de vida têm um impacto negativo sobre a saúde em todo o ciclo de vida.
De certa forma, então, é importante a habilidade dos pais em estimular desde cedo o desenvolvimento cognitivo de seus filhos. No entanto, a realidade dos grupos em desvantagem social é outra. Enquanto alguns pais nem possuem essa noção, outros percebem que o futuro de seus filhos é influenciado pelas condições que a família se encontra. E assim sendo, é fato que quanto menor a condição socioeconômica, maior a probabilidade de viver em más condições de habitação, e menor a chance de criar adequadamente uma criança, além de piores cuidados com a saúde.
Para o projeto GRADIENT, gerido pela EuroHealthNet, os gradientes socioeconômicos em saúde entre crianças e jovens representam um problema que diz respeito a todos. No livro intitulado “The Right Start to a Healthy Life: Levelling-up the Health Gradient Among Children, Young People and Families in the European Union – What Works?”, lançado em março de 2012, as editoras Ingrid Stegeman and Caroline Costongs descrevem o que pode ser feito para nivelar os gradientes socioeconômicos em saúde entre crianças, jovens e suas famílias a partir de uma gama de perspectivas.
Dentre os temas abordados no livro, o capítulo sobre capital social comunitário foi um dos que mais nos chamou atenção, pois utiliza comparações e exemplos, identificando as medidas que podem ser tomadas com o objetivo de redução das iniquidades em saúde por meio de intervenções de capital social. Os autores ressaltam que a literatura sobre as iniquidades sociais e o gradiente social no processo saúde-doença em crianças e jovens é amplamente dominada por estudos que buscam identificar fatores de risco. No entanto, explicam que outra abordagem vem recebendo uma atenção crescente: a de “bens” ou “ativos” em saúde (health assets), que parecem servir como fator de proteção para a saúde, pois se baseiam nos pontos fortes das pessoas e comunidades.
Ativos em saúde (Health assets)
Ativos em saúde são tanto os pontos fortes e qualidades (motivações e capacidades relacionais) como qualidades ambientais e comunitárias (apoio, normas, características físicas) que podem contribuir para a saúde. Esses bens são comumente definidos como fatores protetores da saúde porque se concentram na manutenção de capacidades em saúde. Em outras palavras, os ativos de saúde são fatores que facilitam a adoção de comportamentos saudáveis e promovem a saúde, apresentando resultados relacionados ao bem-estar e a resiliência, capacidade de um indivíduo de se adaptar às adversidades ao longo do curso da vida.
A família é a primeira potencial fonte de ativos em saúde. Crianças que experimentam uma relação familiar amorosa e envolvente são mais prováveis de ter um desenvolvimento saudável, participar de atividades, ter sonhos e aspirações, por sentir que sua participação é significativa na sociedade. Incentivar relacionamentos sociais saudáveis, bem como motivar as crianças a se envolverem na comunidade (ou seja, promovendo a criação ou aumento de capital social) são aspectos essenciais que devem ser considerados na luta contra as iniquidades sociais em saúde, principalmente em crianças que crescem em condições sociais adversas, incluindo a pobreza, exclusão social e com relações familiares instáveis.
O investimento em ativos de saúde em nível comunitário, como a construção de capital social, pode ser uma estratégia eficaz para combate às desigualdades na saúde(Morgan & Ziglio, 2007). Existem evidências que sugerem que determinados componentes do capital social comunitário – por exemplo, ordem no bairro, confiança social, coesão social, e eficácia coletiva – influenciam no impacto do status socioeconômico na saúde de crianças e adolescentes. O projeto GRADIENT usa dois exemplos para ilustrar a importância do capital social na saúde de crianças e adolescentes. Em jovens belgas, o capital social individual se associou positivamente com a saúde, o que significa que quanto mais capital social individual uma pessoa tem, mais saudável ela é, e o mesmo aconteceu em relação ao capital social comunitário. Além disso, o gradiente social em saúde foi “achatado” em comunidades com um alto nível de capital social comunitário e, consequentemente, diferenças em saúde entre diferentes grupos socioeconômicos foram reduzidos em comunidades com alto capital social. Em termos de implicações para políticas, isso significa que, particularmente em comunidades com baixo capital social, os ganhos de saúde podem ser obtidos através do reforço do capital social da comunidade. Na Islândia, por exemplo, um estudo explorou a relação entre as características estruturais das comunidades escolares e o hábito de fumar na adolescência. Os resultados indicaram que as crianças de famílias pobres são mais propensas a fumar. No entanto, esta associação não é a mesma em todas as vizinhanças. As crianças que vivem em bairros com altos níveis de capital social são menos afetadas pela pobreza do que as crianças que vivem em bairros com baixos níveis de capital social. Em outras palavras, a correlação entre pobreza e tabagismo é menor em comunidades com alto nível de capital social do que em comunidades com baixo nível de capital social.
Como construir/reforçar o capital social comunitário?
O projeto aponta que é possível gerar benefícios para saúde de crianças e jovens com o aumento de redes sociais parentais e o incentivo às atividades que promovam maior interação, comunicação e confiança entre pais e filhos. Entretanto, alertam que apenas esse reforço não é suficiente para a melhoria das condições de saúde infantil, é necessária uma combinação de ações em diferentes níveis, como a criação de legislações e normas sociais, como as políticas antitabagismo, que parecem ser cruciais na criação de ambientes suportivos à saúde.
O desenvolvimento do capital social requer a participação ativa e voluntária de cidadãos dentro da comunidade. O projeto GRADIENT sugere que os formuladores de políticas devem construir o capital social de maneira indireta, estimulando as organizações locais a aderirem a normas e valores positivos para a saúde. O engajamento dessas organizações promove um efeito positivo em direção a comportamentos saudáveis, especialmente em comunidades com baixo capital social. Além disso, os autores ressaltam que o investimento em ativos de saúde não deve ter somente como finalidade a adoção de comportamentos saudáveis, mas também deve focar na redução das desigualdades sociais em saúde, e em longo prazo, diminuir o gradiente social em saúde.
Nossas melhores chances de construção de capital social comunitário residem numa série de “apostas inteligentes”, como a utilização de princípios já estabelecidos na própria organização da comunidade, incentivando a formação de associações de base. Muitas políticas em vigor apresentam em sua agenda o incentivo ao capital social comunitário, subsidiando organizações voluntárias, criando regulamentos para ambientes comunitários ou construindo áreas de lazer em conjuntos habitacionais. No entanto, para efetivamente construir capital social, o governo local deve compartilhar a autonomia com os cidadãos, mudando sua ênfase do regulador, controlador e provedor para novos papéis como catalisador, organizador e facilitador. Não perdendo de vista que o capital social não é um meio para um fim, mas sim um processo de fortalecimento de apoio social mútuo que parece melhorar a saúde e o bem-estar de todos os cidadãos, incluindo crianças e jovens.
Referências Bibliográficas
Maes L, Clercq B, Vyncke V, Curvo SD, Jónsson SH, Kebza V, Stevens V. Working with the Community to Improve Child Health Equity. In: Stegeman I, Costongs C. editors. The Right Start to a Healthy Life: Levelling-up the Health Gradient Among Children, Young People and Families in the European Union – What Works?. Brussels, Belgium: EuroHealthNet; 2012. p. 123-152. [acesso em 27 ago 2012]. Disponível em: http://health-gradient.eu/gradient-book-the-right-way-to-a-healthy-life/
Morgan A, Haglund BJA. Social capital does matter for adolescent health: evidence from the English HBSC study. Health Promot Int. 2009;24(4):363-72.
Morgan A, Swann C. Social capital for health: issues of definition, measurement and links to health. London: NHS Health Development Agency; 2004. Where next for social capital research?; p. 187-192. [acesso em 27 ago 2012]. Disponível em: http://www.nice.org.uk/niceMedia/documents/socialcapital_issues.pdf
Morgan A, Ziglio E. Revitalising the evidence base for public health: an assets model. Promot Educ. 2007;Suppl 2:17-22.
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