Nas últimas décadas, o capital social tem se revelado como um fator associado a vários desfechos em saúde. Sociedades com menor capital social têm apresentado piores níveis de saúde (Kawachi et al, 2008). Além disso, o capital social parece ser um importante elemento para o desempenho político e funcionamento da democracia, para a prevenção do crime e da delinquência. Ter um alto nível de capital social é positivo na maioria das circunstâncias, mas quando se trata de iniquidades em saúde, seu desgaste parece atuar em conjunto com outros determinantes sociais, e ter um forte laço com a exclusão social.
Mas, o que é capital social? James Coleman o define como a reciprocidade nas relações sociais. Para Robert Putnam, é o conjunto de normas e redes da estrutura social que habilitam os participantes a agir juntos e mais efetivamente na busca de objetivos comuns. Além disso, o conceito envolve a cultura cívica, a confiança entre os membros da comunidade, o envolvimento nas questões comunitárias e a boa relação entre vizinhos (Vial et al, 2010). Sendo assim, as redes de relações entre grupos formais e informais de pessoas têm sido entendidas como capital social, uma espécie de subproduto dessas associações. Englobando, inclusive, organismos em nível vertical, como a relação das pessoas com as instituições políticas, religiosas e educacionais, dentre outras.
O capital social pode ser mais bem compreendido sob a perspectiva do modelo de Dahlgren & Whitehead sobre Determinantes Sociais da Saúde (DSS), onde a visualização das redes sociais e comunitárias se dispõe de maneira hierárquica em comparação a outros determinantes mais distais ou proximais da saúde. E por ser, segundo o relatório final da Comissão Nacional de DSS, um importante mecanismo através do qual as iniquidades socioeconômicas impactam negativamente a situação de saúde, é relevante considerar o capital social na agenda de pesquisa em Epidemiologia (Pattussi et al, 2006). Principalmente em países como o Brasil, que possuem, de maneira geral, laços frágeis de coesão social que resultam, consequentemente, em iniquidades sociais.
De acordo com Robert Putnam, o capital social está fortemente ligado à confiança, de tal modo que às vezes é difícil distinguir entre quais são os efeitos e quais são as causas do capital social, e o que ele realmente é. O capital social gera o aumento da confiança mútua e das normas de reciprocidade que, por sua vez, geram mais capital social. Contudo, a confiança social guarda uma íntima relação com a desigualdade social, e há um impacto negativo nessa relação (Wilkinson, 2009). As pessoas em situação de desigualdade, com pior status socioeconômico e pior educação, apresentam menores níveis de confiança (Robinson & Jackson, 2001). Segundo Wilkinson, em sociedades mais desiguais 15% da população relata poder confiar em outras pessoas, enquanto que em sociedades mais igualitárias essa proporção sobe para 60 a 65% (Inquérito Mundial de Valores). Devido à importância da associação entre as relações de confiança e a saúde, Ichiro Kawachi e colaborados compararam os diversos estados dos Estados Unidos e verificaram uma forte associação entre desigualdade de renda e falta de confiança social. Os dados revelaram ainda que as variações no nível de confiança social explicaram 58% da variação da mortalidade geral entre os estados.
Consta no Relatório Nacional de DSS que as relações de confiança no Brasil são extremamente deficientes, praticamente se limitando à confiança entre familiares. Enquanto 84% das pessoas confiam na família, apenas 15% confiam na maioria das pessoas (Pesquisa Social Brasileira). O IBOPE Inteligência tem feito um acompanhamento desde 2009 sobre a confiança da população em relação às pessoas de convívio social mais próximo e instituições, gerando um Índice de Confiança Social (ICS). Numa escala de 0 a 100, os familiares são o grupo mais confiável, apresentando um score de 90 pontos, enquanto os amigos (67) e vizinhos (59) apresentam scores bem mais baixos. Pela terceira vez consecutiva, a instituição com maior pontuação entre as 18 organizações foi o Corpo de Bombeiros (86). Igrejas e Forças Armadas aparecem num segundo patamar, ambas com 72 pontos. Já no levantamento feito pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) sobre confiança entre vizinhos, os dados revelaram que 30% dos entrevistados não confiam em seu vizinho, e essa proporção é inversa conforme os estratos de renda, pois quanto maior a renda menor a confiança no vizinho.
Problemas de confiança social e outras questões associadas à exclusão social, como taxas de homicídios e encarceramento, tendem a ser mais comuns na base do gradiente social. Segundo Wilkinson, esses problemas sociais não são apenas “um pouco piores” em países mais desiguais, mas algo em torno de duas a dez vezes mais frequentes do que nos países mais igualitários. Sendo a sociedade brasileira muito desigual, o panorama não é diferente, e ter acesso ao capital social pode explicar a variação no status de saúde das pessoas, mesmo quando se tratam de análises menos contextuais, como é o caso do estudo feito pela Dra. Carolina Borges com pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMF) e colaboradores internacionais. Os autores mostraram que os maiores níveis de apoio social, confiança social, participação cívica e, também, as associações interpessoais foram fatores que influenciaram a melhor auto-avaliação de saúde em adolescentes de Belo Horizonte (MG). Isso sugere que alguns elementos do capital social podem desempenhar um papel importante na proteção da saúde de adolescentes vivendo em um contexto de um país desigual. Achados semelhantes, mas com uma perspectiva mais contextual do capital social, foram encontrados pela Dra. Simone Santos e colaboradores da FIOCRUZ e UERJ por meio de uma revisão sistemática. Os autores relataram que as características físicas e psicossociais da vizinhança (capital social) também foram fatores importantes na determinação da auto-avaliação de saúde.
Apesar da quantidade crescente de estudos empíricos sobre a relação entre o capital social e saúde, ainda há pouca consistência nos resultados, divergências teóricas, além de um reduzido número de estudos na América Latina, inclusive no que diz respeito a intervenções e políticas públicas que tenham esse enfoque. A qualidade da evidência científica na associação entre o capital social e saúde poderia ser aprimorada com estudos de intervenção, permitindo análises mais robustas sobre os benefícios na saúde, onde se considere elementos específicos do capital social (Hunter e Killoran, 2004). Enfim, o potencial do capital social é grande, mas seu uso requer cautela. Sobretudo no que diz respeito ao uso do conceito, que não deve ser visto como a única solução para todos os problemas de saúde, e não deve ser aplicado de forma acrítica. Intervenções de capital social devem gerar benefícios à saúde em comunidades em desvantagem social, possibilitando, em conjunto com outros determinantes sociais, a elaboração de estratégias de redução de desigualdades sociais e construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Referências Bibliográficas
Borges CM, Campos AC, Vargas AD, Ferreira EF, Kawachi I.Social capital and self-rated health among adolescents in Brazil: an exploratory study. BMC Res Notes [periódico na internet]. 2010 Dec [acesso em 29 maio 2012];3:338. Disponível em: http://www.biomedcentral.com/1756-0500/3/338. http://dx.doi.org/10.1186%2F1756-0500-3-338
CNDSS-Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. As causas sociais das iniqüidades em saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; 2008.
Coleman JS. Social capital in the creation of human capital. AJS [periódico na internet]. 1988 [acesso em 29 maio 2012];94:S95-S120. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2780243
Hunter DJ; Killoran A. Tackling health inequalities: turning policy into practice? London: Health Development Agency; 2004 [acesso em 29 maio 2012]. Disponível em: http://www.nice.org.uk/nicemedia/documents/tacklinghealthinequalities.pdf
Índice de Confiança Social mostra que o brasileiro está menos confiante nos serviços públicos de saúde e educação e nos meios de comunicação [Internet]. São Paulo: IBOPE Inteligência; 2011 Out 03 [acesso em 31 maio 2012]. Disponível em: http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=6&proj=PortalIBOPE&pub=T&nome=home_materia&db=caldb&docid=10BCD9362159152B8325791E003F379E
Kawachi I, Kennedy BP, Lochner K, Prothrow-Stith D. Social capital, income inequality, and mortality. Am J Public Health. 1997 Sep [acesso em 29 maio 2012];87(9):1491-8. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1380975/?tool=pubmed
Kawachi I; Subramanian SV; Kim D. Social capital and health [Internet]. New York: Springer; 2008 [acesso em 31 maio 2012]. Disponível em: http://www.springer.com/public+health/book/978-0-387-71310-6
Pattussi MPascoal, Moysés SJ, Junges JR, Sheiham A. Capital social e a agenda de pesquisa em epidemiologia. Cad. Saúde Pública [periódico na internet]. 2006 Ago [acesso em 29 maio 2012];22(8):1525-1546. Disponível em: http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2006000800002&lng=en. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2006000800002
Pesquisa do ICJBrasil avalia confiança nas instituições do estado [Internet]. Rio de Janeiro: FGV Notícias; 2012 Maio 15 [acesso em 31 maio 2012]. Disponível em: http://fgvnoticias.fgv.br/noticia/pesquisa-do-icjbrasil-avalia-confianca-nas-instituicoes-do-estado
Putnam RD; Leonardi R; Nanetti RY. Making democracy work: civic traditions in modern Italy. Princeton: Princeton University Press; 1993.
Robinson R; Jackson E. Is Trust in Others Declining in America? An Age-Period-Cohort Analysis. Social Science Research. 2001;30:117-145.
Santos SM, Chor D, Werneck GL, Coutinho ESF. Associação entre fatores contextuais e auto-avaliação de saúde: uma revisão sistemática de estudos multinível. Cad. Saúde Pública [periódico na internet]. 2007 Nov [acesso em 29 maio 2012];23(11):2533-2554. Disponível em: http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2007001100002&lng=en. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2007001100002
Vial EA; Junges JR; Olinto MTA; Machado PS; Pattussi MP. Violência urbana e capital social em uma cidade no Sul do Brasil: um estudo quantitativo e qualitativo. Rev Panam Salud Publica [periódico na internet]. 2010 [acesso em 29 maio 2012];28(4): 289–97. Disponível em: http://www.scielosp.org/pdf/rpsp/v28n4/08.pdf
Wilkinson RG; Pickett KE. The spirit level: why more equal societies almost always do better. London, England: Penguin Group; 2009.
World Values Survey [homepage na internet]. [S.l.]; c2012 [atualizado em 29 maio 2012; acesso em 31 maio 2012]. Disponível em: http://www.worldvaluessurvey.org/
Entrevista com:
Importante mencionar que o governo precisa ser o articulador no fomento do capital social. Percebo que as cidades onde há essa articulação institucional e entre as comunidades há mais experiências de integração social dando certo e acontecendo. Se eu entendi bem o conceito do Coleman, um exemplo de capital social seria a mobilização feita pelo UNICEF em relação à conquista do selo pelos municípios. Tenho visto, inclusive, testemunhos claros dessa interação social entre as comunidades e instituiçõs em torno de um estado de bem-estar. Não de algo consolidado, mas algo que vem acontecendo. Quando o goveno local articular as forças sociais, as interações acontecem e o combate às iniquidades vai normalmente acontecendo. Trata-se portanto de um conceito importante e que precisa ser refletido pelos governos.