Com retórica ambígua sobre o bem-estar dos cidadãos a Declaração do Rio não avança estratégias para mudanças políticas e econômicas

Foto: Dayane Martins

O Sr. Considera que a CMDSS alcançou seu objetivo de avançar na definição de estratégias de combate às iniquidades em saúde por meio da ação sobre os DSS? O que mereceria destaque nesse sentido?

Creio que não. As proposições contidas na Declaração do Rio de Janeiro (Rio Political Declaration on Social Determinants of Health) estão aquém mesmo daquelas apresentadas pela Comissão sobre Determinantes Sociais da Saúde da OMS, cujo Relatório foi divulgado em 2008 tais como: 1. Melhorar as condições de vida; 2. Combater a distribuição desigual de poder, dinheiro e recursos; 3. Medir a magnitude do problema, compreendê-lo e avaliar o impacto das intervenções. Evidentemente que, exceto o terceiro propósito, cujas respostas podem surgir da pesquisa e da técnica, os demais implicam profundas mudanças políticas e econômicas no mundo e em cada país. Políticas destinadas ao combate das mudanças climáticas, emprego pleno e justo como objetivo comum de instituições internacionais, fortalecimento da representação dos trabalhadores e normas trabalhistas para trabalhadores formais e informais exigiriam o enfrentamento do colapso ambiental e financeiro que atinge presentemente a humanidade e com consequências para as gerações futuras. Do mesmo modo, reforçar o papel do Estado na prestação de serviços de saúde e na regulação de bens e serviços que afetam a saúde, bem como expandir a proteção social, criando sistemas de saúde com cobertura universal, constituem iniciativas de grande relevância para o bem-estar dos cidadãos. Essas proposições ficaram diluídas na retórica ambígua da Declaração, não avançando no estabelecimento de estratégias.

Como chamei a atenção neste portal, antes da realização da CMDSS, a atual crise financeira global amplia as desigualdades sociais, além do fato de organizações do sistema das Nações Unidas atuarem na contramão das políticas sociais e dos sistemas públicos de saúde universais. Defendia que a Declaração do Rio de Janeiro fosse mais que uma declaração de princípios, contemplando questões como aquelas levantadas pelo Prof. Ronald Labonté (Ottawa, Canadá): o colapso do mercado financeiro, o colapso ecológico e as crescentes desigualdades globais. Quase nada disso foi debatido e muito menos indicado sobre o que fazer. Reconheço que uma declaração política como a do Rio reflete uma dada correlação de forças entre Estados e por isso não tinha muitas ilusões sobre a possibilidade de um texto progressista. Diferentemente de Alma Ata na qual o poder dos Estados Unidos encontrava algum contraponto, a CMDSS expressou a hegemonia atual daquele país e dos seus aliados, com pouco espaço para o debate, reflexão e crítica. Ainda assim, muitos brasileiros, organizações e movimentos sociais como o Cebes, a Alames, CUT, CTA, Peoples Health Movement, entre outros, manifestaram a sua posição contra a mercantilização da vida e a banalização do conceito de determinantes sociais da saúde.

Que providências de curto e médio prazo os países membros deveriam adotar para por em prática os compromissos assumidos nesta Conferência?

A curtíssimo prazo cada país deveria traduzir a Declaração para o respectivo idioma promovendo a sua ampla divulgação e estimulando discussões na sociedade, no Executivo e no Parlamento. No caso brasileiro foi surpreendente o descaso da mídia impressa em relação à importância da CMDSS, ao ponto de um grande jornal do Rio de Janeiro colocar em primeira página a prisão de um narcotraficante no Paraguai, mas não dispôs de pelo menos uma linha sobre um evento internacional com delegações de 125 países, preocupado com a vida e a saúde de cerca de sete bilhões de pessoas. A curto prazo poderiam ser criados grupos tarefas para propor arranjos organizativos compatíveis com a intervenção intersetorial voltada para os determinantes sociais da saúde. Nesse particular, poderia ser acionada a expertise de universidades e institutos de pesquisa, bem como de instituições vinculadas aos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário no sentido de projetar formas de governança consistentes com tal intervenção. Alem disso, poderiam ser reforçadas políticas públicas intersetoriais que já contemplam, ainda que parcialmente, os determinantes sociais da saúde.

Finalmente, a médio prazo poderiam ser introduzidas intervenções considerando o lema Saúde em Todas as Políticas, revendo o arcabouço legal e organizativo do Estado, adequando-os aos propósitos explicitados na Declaração do Rio de Janeiro. No caso brasileiro, primeiro país a criar uma Comissão Nacional de Determinantes Sociais da Saúde além de ser sede da CMDSS, teria que dar o exemplo. Nesse particular, caberia retirar o Relatório da CNDSS das gavetas e estantes e torná-lo objeto de discussão de políticas públicas, considerando as diretrizes a serem formuladas na 14ª Conferência Nacional de Saúde relativas aos DSS para avançar as proposições da Declaração do Rio de Janeiro.

Quais as principais mudanças nas atividades de cooperação técnica deveriam ser adotadas pela OMS e outros organismos internacionais para apoiar os países na implantação de planos e programas nacionais de combate às iniquidades em saúde?

Não tenho experiência em cooperação técnica suficiente para uma avaliação, mas não vejo de forma confortável as atividades desenvolvidas por tais organismos, inclusive a OMS nas duas últimas décadas. Observo certa arrogância e manipulação, especialmente em relação ao sul. Se fôssemos seguir à risca as recomendações desses organismos não teríamos o SUS, mesmo com todas as suas dificuldades. Creio que o Brasil pelo espaço que vem ocupando nas relações internacionais pode advogar cooperações mais horizontais, particularmente no âmbito sul-sul, requerendo relações menos assimétricas entre tais organismos e os países da região na implantação de planos nacionais de combate às iniquidades em saúde.

Que outros aspectos gostaria de analisar?

Apesar das críticas feitas às limitações da Declaração do Rio de Janeiro, como cidadão brasileiro fiquei satisfeito ao ouvir comentários de autoridades e especialistas de outros países sobre as conquistas da Reforma Sanitária Brasileira, construída pela sociedade civil, e sobre o esforço de implementação do SUS de caráter universal e público. Gostaria de destacar, também, o empenho de dirigentes e técnicos do Ministério da Saúde e da Fiocruz, juntamente com nossos diplomatas do Itamaraty, para que a Declaração do Rio de Janeiro tivesse um caráter menos conservador.

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2 Comentário

  1. Mais uma vez, tenho de me curvar diante da lucidez, competência e simplicidade deste grande mestre Prof. Jairnilson Paim, que colocou no devido lugar os pontos mais críticos em relação a CMDSS realizada no RIO recentemente. Será que foi uma oportunidade perdida?? Fui a 11ª EXPOEPI e poucos (ou nenhuim?) comentaram algo sobre o que foi dito neste evento internacional: questões debatidas, proioritárias, etc.
    Mas, mesmo assim devemos continuar lutando e lutando por esse SUS que beneficia tanta gente no Brasil.
    abraços
    Marlene Carvalho

  2. Como de hábito, o professor Jairnilson nos brinda com comentários absolutamente perfeitos em sua pertinência, lucidez e viés analítico. Como participante da conferência, não poderia concordar mais com seus pontos de vista em todas as questões levantadas. Obrigado!

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