O Brasil é o único país da América Latina que possui uma proposta articulada entre Igreja e Estado no que diz respeito a AIDS, aponta o estudo etnográfico realizado por pesquisadores da Universidade de Columbia em conjunto com a Escola de Saúde Pública Yale, nos Estados Unidos. Historicamente é reconhecida a tensão existente entre as duas instituições, principalmente no que tange a temas polêmicos como o uso de preservativos, homossexualidade, aborto, métodos anticoncepcionais e o HIV/AIDS. Porém, independentemente de termos um Programa Nacional de AIDS do Ministério da Saúde, existem ainda questões não consensuais entre a Igreja e o Estado.
Pesquisas realizadas anteriormente mostraram que nenhum outro país em desenvolvimento possui uma abordagem baseada nos direitos de solidariedade, na prevenção, tratamento e cuidados, como a adotada no Brasil. Segundo os pesquisadores de Yale e Columbia, as políticas e ações de prevenção e os programas de controle governamentais fazem parte da saúde pública brasileira de maneira sólida, apesar de colidirem frequentemente com elementos fundamentais da crença e doutrina da Igreja Católica. Fato extremamente relevante para uma nação que, segundo o IBGE (2000), possui 125 milhões de católicos (73% da população).
Laura Murray e colaboradores exploraram historicamente como as parcerias são formadas e sustentadas entre a saúde pública, religião e instituições governamentais. Os pesquisadores, através de um estudo etnográfico, se interessaram particularmente em entender como duas instituições tão distintas, e às vezes, com objetivos, ideologias e organizações conflitantes, vieram a ser parceiros em resposta ao HIV/AIDS no Brasil. Além do contexto histórico de interação interinstitucional, os pesquisadores enfatizaram a existência de relações intersubjetivas representadas por micro processos, que são ao mesmo tempo afetados e afetam estruturas políticas e econômicas mais amplas, em um processo de influência bidirecional entre o micro e o macro.
Um dos pontos mais importantes levantados por essa pesquisa é a necessidade de conhecimento dos processos históricos e dos atores sociais envolvidos na construção das respostas religiosas à epidemia de HIV, como lidam com os dogmas religiosos, sobreposições e desconexões de ideologias, estruturas organizacionais e processos políticos maiores.
Segundo Laura Murray e colaboradores, três fatores contribuíram para a articulação entre a Igreja Católica e o Programa Nacional de HIV/AIDS, avançando as políticas públicas em âmbito interinstitucional. Primeiro, os valores compartilhados em torno da solidariedade, que tanto faz parte da estrutura do programa HIV/AIDS como da base ideológica da Igreja Católica, e visam uma vida plena e saudável para os portadores do vírus. Segundo, a criação de estruturas organizacionais, de ambas as instituições, com espaços e respostas em nível local, derivando uma dose de independência local de atuação. Em terceiro, a geração de um capital social favorável a criação de alianças mutuamente benéficas e redes sociais estratégicas e eficazes na disseminação de informações e capazes de responder às demandas locais. Dentre os aspectos positivos da relação interinstitucional, o tratamento e os cuidados as pessoas vivendo com HIV se sobressaíram. A prevenção, segundo os autores, foi o aspecto menos convergente entre a Igreja e o Estado.
Em nível programático, o estudo sugere que a Igreja Católica poderá se beneficiar formalmente se conciliar o seu discurso com a ação local. Essa aproximação do macro com a micro poderá estreitar as diferenças hierárquicas, facilitando uma atuação produtiva e eficaz, principalmente no que diz respeito à prevenção. Pesquisas anteriores relatam que as abordagens baseadas na fé podem ajudar na solução de alguns problemas sociais, tais como a gravidez na adolescência e o HIV/AIDS.
Este estudo apresenta-se como um importante exemplo das potenciais ações da participação social sobre doenças e agravos que têm íntima conexão com as iniquidades sociais em saúde. Isto porque, para a política pública, essa relação interinstitucional é importante porque cria um consenso em relação aos cuidados dos portadores do HIV/AIDS não discriminatório, inclusivo e independente das condições socioeconômicas dos indivíduos. Para os pesquisadores, as redes sistêmicas como a Pastoral da AIDS, deverão atuar em nível de intercâmbio, e os atores sociais deverão ser capacitados para uma atuação intersetorial englobando aspectos históricos, políticos e de processos sociais. Mesmo para temas polêmicos dentro das sociedades, como o uso de preservativo, prostituição e homossexualidade, e que estão relacionados à diferentes doenças infecciosas, as potencialidades de cooperação entre a sociedade civil e o Sistema Único de Saúde poderão configurar um cenário favorável para o combate às iniquidades sociais em saúde.
Referência Bibliográfica
Murray LR, Garcia J, Muñoz-Laboy M, Parker RG.Strange bedfellows: The Catholic Church and Brazilian National AIDS Program in the response to HIV/AIDS in Brazil. Soc Sci Med. 2011 Mar;72(6):945-52.
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