Iniquidades sociais e a Epidemiologia do Curso de Vida: uma perspectiva que está para além das doenças crônicas

?Epidemiologia do curso de vida considera eventos perinatais/ Imagem: Fiocruz

Os estudos sobre o papel das iniquidades sociais em saúde não é recente. Desde o início do século XIX diferentes paradigmas vêm sendo empregados nos estudos dos determinantes da saúde (Susser & Susser, 1996). Na primeira metade do século XIX predominou a teoria miasmática a partir das observações das distribuições geográficas de doenças e óbitos e sua correlação com as más condições de vida, o que promoveu a introdução e expansão do saneamento do esgoto e da provisão de água encanada.  Do final do século XIX até o início do século XX a teoria dos germes foi dominante e marcada pelos avanços laboratoriais de identificação de microrganismos e experimentos que promoveram o desenvolvimento de medicamentos e vacinas. A transição epidemiológica e o crescimento das doenças crônicas fez com que no final do século XX surgisse o paradigma da “Caixa Preta”, que era pautado na identificação e no controle de fatores de risco individuais comportamentais, tais como dieta inadequada, inatividade física e tabagismo, mas não considera determinantes sociais distais.

Os paradigmas que dominaram o estudo dos determinantes das doenças no século XX foram criticados em função do seu caráter reducionista. Surgiu então uma nova proposta, o paradigma da Eco-epidemiologia, que passou a sugerir que os determinantes das doenças estão estruturados em diferentes níveis hierárquicos ou sistemas: individual, comunidades locais, cidades e sociedades. Além disso, o modelo eco-epidemiológico considera a interrelação entre fatores genéticos e ambientais, além da análise de exposições a diferentes fatores de risco ao longo da vida, incluindo os determinantes sociais da saúde, que foi denominada de epidemiologia do curso de vida (Kuh & Ben-Shlomo, 2004).

Além do estudo dos tradicionais fatores de risco comportamentais, a epidemiologia do curso de vida considera eventos perinatais (Ex. antropometria ao nascer) e os determinantes sociais (Ex. posição socioeconômica), delimitando hierarquicamente seus componentes e suas possíveis interações. A aplicação da epidemiologia do curso de vida nos estudos sobre os determinantes sociais da saúde é bem sólida para as doenças crônicas (Lynch & Smith, 2005). A primeira evidência sugeria que as condições de vida adversas no início da vida induziriam ao aumento nos níveis de colesterol ao longo da vida e posterior desenvolvimento de doenças cardíacas. Outra correlação encontrada foi entre a extrema pobreza na infância com o aumento da susceptibilidade para câncer de pulmão devido ao maior consumo de cigarro ao longo da vida pelos indivíduos de pior posição socioeconômica (Forsdahl, 1977). Além disso, a desnutrição materna devido à pobreza potencialmente afetaria o desenvolvimento fetal comprometendo o seu adequado crescimento e aumentaria o risco para doenças cardiovasculares, diabetes e doenças respiratórias na vida adulta. A restrição de nutrientes em períodos críticos no início da vida levaria, por exemplo, à adaptação e consequente reprogramação da pressão arterial e do metabolismo do colesterol e da glicose (Baker, 1998).

Estudos sobre iniquidades sociais e a epidemiologia do curso de vida também foram desenvolvidos na área da saúde bucal. Achados revelaram que as condições sociais desfavoráveis das famílias no início da vida foram preditores para a ocorrência de cárie em crianças e trauma dentário em adolescentes (Nicolau et al., 2007).

Existe uma ampla evidência de que certas doenças crônicas se originam durante a vida fetal e nos primeiros anos de vida. Vários estudos têm sugerido que o baixo peso ao nascer e a prematuridade podem estar associados a doenças cardiovasculares e diabetes. No entanto, o risco biológico relativo ao nascimento de baixo peso e/ou pré-termo tem sido considerado uma condição adversa ao desenvolvimento infantil, com implicações para domínios diversos, dentre eles o cognitivo, comportamental e emocional (Rodrigues et al.,2011), incluindo doenças mentais como a  depressão infantil em crianças em idade escolar. A evidência mais recente sobre o papel das iniquidades sociais no curso de vida é o estudo brasileiro publicado por Pereira e colaboradores no periódico BCM Public Health. Nesse estudo longitudinal, pesquisadores de Ribeirão Preto (SP) e São Luís (MA) analisaram diferentes exposições biológicas e condições sociais da família na época do nascimento e a ocorrência de sintomas de depressão em crianças.

Pereira e colaboradores revelaram que em Ribeirão Preto a prevalência de sintomas depressivos em crianças de 10 a 11 anos foi maior entre aquelas que tiveram baixo peso ao nascimento (<2500 g) em comparação com as de peso normal ao nascer. Em São Luís, não houve associação entre o baixo peso ao nascer e a presença de sintomas depressivos nas crianças de 7 a 9 anos de idade. Os autores explicaram que essa diferença pode ser devida à mortalidade no primeiro ano de vida, que foi maior em São Luís do que em Ribeirão Preto.

A pior situação socioeconômica avaliada com base na escolaridade materna e ocupação do chefe de família foi um importante preditor da presença de sintomas depressivos em crianças em ambas as cidades. Enquanto em São Luís a pior qualificação ocupacional e o desemprego do chefe da família foram identificados como fatores de risco para sintomas de depressão em crianças, em Ribeirão Preto a baixa escolaridade materna na época do nascimento aumentou o risco para a depressão dos filhos. Quanto menor o nível de escolaridade dos pais, piores são as condições físicas e emocionais para o desenvolvimento e a estimulação da criança. Quando os pais têm menos acesso à informação, interagem mal com seus filhos. Esses achados sugerem que ambientes sociais desfavorecidos podem ter efeitos adversos sobre a saúde mental por causa de seus efeitos sobre o desenvolvimento psicológico.

A relevância deste trabalho reside na possibilidade de planejamento e avaliação de programas de intervenção em saúde mental para populações identificadas como expostas a riscos, como a de crianças com baixo peso ao nascer. Além disso, a possibilidade do emprego do modelo de curso de vida para o estudo dos determinantes sociais em saúde, não apenas para as doenças crônicas, pode ser compreendido como um importante avanço em função da elevada prevalência de doenças mentais e doenças infecciosas entre os grupos populacionais que vivem sob condições de desigualdade social.

Referências Bibliográficas

Barker DJP. Mother, babies and health in later life. 2nd ed. Edinburgh: Churchill Livingstone; 1998.

Forsdahl A. Are poor living conditions in childhood and adolescence an importante risk fator for arteriosclerotic heart disease? Br J Prev Soc Med [periódico na internet]. 1977 Jun [acesso em 21 set 2012];31(2):91-5. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC479002/pdf/brjprevsmed00026-0025.pdf

Kuh D, Ben-Shlomo Y. A life course approach to chronic disease epidemiology. 2nd ed. Oxford: Oxford University Press; 2004.

Lynch J, Smith GD. A life course approach to chronic disease epidemiology. Annu Rev Public Health. 2005; 26:1-35.

Nicolau B, Thomson WM, Steele JG, Allison PJ. Life-course epidemiology: concepts and theoretical models and its relevance to chronic oral conditions. Community Dent Oral Epidemiol. 2007 Aug;35(4):241-9.

Pereira TS, Silva AA, Alves MT, Simoes VM, Batista RF, Rodriguez JD, Figueiredo FP, Lamy-Filho F, Barbieri MA, Bettiol H. Perinatal and early life factors associated with symptoms of depression in Brazilian children. BMC Public Health [periódico na internet]. 2012 Aug 3 [acesso em 21 set 2012];12(1):605. [Epub ahead of print] PubMed PMID: 22863172.

Rodrigues CM, Saur AM, Osório FL, Loureiro SR. Depressão Infantil e suas associações ao peso a nascer. Universidade de São Paulo. [s.d.]. [acesso em 21 set 2012]. Disponível em: http://www.ibapnet.org.br/congresso2011/trabalhos/Resumo_painel2_IBAP.pdf

Susser M, Susser E. Choosing a future for epidemiology: II. From black box to Chinese boxes and eco- epidemiology. Am J Public Health [periódico na internet]. 1996 May [acesso em 21 set 2012];86(5):674-7. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1380475/pdf/amjph00516-0068.pdf

 

Por Mario Vianna Vettore e Gabriela Lamarca

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